Mateus 6.24-30
Prédica de Martim Lutero
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um, e amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas. Por isso vos digo: Não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que as vestes? Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo vosso Pai celeste as sustenta. Por ventura, não valeis vós muito mais do que as aves? Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida? E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós, homens de pequena fé? Portanto não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.
Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal.
Este é um evangelho rico e uma extensa pregação contra a avidez. É a avidez, que Cristo, o Senhor, combate de maneira especial. Pois não há outro mal que seja maior obstáculo ao evangelho ou que mais dano lhe faça do que a avidez. E, contudo, ela existe em tal profusão que o mundo inteiro se afogou nela, como vemos. Pois a preocupação de cada qual é cuidar de sua alimentação, dia e noite. E é isso que fomenta a avidez, de maneira especial. Ninguém se contenta com aquilo que Deus lhe confiou e deu. Todos querem ter mais, querem subir mais alto. Aquele que de Deus recebeu uma bela casa, gostaria de ter um castelo; se tiver um castelo, além dele gostaria de possuir um povoado, e assim por diante: assim que ninguém se satisfaz com o que tem, mas deseja subir sempre mais e possuir maior quantidade de bens. Se não existissem a avidez e o orgulho, todos teríamos o suficiente, e os homens não se entregariam a tais preocupações e à faina de arrebanhar e de acumular riquezas.
Tal espírito, contrário ao evangelho, o Senhor gostaria de contestar através desta pregação. Ele o faz de modo bastante violento, dizendo: ¨Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um, e amar ao outro¨, etc. Chama os dois senhores pelo nome. Um se chama Deus, este é o verdadeiro Senhor, ao qual somos obrigados a servir, o outro senhor se chama riquezas; este não é o verdadeiro senhor, por tal razão Deus não quer que lhe sirvamos.
E ele esclarece o que seja servir às riquezas, a saber preocupar-se pela vida, quanto ao que se vai comer ou beber, e preocupar-se pelo corpo, quanto ao que se vai vestir. Ele norteia a sua pregação toda num único ponto: que abandonemos totalmente tal preocupação. Pois ela não só é uma preocupação inútil, da qual não temos necessidade, e através da qual nada conseguimos, mas tal preocupação também impede o verdadeiro culto a Deus. Por isso deveremos guardar-nos dela e acostumar-nos a servir a Deus, tendo a confiança de que ele sabe de que necessitamos e que ele o proverá e no-lo dará de bom grado, uma vez que o busquemos junto a ele.
Muito nos ajuda para obtermos tal confiança, observarmos que Deus, sem que nos preocupássemos por tal, já nos deu corpo e vida. Aí você verá que é uma coisa aceita por todo mundo: Não é verdade que, mesmo que juntássemos todos os alimentos da terra num só lugar, você não os trocaria por sua vida? Da mesma forma, o seu corpo vale mais do que toda a sua roupa. Não somos realmente criaturas infames e ingratas, que merecem a ira de Deus? Sendo obrigados a admitir que ele já nos deu a maior parte das coisas e as mais importantes — não teremos a confiança de que nos dará também as que menos importam? Já um homem rico se sentiria magoado, se, após lhe ter doado mil moedas de ouro, você não tivesse nem a confiança de que ele pudesse dar um par de sapatos velhos sequer. A mesma atitude, em verdade, tomamos em relação a nosso Pai celeste, ao nos preocuparmos por comida e bebida, visto que ele já nos deu a maior parte das coisas, e nos deu o que mais importa. Como lhe agradará tal desconfiança nossa, nós mesmos o deveremos avaliar.
Por tal razão Cristo diz: Se vocês quiserem ser cristãos tenham Deus em seus corações, permitam que ele cuide de comida, bebida e vestuário; ele quer ser o Pai de vocês. Se lhes deu vida e corpo, também lhes dará alimento e roupa para vestir. Não sejam ávidos, não se preocupem, não desesperem dele daquela forma: Não é verdade que ele já se revelou o suficiente? Ele lhes deu corpo e vida; tudo o que vocês têm, veio dele; e diariamente ainda vai dando carne, peixe, aves, pão, vinho, ouro, prata, etc. Tudo isso é de vocês. Que mais Deus poderá fazer? Ele não se revelou de forma suficiente, assim que vocês possam confiar nele? Em realidade ele não quer permitir que lhes falte coisa alguma; creiam simplesmente ser essa a verdade e ser ele o vosso Deus e Pai.
Tudo isso tem por finalidade ensinar-nos a confiar em Deus, assim que com as coisas mínimas, necessárias para fomentar a vida pela alimentação, e necessárias para agasalharmos o corpo, iniciemos também a encomendar as coisas mais significativas ao Senhor nosso Deus. Pois se não acreditarmos que Deus nos possa encher o cesto de pão e nos possa vestir o corpo, como é que lhe encomendaremos a nossa alma, ao morrermos? Aí já não enxergaremos nem casa nem cabana, aí não haverá nem trigo nem vestido, nem alimento nem vestuário, mas a única coisa que nos será possível é crer, entregando-nos, e morrendo confiados na palavra somente. Como pois vamos confiar em Deus nestas coisas sublimes, que dizem respeito à vida eterna, se não lhe conseguirmos confiar a barriga?
Da mesma forma como somos obrigados a aprender e a confessar, em vista de nós mesmos, de nosso corpo, de nossa vida, em vista de nossos olhos, ouvidos, mãos, pés, e de todos os nossos membros — que Deus nos deu muitas coisas e que ele nos fez muito bem, assim o Senhor coloca diante de nossos olhos o exemplo de outras criaturas, para que pelo exemplo delas aprendamos a confiar em Deus e a não nos preocuparmos. ¨Olhai as aves do céu¨, diz ele, ¨e aprendei delas¨. Não existe corvo algum que se preocupe por seu alimento, cuidando daquilo que vai comer no dia seguinte. O que ele faz é pousar em seu ninho, de noite, e de manhã levanta vôo e encontra o alimento no lugar onde Deus lho dispôs. Da mesma forma fazem todas as aves; todas elas acham o suficiente para comer, sem preocupação alguma. Se o Pai celestial alimenta as aves, ele não alimentará a vocês também? Vocês não valem muito mais do que as aves?
Com isso Cristo não proíbe que se trabalhe. Pois as aves têm o seu trabalho, mesmo que não semeiem nem colham nem ajuntem em celeiros, nem façam algum trabalho que se assemelhe ao dos homens. Elas precisam estender as asas e ir em busca de seu alimento. Assim também nós devemos trabalhar. Pois é isto que foi imposto ao homem por Deus, assim como está escrito em Gênesis 3.19: ¨No suor do teu rosto comerás o teu pão¨, e em 2 Tessalonicenses 3.10: ¨Se alguém não quer trabalhar, também não coma¨. Mas o que nos foi proibido é nos preocuparmos — é os homens pensarem que Deus se tenha esquecido deles e julgarem que precisarão efetuá-lo através de suas preocupações. Há os que, mesmo ao viverem em abundância, e tendo tudo de que precisam, não querem confiar em Deus. Isso não é lícito, mesmo por sermos verdadeiros tolos, quando nos agarramos às nossas preocupações. Se os cereais plantados na lavoura são para vingar, Deus é que precisa dá-lo; nossas preocupações não o conseguirão. Pois o que é que somos capazes de contribuir? Vemos e compreendemos que tudo está nas mãos de Deus e que é ele quem precisa efetuar tudo. Mas nós somos criaturas desesperadas; não aprendemos a crer, mas no lugar da fé colocamos as preocupações. Toda a terra não passa de um amontoado de cobiçosos desesperados que não confiam em Deus e que não lhe servem, mas que confiam no diabo e servem a ele. Pois as riquezas são o Deus do mundo. Riquezas — isso quer dizer, posses. Acontece que o mundo não procura nas posses um meio de assegurar comida e bebida (tal poderá fazer, de bom grado), mas para ter muito dinheiro e riquezas na caixa, e para adorá-los. Por isso o mundo está cheio de escravos do dinheiro. Agora você que me diga: não é verdade? Se você, no caso, já tivesse a casa cheia de riquezas, se sua casa fosse de ouro, se nos rios Reno e Elba corresse ouro, o que é que lhe adiantaria, se nada mais existisse, se não houvesse nem cereal, nem cerveja, nem vinho, nem água? Ora, como você serviu bem às riquezas: Você não vai poder comer o dinheiro!
Em verdade podemos qualificar como infame este serviço às riquezas. Os próprios gentios fizeram troça dele criando a fábula de um opulento rei, chamado Midas, que vivia na Frígia. Este era cobiçoso a ponto de querer que tudo o que tocasse fosse transformado em ouro. O desejo lhe foi cumprido. Agora, logo que ele tocava em seu casaco, bem como em mesa, banco, cama, porta, colunas—tudo, no mesmo instante, se transformava em ouro, assim que o homem cobiçoso não tinha mais o que comer e beber, sendo obrigado a morrer de fome. Que desejo excelente, aquele! Portanto almadiçoe o amor ao dinheiro e fuja-o quem puder!
Cristo continua dizendo: O que é que vocês alcançam, mesmo que se preocupem até a morte? Seria, em verdade, coisa de doido, se um homem baixo fosse sentar em algum canto, preocupando-se e pensando a vida toda em nada mais a não ser em como conseguir aumentar sua estatura. Você não acha que todo o mundo faria troça dele, tachando-o de louco varrido? A mesma coisa, diz Cristo, o mundo faz, ao preocupar-se. Ninguém se saciará nem enriquecerá por preocupar-se. O que resolve é que Deus dê a sua bênção, não que o homem se preocupe. Se a bênção de Deus estiver presente, aí, em verdade, temos as coisas: se ela não estiver presente, não conseguiremos usufruir nem conservar as posses, mesmo que as possuamos, como há tantos exemplos à vista.
Agora, quem for cristão não se deixe vencer por cobiça e preocupação, antes aprenda a confiar em Deus, trabalhe e deixe Deus cuidar. Pois a nós compete trabalhar e empenhar esforço na labuta, mas deveremos saber que não é o nosso trabalho que resolve. A nós compete arar a lavoura e semeá-la, mas precisamos saber que não é o nosso trabalho que faz as coisas. Devemos arar e semear a lavoura, sim, e se o que plantamos amadurece, devemos colhê-lo. Contudo nos veremos obrigados a confessar se Deus não o tivesse dado, todo o nosso trabalho teria sido em vão. Amado Deus e Senhor, é dádiva tua. Assim que se dê a honra a Deus, reconheça-se a sua bênção e dê-se graças a ele.
Em seguida, Cristo nos aponta as florzinhas do campo como exemplo dizendo: As flores do campo não trabalham, nem fiam, nem costuram; mesmo assim possuem belos vestidinhos, de forma a deixarem envergonhadas todas as bordadeiras, mesmo as que trabalham com fios de seda. Que isto sirva de exemplo a vocês. Sendo que Deus enfeita desta forma as florzinhas que mal apontam no campo pelo espaço de um dia, como é que vocês são tão infames, a ponto de não crerem que Deus os alimentará e que lhes dará o que vestir, mas acharem que ele se tenha esquecido totalmente de vocês? Ao fim, Jesus fala de forma bastante contundente dizendo: ¨Os gentios é que procuram todas estas coisas¨. Agora, vocês não deverão ser gentios, mas sim, cristãos. Portanto não vos inquieteis, dizendo: ¨Que comeremos? ou: Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos?¨ Os gentios é que desesperam de Deus, estão cheios de preocupações, pensam que Deus não lhes dará coisa alguma. Vocês, porém, têm um Pai no céu, que sabe de que necessitam. Portanto não precisam preocupar-se, mas antes deixem que seu Pai no céu se preocupe por vocês.
Jesus termina esta prédica da seguinte maneira: ¨Buscai em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas¨. E como se quisesse dizer. As riquezas não deixam vocês confiar em Deus. Por tal razão precisa desesperar aquele que põe sua confiança em dinheiro e bens, quem for escravo das riquezas. Agora, seu Pai celeste bem sabe que vocês têm necessidade de comer e de beber e de se vestir; por isso ele tem o seu coração inclinado para vocês, na intenção de dá-lo a vocês. Portanto deixem de preocupar-se pelo dia de amanhã (pois por ele não precisam preocupar-se, já que seu Pai celeste se preocupa por ele), e busquem em primeiro lugar o reino de Deus e a sua justiça, para que Deus governe dentro de vocês.
O que é o reino de Deus, porém, e em que ele consiste, é ensinado por Jesus em Lucas 17.20 e seguintes: ¨Não vem o reino de Deus com visível aparência. Nem dirão: Ei-lo aqui! ou: Lá está. Porque o reino de Deus está no meio de vós¨. Portanto, reino de Deus não quer dizer outra coisa a não ser ouvir a palavra de Deus e crer nela. Então é que Deus reina em nós, quando nós não desesperamos dele, antes confiamos nele de coração, tendo-o por nosso Deus e Pai. Onde houver tal fé, aí Deus habita, e aí sem demora rege a justiça, a saber o perdão dos pecados. Um coração crente pensa em Deus, fala dele, ora a ele. E vice-versa: Deus habita aí mesmo; a palavra que faiamos e ouvimos é palavra de Deus, a língua é língua de Deus, os ouvidos são ouvidos de Deus. Por isso o reino de Deus é a fé. Pois onde existir um coração crente, aí existe o reino de Deus. As obras vêm em seguida, de forma que tal pessoa vai seguindo a sua profissão, vai trabalhando, comendo, bebendo, alegre e bem disposta como um passarinho. Assim é que se iniciam o reino e a justiça de Deus.
Cristo diz: Deixem ser sua primeira preocupação a de buscarem o reino de Deus e a sua justiça. Isto significa: Cuidem em primeiro lugar de como chegar a crer, e que Deus venha a reinar dentro de vocês. Se tiverem isso, Deus não deixará vocês de barriga vazia. Ele fez vocês serem donos de tudo que cresce na terra. A terra dará a vocês o suficiente: centeio, trigo, cevada, aveia, vinho e o que mais necessitarem. O ar lhes deverá dar pássaros, a água, peixes. Creiam somente que seu Pai celeste vai cuidar de vocês. Se, porém, forem descrentes, nada terão.
Assim nosso Senhor Jesus Cristo neste evangelho nos estimula, através de belas figuras e exemplos, para que aprendamos a confiar em Deus, prometendo-nos que Deus dará o suficiente, uma vez que confiemos e trabalhemos. Fato é que Deus já provou e continua provando todos os dias que nos quer alimentar. Pois tudo que diariamente nos vai dando e presenteando na terra, no ar, na água, ele dá e presenteia aos homens; pois os anjos não necessitam de nenhuma destas coisas. Céu e terra estão plenos, contudo nós somos pessoas tão infames que não conseguimos confiar em Deus.
De modo especial devemos perceber o que ele diz: ¨Não podeis servir a Deus e às riquezas. Ninguém pode servir a dois senhores¨. Ou vocês vão ter de odiar as riquezas, amando a Deus, ou vão odiar a Deus amando as riquezas. Das duas, uma. Pois a cama é curta; não sobra nada. E a coberta é tão estreita que será preciso ajustar o corpo a ela, como vem escrito em Isaías 28.20. Deus e as riquezas não poderão compartilhar o mesmo coração, um tem de cair fora, ou Deus, ou as riquezas.
Aquilo, pelo evangelho deste dia, nos seja dito como advertência, para que aprendamos a crer e para que nos cuidemos da cobiça e da escravidão das riquezas. Nosso amado Deus e Senhor, por Cristo, nos dê o seu Espírito Santo, para que por ele melhoremos a nossa vida e nos tornemos mais piedosos.
Amém.
10 Sermões sobre o Credo - Martim Lutero
Prefácio de Lindolfo Weingärtner
Mateus 6.24-30
Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13