Prédica: Mateus 5.1-10
Leituras: Isaías 62.1-12; Galatas 5.1-11
Autor: Walfrido da Silva e Ildemar Kanitz
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31/10/2008
Proclamar Libertação - Volume: XXXII
1. Introdução
Esta celebração quer lembrar a Reforma Luterana, e os textos indicados apontam para a missão, ou seja, para a aventura, o risco, a transformação que as palavras de Deus podem provocar em nossas vidas. Nesse sentido, procuraremos estruturar, na medida do possível, uma mensagem que dê conta desses movimentos (estar com, dialogar, olhar), desses perigos (mundos, realidades, vidas, sofrimentos, violências) e dessas mudanças (misturar, envolver, chafurdar, enlamear-se).
A missão é de Deus. A comunidade é seu instrumento, sinal de seu amor e agente de transformação do mundo. O sacerdócio geral de todos os crentes define-se por esse serviço a Deus, que deve ser baseado no amor (cruz de Cristo) inconformado com o mundo, que não se acomoda diante das injustiças e não é indiferente diante do sofrimento alheio. A missão da comunidade não se define só pelo PARA (ir ao encontro), mas também pelo ESTAR-COM (pessoas carentes). Esse estar-com exige mudanças, deslocamentos e envolvimentos que, de alguma maneira, transformam os sujeitos em missão.
2. Exegese
Os textos previstos para esta celebração são: Mateus 5.1-10 (prédica), Isaías 62.1-12 e Gálatas 5.1-11 (leituras). Esses três textos têm em comum o desafio, o perigo, o compromisso e a transformação do e no mundo. As mensagens que atravessam os textos são de resistência às injustiças (dissoluções e opressões), de caracterizações (minorias marginalizadas e miseráveis) e de envolvimento com o mundo (ser perseguidos, injustiçados).
2.1 – Mateus
Ele apresenta uma série de beatitudes ou interjeições que não requerem verbos. Elas não descrevem sentimentos das pessoas em-si-mesmadas, mas seus modos de bem-aventuranças. Portanto a palavra makarioi (grega) pode remeter-nos a duas ações distintas. A primeira refere-se a bem-aventuranças como felicidade, alegria e gozo; a segunda como palavra de ação (ordenanças) que remete às ações proativas. Sugiro essa segunda possibilidade, pois as interpretações correntes têm valorizado a primeira dimensão. Assim sendo, as bem-aventuranças desafiam a comunidade às aventuras, aos perigos, às transformações cotidianas e não a um suposto lugar seguro (do mesmo), inerte e isolado no mundo. As pessoas não permaneceram seguras na montanha (sermão da montanha), mas desceram as colinas e embrenharam-se nas planícies.
O texto refere-se também a uma série de grupos, tais como os humildes de espírito, os que choram, os mansos, o que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, os pacificadores e os perseguidos por causa da justiça. São minorias segregadas e maltratadas pelos sistemas vigentes (político, religioso e social). Outras não são mencionadas nominalmente nesse texto, por exemplo: crianças, órfãos, viúvas, estrangeiros, prostitutas, cobradores de impostos, leprosos, doentes etc. O que define uma minoria é o fato de estar fora das normatizações, do estabelecido como normal e aceitável. As pessoas que seguem Jesus Cristo advêm, principalmente, dessas minorias. Portanto o texto faz ver essas minorias execradas, ainda hoje, pela sociedade. Elas são as bem-aventuradas, ou seja, as que lutam por um lugar à mesa da comunhão, o ESTAR-COM.
2.2 – Isaías
O texto previsto para este dia está situado dentro do assim denominado Trito-Isaías (56-66), ou seja, refere-se ao pós-exílio babilônico. O povo de volta à terra enfrenta a miséria e o desafio da reconstrução. Nesse contexto, o profeta encontra problemas sociais e jurídicos. A aventura do retorno e da reconstrução (concretização da promessa de Deus) tem por base a inquietação do povo, que diante dos tantos desafios e problemas se apega à promessa da terra, transformando a realidade de destruição. O sujeito dessa ação é Deus.
2.3 – Gálatas
Destacamos que este texto está dentro de um bloco temático entre seguir a lei ou a Cristo (3.1-5.15). Apresenta o perigo da comunidade transformada que pode retornar à escravidão, submetendo-se à lei (circuncisão) como condição básica da expressão da fé. O que tem valor é a fé que atua pelo amor, mesmo que isso implique sofrimento como perseguição e não-aceitação.
3. Meditação
Os textos provocam a inquietação pessoal, social e religiosa. O que incomoda é, portanto, que está dentro e fora de nós; é aquilo que não nos deixa ficar tranqüilos e serenos em relação às coisas do mundo, ao que vemos, ouvimos e, até mesmo, ao que fazemos. E por que não dizer inquietos em relação à fé? Em Gálatas, Paulo toca em algo fundamental no viver humano: a liberdade. Ele deixou inquietas as pessoas que acreditavam no cumprimento da lei como caminho para a salvação, pois elas haviam se tornado, novamente, escravas da lei. Em Isaías, vemos as pessoas inquietas porque precisavam reconstruir suas vidas e a cidade santa, tornando-a, novamente, cidade não-deserta. (... por amor de Jerusalém, não me aquietarei, até que saia a sua justiça como um resplendor, e a sua salvação, como uma tocha acesa – v. 1.) Portanto a inquietação está intimamente relacionada ao amor e à transformação de si mesmo e da realidade.
Em Mateus, Jesus deixou as pessoas muito inquietas, surpreendendo-as com suas palavras. Bem-aventurada é a pessoa que comete uma “loucura” aos olhos do mundo; por causa de sua proposta de vida escolhe um outro caminho, sendo, muitas vezes, desprezada, injuriada e perseguida. Isso deve ter incomodado e inquietado as pessoas que ali estavam, pois descobriram que o caminho (salvação) para o qual Jesus está chamando é de aventura, de risco e de perigo. Ele chama as pessoas para essa aventura de busca de uma outra justiça (sistema de poder) e de uma outra realidade (reino de Deus). Os versículos seguintes falam do ser sal na terra e luz no mundo, desafiando as pessoas para a grande aventura que é a missão de Deus.
A Reforma Luterana também foi marcada por inquietações e aventuras, que levaram a transformações, tais como salvação por graça e fé, tradução da Bíblia e outros conhecidos pilares. Por isso cabe muito bem lembrar aqui das inquietações de Lutero não só em relação a si mesmo, mas em relação à igreja e ao Estado. Assim poderíamos dizer que a Reforma é resultado dessas inquietações, em que a fé e a condição de vida das pessoas passaram a compor o espectro da comunidade cristã. Enfim, a Reforma torna-se, ainda hoje, um referencial que desafia a tradução de todas essas inquietações em ações transformadoras do mundo, da igreja, da vivência da fé.
Há uma grande tendência na sociedade à acomodação com os preconceitos, violências, injustiças, exclusões e segregações cotidianas. Aprendemos a modelar o viver, o sentir, o sonhar, o pensar e o fazer no mundo, de forma a não nos questionarmos. A ilusão de que não podemos fazer nada vai tomando conta da gente. Até acreditamos que isso é natural. Nesse sentido, a acomodação é o velório das possibilidades e das esperanças e o enterro das inquietações. O texto de Mateus convida-nos à aventura, ao risco, à inquietação como formas de viver a fé cristã encarnada no mundo.
Como estão as comunidades que congregam a IECLB nesse cenário? Como está a nossa comunidade? Como estamos nós? Se, por um lado, temos motivos para nos alegrar, pois sabemo-nos amados e protegidos por Deus, por outro lado, estamos tristes, pois nossas comunidades estão perdendo membros e não conseguem crescer. Se uns estão agitados, outros estão anestesiados; se uns querem mudanças, outros preferem a estagnação. A acomodação advém da falta de perspectiva e de esperança; já a inquietação, do amor e do desejo de mudança. O texto deveria motivar todas as pessoas a grandes aventuras dentro das comunidades que congregam a IECLB.
Estamos não só inquietos, mas também decepcionados e assombrados, pois não conseguimos traduzir em ação-transformação todas essas incomodações que nos afligem. Optamos, quase sempre, pelo caminho mais seguro e conhecido. As palavras de Cristo convidam-nos para uma aventura de conhecimento, de envolvimento, de missão e de inclusão. Enfim, precisamos acreditar em novos mundos, novas relações e novas interações. Jesus Cristo, a partir de Mateus, convida-nos a conhecer outras realidades, outros modos de partilhar e expressar a fé nas bem-aventuranças.
Aventurar é inventar um outro mundo e sair no seu encalço. A segurança é Deus quem nos dá por sua graça. Bem-aventuradas são as pessoas que mudam (fraternalmente) a realidade e a si mesmas, firmes nas promessas do reino de Deus.
4. Imagens
4.1 – Barco (relacionado à aventura)
A grande aventura das expedições marítimas marcou a história da humanidade. Navios pequenos eram colocados para enfrentar os temporais. O medo, o desânimo e a quietude cederam lugar à curiosidade. Os navegadores encheram-se de coragem e foram em busca de novas alternativas para seu comércio, descobrindo, assim, novos caminhos para o Oriente, contornando a África e chegando também à América. Os aspectos negativos dessas viagens e conquistas não precisam ser detalhadas.
4.2 – Água e pedra (relacionadas à transformação)
A água leva vida (poluída leva morte) e está em constante transformação; movimenta e possibilita movimentos. Remansos e correntezas, evaporação, ebulição e congelamento são estados possíveis da água. A pedra pode ser um obstáculo; suas transformações são lentas e suas formas e cores variadas. Essas imagens podem ilustrar as variadas e variantes transformações comunitárias, ou seja, a tensão permanente entre conservar e mudar.
Sugestão de hino: Qual barco singra pelo mar... (HPD 1, 98)