Mateus 26.36-56

Auxílio Homilético

13/04/2017

 

Prédica: Mateus 26.36-56
Leituras: Êxodo 24.1-11 e 1 Coríntios 10.16-17
Autoria:  Emilio Voigt
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação:  13/04/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI


 Quando chegamos ao limite

1. Introdução
 

O texto de prédica e as leituras possuem em comum o tema da aliança entre Deus e as pessoas, embora em Êxodo o pacto se restrinja ao povo de Israel. Em Mateus e em 1 Coríntios, a palavra aliança não aparece explicitamente, porém é pressuposta nas expressões cálice e sangue (Mt 26.28). No Novo Testamento, a aliança é ampliada e configura-se como possibilidade para toda a humanidade. O tema da aliança, contudo, não está no centro da perícope. Ela possui dois eixos específicos: o momento da oração de Jesus (36-46) e o momento de sua prisão (47-56). Cada um deles constitui uma unidade autônoma e poderia servir de base para pregações com ênfases distintas. Nesse sentido, vale a pena conferir as edições anteriores de Proclamar Libertação que abordam o texto.

2. Exegese

V. 36 – Getsêmani (em hebraico: “prensa de óleo”) é uma área localizada no monte das Oliveiras. No v. 30, havia sido indicado que Jesus e seus discípulos foram para lá após a ceia da Páscoa. Nessa época do ano, havia grande número de pessoas em Jerusalém e não era incomum ir ao monte à noite. Excepcional é o sentimento de tristeza e angústia (ARA) ou tristeza e aflição (NTLH) que toma conta de Jesus. A palavra grega para o segundo termo é pouco usada no Novo Testamento e poderia também indicar uma sensação de medo. Em todo caso, a narrativa aponta para um momento dramático.

V. 37-38 – Pedro, Tiago e João presenciaram o resplendor no monte da transfiguração (Mt 17.1-8), e agora o trio testemunha o pavor diante da morte que se aproxima. Jesus revela seu sofrimento com palavras dos Salmos 42.6,11 e 43.5 (LXX: 41.6,12; 42.5). A tradução “profundamente triste” talvez seja ainda fraca para representar a condição de Jesus. Nessa situação de choque e de extrema necessidade, ele pede o apoio dos três discípulos. Anteriormente, Pedro havia assegurado que o acompanharia até a morte. E todos os outros disseram a mesma coisa (26.35).

V. 39 – Não é a primeira vez que Jesus se retira para orar sozinho (Mt 14.23). Prostrar o rosto em terra era uma forma de demonstrar reverência a Deus (Gn 17.3,17). A oração reflete a consciência do que está para vir: o cálice representa o sofrimento. Jesus reconhece ser esse um plano divino, mas perscruta a possibilidade de evitá-lo. Embora tenha anunciado que seria crucificado (26.2), pede que, se possível, não precise passar pelo martírio. Isso está de acordo com a tradição bíblica de que Deus pode mudar seus planos (2Rs 20.1-5; Jr 18.7-9; Jn 3.10). A vontade pessoal é ser poupado de sofrimento e morte. Entretanto Jesus se submeterá à primazia da vontade de Deus, conforme ensinou no Pai-nosso.

V. 40-41 – Ao retornar da oração, Jesus encontra os discípulos dormindo. A repreensão dirigida a Pedro inclui os outros. Os discípulos não conseguiram colocar em prática o que foi requisitado no v. 38: vigiai comigo. Nesse contexto, “vigiar” significa estar no discipulado e tomar parte no sofrimento do mestre. Dormir significa, em termos coloquiais, deixar Jesus na mão. Os discípulos devem orar para não cair em tentação. Essa orientação está associada ao sexto pedido do Pai-nosso. Quem está no discipulado não está livre de tentações, mas precisa superá-las. Nesse sentido deve ser entendida a contraposição entre carne e espírito. Não se trata de uma divisão dualista da pessoa, mas do contraste entre a disposição para o seguimento e a dificuldade de sua efetivação. Aqui a tradução da NTLH ajuda a romper com o dualismo moderno. Os discípulos estavam com o espírito pronto, ou seja, estavam dispostos a permanecer com Jesus para o que der e vier (26.33,35). Na prática, não conseguiram sequer ficar acordados por uma hora. Teriam condições de encarar algo mais? O v. 56 mostrará o quanto a carne é fraca.

V. 42-43 – A repetição da oração reforça a sujeição à vontade de Deus. O desejo de afastar de si o cálice não é mais mencionado, e Jesus ora exatamente como ensinou: Seja feita a tua vontade (Mt 6.10). Ao retornar, novamente encontra os discípulos dormindo. Dessa vez, não há uma reprimenda, nem mesmo se diz que eles acordaram, assim como pressupõe Marcos 14.40. A observação de que os olhos dos discípulos estavam pesados pode estar relacionada à fadiga de um longo dia ou ao momento de transtorno pelo qual passavam.

V. 44-45 – Pela terceira vez, Jesus afasta-se para orar. A repetição aponta para a intensidade e a força da oração (2Co 12.8). Dessa vez, o evangelista apenas relata que Jesus orou com as mesmas palavras da prece anterior, indicando que ele superou o medo e está absolutamente decidido a assumir o plano divino. Essa disposição é manifestada na referência de que a hora já chegou. Pela terceira vez nesse capítulo é anunciado que o filho da humanidade será entregue (26.2,24,45). O termo “pecadores” pode ser um sinônimo para gentios, ou seja, para Pilatos e seus soldados.

V. 46 – A indicação de que o traidor se aproxima prepara a nova cena. Embora pareça estranho, a ação de Judas faz parte do expediente divino. O traidor somente poderá demonstrar sua deslealdade porque isso representa a vontade de Deus e porque Jesus submeteu-se a ela.

V. 47 – Judas chega acompanhado de uma tropa armada, enviada pelos principais sacerdotes e anciãos. A referência a espadas e porretes indica que guarnições romanas estavam envolvidas, uma vez que a polícia do templo não portava espadas.

V. 48-49 – Para que a tropa soubesse quem deveria ser preso, Judas combinou identificá-lo com um beijo. A necessidade de identificação pode ser um indício de que o galileu Jesus não era suficientemente conhecido em Jerusalém. Ou ainda: na escuridão poderia ser confundido com outra pessoa. A saudação com beijo era costume entre pessoas próximas, especialmente entre familiares. O beijo era também manifestação de respeito diante de rabinos, reis ou outras pessoas importantes. Não sabemos se esse costume era praticado no círculo das pessoas próximas a Jesus, assim como foi nas comunidades pós-pascais (Rm 16.16; 1Co 16.20; 1Pe 5.14). Em todo caso, Judas fez mau uso de um gesto de reverência e pertencimento. A invocação “mestre” (Rabi) lembra o v. 25. No Evangelho de Mateus, somente Judas se dirige a Jesus com o termo Rabi, o que indica um certo distanciamento.

V. 50 – A reação de Jesus não tem interpretação consensual. Ela pode ser entendida como pergunta ou como constatação. A comparação entre as versões ARA e NTLH evidencia as duas possibilidades. A tradução como constatação parece ser mais plausível: Jesus sabia por que Judas estava ali e, em tom de repreensão, diz: Para isto (para a traição) vieste! A expressão “amigo”, assim como em Mt 20.13 e 22.12, não caracteriza necessariamente amizade. Após a breve in- teração entre Jesus e Judas, a prisão é efetuada, mas a narrativa ainda não chegou a seu ápice.

V. 51 – Numa demonstração da disposição de defender Jesus ou até de mor- rer por ele, um de seus adeptos acerta a orelha do servo do sumo sacerdote com uma espada. A cena é retratada pelos quatro evangelistas com algumas nuances. Em Lucas e João, o golpe ocorre antes de Jesus ser preso, enquanto em Marcos e Mateus isso acontece depois. Lucas e João noticiam que foi a orelha direita a sofrer o golpe. João diz ser Malco o nome do servo que teve a orelha amputada e define o agressor como sendo Simão Pedro. Em Mateus, o agressor é identificado como “um dos que estavam com Jesus”. Em Lucas, narra-se a cura do homem ferido. A utilização de espada para defesa pessoal era permitida inclusive em dia de sábado. Mas, se os discípulos não deveriam sequer ter um bastão (Mt 10.10), como explicar o porte de uma espada e o uso de violência? A resposta de Jesus amenizará esse paradoxo.

V. 52-55 – Jesus não ofereceu resistência à prisão e reprovou a ofensiva de seu adepto, ordenando-lhe guardar a espada. A fundamentação inicia com uma sentença – os que lançam mão da espada à espada perecerão – que lembra Gênesis 9.6 e segue com uma pergunta retórica afirmando a soberania de Jesus. Se ele quisesse, poderia pedir ao pai doze legiões de anjos (em torno de 70.000) para ajudá-lo nesse momento. Jesus abdica dessa possibilidade, assim como já fizera em Mateus 4.5-7. Em obediência a Deus, não demonstra o seu poder nesse momento. Afinal, como as Escrituras poderiam cumprir-se se ele reivindicasse a proteção a que teria direito?

V. 56-56 – Jesus dirige a palavra ao bando que veio prendê-lo, lembrando que pregava publicamente no templo (Mt 21.23) e não havia necessidade de uma tropa armada para capturá-lo. A cena termina com uma breve referência à fuga dos discípulos: todos fugiram. Essa atitude contrasta com a determinação expressa no v. 35, mas se compatibiliza com o enunciado do v. 31. Com o líder preso, o grupo desarticula-se.

3. Meditação

A primeira cena do Getsêmani representou uma grande dificuldade para grupos cristãos nos primeiros séculos. Jesus fora proclamado como Deus e vencedor sobre a morte. Mas como afirmar a divindade de Jesus com essa narrativa? Críticos do cristianismo perguntavam: Pode um Jesus amedrontado e angustiado com a possibilidade de crucificação ser considerado Deus? No próprio cristianismo havia vertentes que vislumbravam nesse texto uma indicação de que Jesus tinha apenas a natureza humana. Talvez por isso a tradição interpretativa na igreja antiga procurou limitar e relativizar o seu sofrimento. Somente a partir da Idade Média, quando a paixão de Jesus se torna elemento central na piedade cristã, o texto começa a despertar interesse novamente, também na arte sacra. A tradição da Reforma Protestante não vê dificuldades em reconhecer um Jesus frágil e temeroso no Getsêmani. Lutero, porém, destaca a intencionalidade, o pro nobis. Por nossa causa, ou seja, por carregar nossos pecados, Jesus estava nessa condição.

Um Jesus fraco e temeroso não coaduna com teologias da glória e da prosperidade que infestam o cristianismo atualmente. Procura-se, a todo custo, associar a pessoa e a atividade de Jesus a esplendor e vitórias. Não há dúvida de que Jesus Cristo nos deu a vitória. Mas a vitória que recebemos é o triunfo do bem, a reconciliação com Deus e as pessoas. Não é conquista individual, orientada por padrões de prosperidade. O grande poder de Deus não se revelou em pompa, e sim na pobreza e morte atroz. Em Jesus Cristo, Deus faz-se presente na miséria, na fraqueza, na dor, no sofrimento. Deus não é somente força gloriosa, que a tudo subjuga, mas é também fraqueza e humilhação da cruz.

Jesus havia ensinado: “Tudo o que pedirdes em oração, crendo recebereis” (Mt 21.22). Se ele não foi poupado da dor, teria ficado sem resposta a súplica “afasta de mim este cálice”? O complemento “seja feita a tua vontade” é a chave para entender a questão, pois deixa a critério de Deus decidir qual será a resposta. Aceitar a vontade divina quando ela está de acordo com os próprios desejos é agradável. Mas quão difícil é aceitar algo diferente daquilo que imaginamos ou esperamos. Essa parte da oração é um grande exercício de confiança. A disposição de Jesus para aceitar a vontade de Deus também coloca limites em teologias que pretendem ordenar que Deus faça isso ou aquilo.

Nem tudo se pode atribuir à vontade divina. Há coisas que são de respon- sabilidade humana. Jesus foi crucificado porque a sua pregação e a sua ação incomodaram pessoas e grupos. Ao anunciar a proximidade do reino de Deus, Jesus atingiu interesses e perturbou a ordem estabelecida. Por isso foi preso, condenado e crucificado. A responsabilidade das forças políticas na morte de Jesus não pode ser omitida. Ainda assim, a vontade de Deus manifesta-se no fato de que Jesus assumiu sua morte como oportunidade de redenção para a humanidade.

Não apenas Jesus, mas também seus discípulos estavam sob pressão naquele momento. Virtudes e defeitos precisam ser observados a partir dessa perspectiva. Sob que condições ou por quais motivos Judas traiu e delatou Jesus? Poderia ser que suas compreensões sobre o papel do messias não mais se compatibilizassem? Enquanto grupos estavam dispostos a lutar em guerra santa para libertar Israel, Jesus proclamava a renúncia à violência. Talvez Judas estivesse mais próximo dos movimentos revolucionários e se tenha decepcionado com a atuação de Jesus. Também Pedro não esperava por um messias que pudesse sofrer (Mc 8.31-33). Muitas vezes, havia discrepância entre o que Jesus falava e aquilo que era compreendido e efetivado por quem que o ouvia. Em todo caso, chama a atenção que todos abandonaram Jesus no momento mais difícil. Possivelmente, a fuga foi motivada pela ânsia de salvar a própria vida. O que levou Judas a trair Jesus permanece um mistério. É fácil recriminá-lo, porém convém lembrar que o julgamento de seus atos cabe unicamente a Deus. Provavelmente estavam todos no limite de suas forças e convicções.

4. Indicações para a prédica

O texto é longo e carregado de detalhes, que dificilmente podem ser trata- dos em uma única pregação. Os sentimentos de Jesus, a ação de Judas ou a reação dos discípulos diante da prisão são os tópicos normalmente abordados. Com en- foque na súplica de Jesus, é possível abordar o tema da prática da oração e sua importância para a vivência cristã. Foi justamente a oração que permitiu a Jesus superar a inquietação e o pavor. O medo e o desejo de ser poupado de sofrimento fazem parte da encarnação, da natureza humana que Jesus assumiu. A temática das duas naturezas pode ser um aspecto a ser desenvolvido.

Outra possibilidade para a pregação seria analisar o papel dos diferentes personagens a partir de algumas perguntas: o que dizem, o que fazem, o que seria esperado, o que faríamos nós se lá estivéssemos, o que fazemos quando chegamos ao limite de nossas forças e convicções? Abaixo segue um panorama breve e parcial de ações dos personagens:

Jesus: começou a entristecer-se e a angustiar-se (37), alma profundamente triste (38), vigiai comigo (38), passe de mim este cálice, mas não seja como eu quero (39), vigiai e orai (41), se não é possível passar este cálice, faça-se a tua vontade (42), orou pela terceira vez com as mesmas palavras (44), chegou a hora (45), o que tens a fazer, faze-o agora (50), guarde a espada (52), poderia rogar ao Pai para enviar doze legiões de anjos (52).

Pedro, Tiago e João: achou-os dormindo (40), outra vez dormindo (43), ainda dormis e repousais (45).
Judas: eis que chegou Judas (47), aquele a quem eu beijar, prendei-o (48), salve, Mestre! E o beijou (48), amigo, para isto vieste (50).

Um dos que estavam com Jesus: sacou da espada e cortou a orelha do servo (51).

Lideranças e seus enviados: grande turba com espadas e porretes (47), deitaram as mãos em Jesus e o prenderam (50), saístes com espadas e porretes
para prender-me? (55).

Todos os discípulos: Então, os discípulos todos, deixando-o, fugiram (56).

Bibliografia

FIEDLER, Peter. Das Matthäusevangelium. Stuttgart: Kohlhammer, 2006.

LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus (EKK, I/4). Düsseldorf, Zürich: Benziger, Neukirchener, 2002.


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Autor(a): Emilio Voigt
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: Quinta-feira Santa
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 26 / Versículo Inicial: 36 / Versículo Final: 56
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2016 / Volume: 41
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 45417
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