Prédica: Mateus 21.14-17
Leituras: Isaías 12 e Atos 16.20-25
Autor: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: Domingo de Louvor através da Música
Data da Pregação:
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
No princípio era a música, e a música estava com Deus, e a música era Deus…
Carlos A. R. Alves
1. Introdução
Muito cedo, a música tornou-se expressão singular de sentimentos interiores de alegria e angústia. A voz, nosso instrumento natural, passou de veículo da comunicação pessoal imediata para veículo de valores e sentimentos que ocupavam a mente e o coração humanos. Como forma de expressão artística, tornou-se uma das mais apreciadas expressões da subjetividade humana, sendo, com canto ou somente com instrumentos, uma linguagem de alcance universal.
Na Bíblia, a música é frequentemente citada e muito cedo foi incorporada às celebrações da religião judaica e dos primeiros cristãos. A música foi veículo de diferentes expressões de fé: louvor a Deus, confissão de fé, oração, confiança etc.
Carlos Alberto Rodrigues Alves afirma: “Poemas, salmos e canções sempre chegam primeiro à nossa existência. São os responsáveis pelo nosso ‘abalo metafísico’. Pertencem às categorias que despertam em nós o espanto primordial e o encanto, sempre essencial, frente à esfera do sagrado. Teses teológicas, confissões doutrinárias e dogmas são explicações e construções intelectuais. Posteriores tentativas de explicar o amor e a dor”.
Os textos que temos diante de nós harmonizam-se muito bem entre si. O texto de Isaías coloca o canto como expressão de louvor a Deus, como fruto do reconhecimento dos milagres e manifestações divinas na história do povo de Israel. O canto tanto é expressão da vida pessoal em relação diária com Deus como reconhecimento do senhorio de Deus sobre a natureza e a história. O texto de Atos coloca o canto como expressão da fé, que, mesmo diante das provações, tem na presença e cuidado de Deus o seu horizonte. Paulo e Silas experimentam a prisão como se estivessem longe daquele ambiente hostil e ameaçador.
O texto de Mateus 21 coloca o canto como a mais genuína expressão de fé. Essa não é comprometida com a inveja e a criticidade dos oponentes de Jesus. É espontânea e alegre, e por isso ninguém poderá calá-la.
2. Exegese
O texto de Mateus 21.14-17 está colocado imediatamente após a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém e o relato conhecido como purificação do templo. É um momento de reconhecimento de sua messianidade por parte do povo, em clima de euforia. É momento também de evidência de sua oposição ao sistema político-econômico que se instalou no templo e que distorceu a espiritualidade do judaísmo. Textos posteriores tratam do confronto de Jesus com a liderança do templo em torno do tema da autoridade. Tratam da rejeição de Israel ao Messias.
Em meio à intensidade de emoções desses dois momentos, Jesus continua a experimentar o assédio do povo. O v. 14 diz que “vieram a ele, no templo, cegos e coxos, e ele os curou”. Trata-se de um gesto constante e crescente em seu ministério. O povo simples e necessitado, que povoava as cercanias do templo, procurava-o cada vez mais, trazendo suas dores e carências.
Como quem desconsidera os interesses políticos que rondavam sua aproximação a Jerusalém, Jesus continua cercado pelo povo. Tudo o que Jesus fazia (milagres, pregações, gestos) era interpretado para além do simples gesto. Tudo adquiria um sentido simbólico maior. Tudo era interpretado à luz das hipóteses formuladas em torno de sua missão e identidade. A sensibilidade de Jesus, entretanto, estava voltada às pessoas, nesse caso às crianças. Era como ter um ouvido seletivo – em vez de ouvir quem tramava sua morte, preferia ouvir expressões autênticas de fé e confiança.
Os sacerdotes e escribas, representantes do judaísmo e do Sinédrio, aproximavam-se observando, inquirindo e interpretando o que acontecia ao redor de Jesus. Nos v. 15-16, as autoridades indignavam-se vendo “os meninos clamando: Hosana ao Filho de Davi!” e perguntavam “Ouves o que esses estão dizendo?”, como se achassem natural julgar que estavam fazendo afirmações perigosas. Para eles, mexer com o tema da messianidade de Jesus é algo altamente perigoso.
Jesus valia-se da singeleza da expressão infantil para referendar a autoridade dessas: “Sim; nunca lestes: Da boca de pequeninos e crianças de peito tiraste perfeito louvor?”, citando palavras do Salmo 8. Fica claro aqui a referência que Jesus fazia ao louvor, que é próprio de quem reconhece e admira o agir de Deus na história. Ele é fruto de uma confiança de que o poder de Deus se manifesta na fraqueza humana.
Jesus, ao jogar luz sobre uma expressão humilde e espontânea, condenou o olhar humano que julga Deus segundo interesses humanos. Quem se aproxima dele com ideias preconcebidas e com interesse de “enquadrar” Deus em esquemas religiosos com certeza ficará sozinho.
O texto lança as bases para a legítima expressão da música e do louvor: se não for fruto de encantamento, entrega e gratidão, não será legítima.
O texto encerra no v. 17 afirmando a localidade onde Jesus e seus seguidores passaram a noite: Betânia (distante uns 3 km).
3. Meditação
A reflexão do louvor e da música tem dois pontos de partida. Um deles trata das condições para o surgimento do louvor a Deus, e outro, da percepção das expressões genuínas de louvor a Deus em nosso mundo. A música, como veículo primordial desse louvor, é um segundo tema.
O nosso texto fala da gênese do louvor ao reverso através da postura dos representantes do Sinédrio e dos fariseus que cercavam Jesus no contexto de sua chegada a Jerusalém. Destaca-se nessa postura uma atitude de suspeição em relação aos propósitos de Jesus. A popularidade desse homem de Nazaré era motivo de preocupação. Se alguns reconheciam a origem divina dele, outros, esbarrando na possibilidade do Messias ser de origem divina, viam em Jesus um usurpador indigno de um status e, consequentemente, um blasfemador. Reconheciam a riqueza e profundidade de sua pregação, mas o desautorizavam a falar em nome de Deus. O resultado dessas posturas era uma relutância extrema em reconhecer em Jesus um mensageiro que lhes poderia apontar novos caminhos para sua visão de Deus e sua religiosidade. Além disso, sua mentalidade calculista e comprometida com um sistema de méritos não lhes permitia compartilhar da postura de Jesus permeada pela graça. Jesus, além de usurpador, era visto como leviano e até libertino em sua conduta.
O louvor a Deus não brota de um coração que impõe condições de credibilidade e restringe o agir de Deus às condições humanas de sua compreensão. O louvor a Deus é primeiramente cheio de gratidão. Louva quem exercita diariamente a gratidão. Deus dá-nos muito mais do que percebemos e pedimos. Quem louva também confia no agir soberano de Deus. O louvor parte do reconhecimento de nossas limitações. Somos cegos e coxos, que são retirados da escuridão e da mendicância para um viver restaurado e cheio de dignidade.
As crianças personificam um louvor sincero e espontâneo. Elas provavelmente compartilham da expectativa libertadora que a vinda de Jesus representa. Não estão preocupadas com a possibilidade de aceitação política de Jesus por parte do Sinédrio. Estão gratas pelos sinais de cura e libertação que Jesus promove. Num mundo em que o caminho a Deus está repleto de condições, regras e recriminações, Jesus aparece como alguém que se importa com os pequenos e anuncia um caminho marcado pela graça, pelo perdão e pela restauração.
Poderíamos dizer que o louvor nasce de um processo de descomplicação de nossa relação com Deus. O exercício da gratidão a Deus tira-nos de uma postura reivindicadora e resignada. Dá leveza e alimenta a esperança na vida cristã
Um segundo aspecto tem a ver com a percepção dos sinais de louvor a Deus que existem ao nosso redor. É preciso reconhecer que as expressões de louvor podem brotar em lugares e situações improváveis. Assim como o agir de Deus, pelo vento do Espírito, é livre e soberano, assim também não podemos prever onde e quando a natureza e as pessoas irão espontaneamente expressar gratidão e louvor ao Criador. Se o pecado bloqueia o reconhecimento do agir de Deus, a graça reconecta a criação com o Criador e reconhece sua grandeza e agir no mundo.
O Espírito lembra-nos do agir de Deus testemunhado na palavra de Deus. “Nunca lestes?”, questiona Jesus. Nesse sentido, ter contato com a palavra de Deus e estar aberto a seu testemunho ajuda-nos a louvar.
Quem tem o Espírito de Deus percebe e alegra-se com o agir do Espírito. Claro que convivem dentro de nós o espírito do medo e da autossuficiência e o espírito que clama e confia em Deus. O louvor brota quando permitimos ao Espírito de Deus conectar-nos a Jesus e ao Pai. Só então percebemos que não estamos sozinhos e desamparados, mas ricamente abençoados.
O tema do perfeito louvor agora tem uma base segura para ser compreendido. O canto e a música instrumental perdem boa parte de seu valor se não tiverem a experiência do genuíno e espontâneo louvor como ponto de partida. Lembro muito bem de nossa professora de música na Faculdade de Teologia comentando como soava bonito o canto de nossos grupos de canto da época, formado por pessoas pouco técnicas. Ela afirmava que se devia à atitude de fé dos componentes.
Não precisamos radicalizar no sentido de pretender fiscalizar com que atitude a música é executada. A música, mesmo executada sem muita convicção e atitude, contagia, pois é instrumento do Espírito para reconectar as pessoas a Deus. Claro que, se for executada com convicção, pode ser melhor usada.
Também não devemos sobrevalorizar a atitude em detrimento da técnica. Uma música mal executada não só desanima como pode ser sinal de desleixo e ingratidão a Deus. Deve haver um empenho pelo aprendizado da música, pela valorização do canto, pelo acompanhamento instrumental do canto nos cultos. Aliás, é bom lembrar que o espaço do canto comunitário é primordialmente o do culto cristão, compreendido como encontro da comunidade com Deus. A música mais qualificada, seja de corais ou grupos instrumentais, tem seu lugar na comunidade. Ela tem o papel de incentivar o canto da comunidade e o louvor a Deus.
4. Imagens para a prédica
1 – Em Linden, Alemanha, cerca de 300 jovens que ensaiavam a parte coral do “Die Zehn Gebote – ein Pop-Oratorium” (Os Dez Mandamentos – um Oratório Pop) reuniram-se discretamente num shopping de sua cidade e começaram a cantar o tema final da obra. Os consumidores não puderam evitar de parar com sua rotina, admirar a apresentação e deixar-se encantar pela mensagem da música (Liebe ist das Gebot. Liebe allein schließt alles ein, Liebe weiß und vergibt. Liebe ist das Gebot. Was ihr auch tut, alles ist gut, wenn der eine den andern liebt! / O mandamento é o amor. O amor sozinho resume tudo. O amor sabe e perdoa. O mandamento é o amor. Faça o que fizer, tudo é bom quando se faz a alguém por amor). Ver em: www.youtube.com/watch?v=OcFOZEwiNb8.
2 – Conta-se que um amigo levou um índio para passear no centro de São Paulo. Seus olhos não conseguiam acreditar na altura dos edifícios, e ele mal conseguia acompanhar o ritmo frenético das pessoas indo e vindo. Espantava-se com o barulho ensurdecedor das sirenes, dos automóveis, as pessoas falando em voz alta. De repente, o índio falou: Ouço um grilo... O amigo, espantado, retrucou: Impossível ouvir um inseto tão pequeno nesta confusão! O índio insistiu que ouvia o cantar de um grilo. Tomando o seu cicerone pela mão, levou-o até um canteiro de plantas. Afastando as folhas, apontou para o pequeno inseto: Como?, perguntou o amigo, ainda sem crer. O índio pediu-lhe algumas moedas e então jogou-as na calçada. Quando elas caíram e ouviu-se o tilintar do metal, muita gente se voltou: Escutei o grilo porque o meu ouvido está acostumado com esse tipo de barulho. As pessoas aqui ouvem o dinheiro caindo no chão porque foram condicionados a reagir a esse tipo de estímulo. Depois arrematou: A gente ouve o que está acostumado ou treinado a ouvir.
3 – Tudo começou com a foto de pássaros pousados nos fios de luz de uma rua no interior do Rio Grande do Sul, feita pelo repórter fotográfico Paulo Pinto, de 49 anos. Uma cena normal, dependendo do olhar. Para o publicitário paulistano Jarbas Agnelli, de 46 anos, a imagem “soou” como música. Notas numa partitura foram o que lhe pareceram as aves nos fios de alta tensão. Publicitário e músico, Agnelli recortou a foto publicada no Estadão na quinta-feira passada e, naquela noite, no estúdio de sua casa, começou a compor com base nas notas que enxergou na imagem. “A inspiração pode vir de qualquer lugar, mas é preciso estar atento”, diz ele. Pássaros pousados em fios de energia existem em todo lugar, mas perceber música a partir de seu posicionamento requer um olhar especial. A natureza sempre canta louvores ao Criador, porém poucas pessoas percebem essa música.
5. Subsídios litúrgicos
Oração de confissão de culpa:
Querido e amado Deus, pedimos perdão por nossos lábios calarem-se diante de tantos sinais de teu cuidado e amor. Perdão pelo canto que não brota de um coração grato e cheio de louvor. Perdão pela insensibilidade em reconhecer o teu agir fora dos limites de nossa percepção. Perdão pela falta de esperança, perdão pelo silêncio resignado diante da dor. Permita que percebamos sinais de louvor ao nosso redor. Crianças, pobres, doentes que te louvam enquanto sofrem. Ponha também em nosso coração a mesma fé e esperança que saúda o dia, mesmo antes do amanhecer. Amém.
Costura para a Liturgia da Palavra (Livro de Culto, VII. 305)
Oração do dia:
Tua igreja canta a Ti, Senhor, pois não cabe a ela outra atitude senão o louvor. O sopro de vida da criação ainda é sentido em nosso corpo. Tudo em nós nos move a te louvar. Em nosso coração, teu amor revelado em Jesus sara nossas chagas. Em nosso coração vibra a paz do Ressuscitado, e o fogo do Espírito arde em nosso meio. Se não te louvarmos, as pedras, os mares e os céus clamarão. Sejas tu engrandecido eternamente por nosso humilde cantar. Na eternidade, nosso louvor será perfeito, digno de tua grandeza e santidade. Em nome de Jesus, oramos. Amém.
Oração pós-comunhão (Livro de Culto, VII.324, nº 2)
Litania de adoração (Livro de Culto, VII.333, nº 16)