Data: Domingo 18 de março – 4º na Quaresma.
Nm 21.4-9 (2Rs 18.4; Dt 16.21-22); Jo 3. 14-22
O conhecido texto do evangelho de João faz parte de um diálogo entre o fariseu Nicodemos e Jesus, sobre a mediação do sagrado. No fundo, a pergunta fundamental é como a gente entra e permanece em contato com o sagrado? O evangelista João, por meio das palavras de Jesus, nos diz que o sagrado se manifesta sempre por meio de, neste caso, a pessoa do Filho do homem/Jesus. Ou, como na experiência do povo hebreu durante seu tempo no deserto, por meio de uma serpente de metal. (Cf.: “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado” -Jo 3.14).
Mas, que experiência é essa? O registro encontra-se em Nm 21. 4-9. Durante a caminhada, diz o texto, a angústia e a queixa toma conta do povo, ao ponto de negar a bondade de Deus. A consequência é uma invasão do acampamento por serpentes que causam a morte de muita gente. Segue-se o arrependimento e a oferta de salvação, mediada pela escultura de uma serpente de metal colocada num poste de madeira. Isso teria acontecido ao redor do ano 1200 a C.
Com protestantes somos reticentes a ideia de que o sagrado, Deus, chegue até nós por uma “mediação”. Esta reticência não é à toa. A própria história da cristandade nos alerta para os abusos cometidos com as mediações. Basta lembrar Lutero e suas 95 teses. Mas, o abuso não é exclusivo da cristandade. Vejamos o que aconteceu com aquela serpente de metal que Moisés construiu. O livro de 2 Reis nos narra que o Rei Ezequias, que governou por 29 anos no reino do sul, a partir de 715 a.C.: “Removeu os altos, quebrou as estátuas, deitou abaixo o poste-ídolo, e fez em pedaços a serpente de bronze que Moisés fizera, porquanto até àquele dia os filhos de Israel lhe queimavam incenso,..”. (Rs 18. 4). Mas, como é que aproximadamente 400 anos depois essa cobra foi parar lá? Como é que depois de ser um meio legítimo do sagrado, e que João coloca como
um paralelo a vida de Jesus, veio a se tornar um ídolo a ser destruído? Parece-me ser essa uma pergunta pertinente nos dias de hoje.
Sem dúvida parte da resposta está em que Deus não age mais por meio dessa mediação. Mas, o assunto é mais complexo porque o relato do livro dos Reis nos da a entender que as pessoas não se deram conta da ausência de Deus nessa mediação, que, aliás, tinha sido construída por Moisés, sob as orientações de Deus. Se isto é assim, a dificuldade não está unicamente na mediação, mas também nas pessoas que não tem a capacidade de discernir.
Então, quando algo é mediação de Deus e quando é um ídolo? O psicólogo social Erich Fromm nos diz que um ídolo está onde o ser humano coloca suas paixões e qualidades. O ídolo é como uma espécie de recipiente no qual o ser humano coloca algumas das suas próprias características. Assim sendo, o ser humano se está relacionando com uma parte de si mesmo, ao ponto de se tornar submisso. De esta forma, enquanto mais se empobrece a pessoa, maior e mais forte se torna o ídolo. (Cf. Erich FROMM, O espírito de liberdade, p. 39-40).
Aplicando as palavras anteriores a experiência do povo hebreu com a serpente de metal, podemos dizer que eles não suportaram o silêncio de Deus nessa mediação. Eles não aceitaram que Deus agisse por outros meios, por isso, encheram a escultura de metal cega, surda e muda daquilo que eles amavam e temiam neles mesmos. Assim, já não estavam mais em diálogo com Deus, mas com aspectos parciais e doentios de si mesmos.
Porém, nesse contexto, como distinguir entre o que é agir/voz de Deus e o que é agir/voz de um ídolo? Vejamos se Fromm nos ajuda. Ele diz que toda relação entre a pessoa e o objeto de culto acaba transformando o ser humano. Então, o resultado dessa transformação passa a ser o “critério” para discernir entre o que é de Deus e o que é de um Ídolo.
Portanto, se um objeto cultuado leva a pessoa a organizar a sua vida para a produtividade, para a construção de uma vida em/para liberdade, a autonomia e o serviço ao próximo, estamos perante algo que é de Deus. Entretanto, se o objeto cultuado conduz a improdutividade, como a construção da pessoa em/para a submissão, a dependência e o egoísmo, estamos diante de um ídolo.
Assim, o ídolo, como realidade inanimada, orienta a vida para o amor a morte, caracterizada pela perda da liberdade e a centralidade em se mesmo. E Deus, como realidade viva, leva para o amor à vida, que inclui o cuidado, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento. (Cf. Erich FROMM, A arte de amar).
Das palavras anteriores podemos dizer que todo aquilo que vem de Deus pode também ser transformado num ídolo. Palavras difíceis de suportar! Mas, a história bíblica e da cristandade está repleta dessa advertência. Então, toda representação do sagrado, por mais verdadeira que seja, toda vez que utilizada para subjugar o próximo, tornar dependente a qualquer pessoa, já é um ídolo. Isto nos diz que a luta dos antigos profetas contra a idolatria que fez perder a liberdade e a responsabilidade do povo, não acabou.
Dito isto, voltemos aos nossos textos. Escutemo-los:
“E Moisés fez uma serpente de metal, e pô-la sobre uma haste; e sucedia que, picando alguma serpente a alguém, quando esse olhava para a serpente de metal, vivia.” (Nm 21. 9).
Quem olhava para ela ficava curado e recuperava a sua vida. Podia assim continuar a caminhada em direção a terra prometida. Enquanto a serpente de metal cumpria a função de trazer vida, era uma mediação do agir de Deus.
“E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; Para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.” (Jo 3. 14-15).
De igual maneira, a presença, mensagem e vida do Filho do homem tem como finalidade a Vida, cuja qualidade é qualificada de eterna.
Mas atenção! Segundo o apóstolo João essa vida não se refere a intensidade do culto, nem da dedicação que se tenha na adoração. Para o apóstolo essa vida trazida por Deus, por meio do Filho do homem, tem a ver com o jeito de viver o cotidiano.
Os versículos finais deste parágrafo dizem assim: “Porque todo aquele que faz o mal odeia a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas. Mas quem pratica a verdade vem para a luz, a fim de que as suas obras sejam manifestas, porque são feitas em Deus.” (Jo 3.20-21).
O crer, em João, não se refere a intensidade de um sentimento, energia arrebatadora ou algo pelo estilo. O crer tem a ver com uma opção de viver a vida segundo o bem (ou segundo o amor à vida, que inclui o cuidado, a responsabilidade, o respeito e o conhecimento de si mesmo e dos outros), isto inspirado por Deus, por meio de Jesus Cristo.
Que a sabedoria do Santo Espírito de Deus venha sobre nós trazendo o discernimento para avaliar as nossas orientações de vida;
Que a determinação do nosso irmão Jesus Cristo nos dê a coragem para quebrar as nossas relações idolátricas que tiram de nós a liberdade;
Que a bondade de Deus nos sustente no caminho pelo bem, a vida, a liberdade. Amém.
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