Morrer com dignidade

01/12/2000

Morrer com dignidade

• Mário Sonntag •

Lembro-me muito bem do meu primeiro encontro com o Dr. Luiz Pedro Pizzato, superintendente da Liga Paranaense de Combate ao Câncer (mantenedora do Hospital Erasto Gaertner). Foi no início de 1984. Eu havia voltado de Houston (EEUU), onde fizera treinamento em um hospital de câncer. Tinha a intenção de atuar como assistente espiritual hospitalar (capelão). Expus ao Dr. Luiz Pedro minha visão do trabalho. Argumentei que pacientes com câncer, especialmente aqueles com doença avançada, precisavam de atenção especial, de alguém que os ouvisse, que desse valor ao que sentiam e pudesse levar conforto diante do temor e angústia da morte. A reação do Dr. Luiz Pedro foi: Acho que você caiu do céu, pois é exatamente isto que precisamos.
Ele então falou que pacientes fora de possibilidades terapêuticas, quanto mais se aproximavam da morte, menos atenção recebiam dos profissionais de saúde, e que era necessário reverter esta situação.

Este pensamento levou à criação, em 1994, do GISTO — Grupo Interdisciplinar de Suporte Terapêutico Oncológico, um grupo de Cuidados Paliativos. Fazem parte do grupo: médicos, enfermeira, psicóloga, assistente social, nutricionista, fisioterapeuta, assistente espiritual e voluntárias. O objetivo do grupo é dar uma assistência integral à pessoa com doença avançada e a seus familiares, conforme princípios dos Cuidados Paliativos.

Um pouco de história

Cicely Sounders é considerada a fundadora do movimento moderno de Cuidados Paliativos. Por volta do ano de 1947, trabalhando como enfermeira em Londres, ela ficou muito impressionada com o grande sofrimento, principalmente a dor, de pessoas que estavam morrendo de câncer. Escreve a autora de uma biografia de Sounders: Naquele tempo, pacientes incuráveis recebiam pouquíssimo cuidado especializado na maioria dos hospitais. Médicos acreditavam que seu trabalho era curar doenças. Pacientes que não podiam ser curados representavam um fracasso para eles. Pouquíssima pesquisa era feita sobre o cuidado a pessoas que estavam morrendo. Tais pacientes frequentemente eram deixados sozinhos, em constante dor, muitos deles estavam apavorados diante da morte e muito preocupados sobre o que aconteceria com seus familiares (tradução de: Shirley Du Boulay, Changing the Face of Death — The Story of Cicely Sounders, p. 1). Cicely Sounders, auxiliada por amigos e doadores, construiu o primeiro hospice moderno — um tipo de hospital/lar para pacientes incuráveis —, o St. Christopher's Hospice em Londres.

Em 1987, a Organização Mundial da Saúde reconheceu cuidados paliativos como seu programa oficial ao lado da medicina preventiva e da medicina profilática. Hoje, somente no Reino Unido existem 128 hospices e mais de 300 unidades de Cuidados Paliativos. Cuidados Paliativos espalhou-se pelo mundo inteiro. No Brasil, sua atividade ainda é muito pequena. No entanto, já foi criada uma organização nacional de Cuidados Paliativos e, no início do ano 2000, tinha-se notícia de 28 grupos em atividade.

Cuidados paliativos

O Dr. Robert G. Twycross define assim Cuidados Paliativos: Cuidados Paliativos é o cuidado total e ativo de pacientes e suas famílias por um grupo multiprofissional no momento em que a doença do paciente não responde mais ao tratamento curativo. A meta desses cuidados é a melhor qualidade de vida possível para ambos, paciente e família. Corresponde aos cuidados físicos, psicológicos, sociais e espirituais necessários.

Um dos lemas muito usados pelas pessoas que atuam em Cuidados Paliativos é:

Dê vida aos dias e não dias de vida a seu paciente. A ideia é: não tem sentido procurar, de todas as maneiras, prolongar a vida de uma pessoa quando a qualidade desta vida é péssima ou mesmo terrível. Infelizmente ainda acontece, na maioria dos casos, que pessoas passam seus últimos dias de vida em hospitais e mesmo em UTIs, conectadas a tubos, mangueiras e respiradouros, em sofrimento muito grande e longe de seus queridos.

O Grupo de Cuidados Paliativos no Hospital Erasto Gaertner atua para que seus pacientes possam ter uma melhor qualidade de vida e uma morte mais tranquila. Da mesma forma, assiste os familiares antes e depois da morte do paciente. Os pacientes são encaminhados ao grupo quando as possibilidades de tratamento curativo se esgotaram. A preocupação de todos os integrantes do grupo é a pessoa, sua dor, suas dúvidas, angústia, preocupações, seus desejos e necessidades.

Hoje sabe-se que a dor pode ser eliminada, ou pelo menos aliviada consideravelmente na quase totalidade dos pacientes. Assim também outros sintomas podem ser tratados e cuidados. Combate-se com veemência o pensamento: Não dá para fazer mais nada.

Além dos sintomas físicos, as questões emocionais, psicológicas, sociais e espirituais são de igual importância para a pessoa em seu final de vida.

Muitas vezes, auxiliar significa simplesmente sentar e ouvir, para que possam compartilhar seu sofrimento; ou então auxiliá-los a entender e expressar suas angústias, medos e dúvidas, buscando novas forças, consolo e conforto.

A doença e a proximidade da morte traz, com frequência, à tona problemas de relacionamento. Nestes casos, reuniões familiares, reconciliação e perdão são as prioridades. Ao fazermos uma primeira visita, em casa, a um paciente, sabendo que ele sofria de muita dor devido ao câncer avançado, perguntamos a respeito. O paciente respondeu: Essa dor não é nada comparada à dor insuportável que sinto aqui dentro (pondo a mão no peito) pelo fato de me sentir abandonado e desprezado pelos meus familiares.

Outras vezes, aliviar o sofrimento é orientar e encaminhar para auxílio financeiro da previdência social, ou mesmo providenciar uma cesta básica para que tenham algo para comer, pois a doença impediu o trabalho da única pessoa que o podia fazer naquela família.

Assistência espiritual

Neste contexto, é inegável a grande necessidade da assistência espiritual.

Cuidados Paliativos trouxe consciência clara ao ambiente da medicina de que a assistência espiritual é imprescindível. Sabe-se hoje, neste meio, que questões espirituais são, muitas vezes, as mais relevantes para pacientes que estão em fase terminal. Com frequência, pacientes atendidos pelo nosso grupo, independente da denominação a que pertençam, demonstram que a ajuda que mais necessitam é na área espiritual. Recentemente um paciente me disse: Pastor, você é o médico que eu preciso. Questões como o significado da vida, a razão do sofrimento, o que vem depois, Deus onde está? ... são fundamentais para quem está morrendo. Em cuidados paliativos crê-se que, ao prestar atendimento a uma pessoa que enfrenta a morte, tem-se a obrigação de dar atenção a tais assuntos.

A proximidade da morte e o processo de morrer sempre foram e sempre serão um dos maiores, se não o maior, motivo de sofrimento para a pessoa humana. A nossa atitude diante desse assunto pode aumentar ou diminuir esse sofrimento. Sem dúvida, a atitude de negação da morte e do descaso com o que está morrendo causam sofrimento muito além do necessário.

Lutar para que pessoas possam morrer com dignidade significa reconhecer o estrago que a morte causa e amenizar este estrago usando recursos disponíveis — orientar, interessar-se e amar essas pessoas.

Talvez a mudança mais necessária para que pessoas possam morrer com dignidade inicie no refletir e discutir a morte e o morrer — conversar abertamente, como gostaríamos que fosse o nosso morrer. Então, com certeza se torna mais fácil imaginar o que o próximo necessita ao estar morrendo.


O autor é pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, e Assistente Espiritual do Hospital Erasto Gaertner em Curitiba, PR


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Autor(a): Mário Sonntag
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Acompanhamento e consolação
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2001 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000
Natureza do Texto: Artigo
ID: 32995
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A vida cristã não consiste em sermos piedosos, mas em nos tornarmos piedosos. Não em sermos saudáveis, mas em sermos curados. Não importa o ser, mas o tornar-se. A vida cristã não é descanso, mas um constante exercitar-se.
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