Prédica: Mateus 2.1-12
Leituras: Isaías 60.1-6 e Efésios 3.1-12
Autoria: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: Epifania
Data da Pregação: 06/01/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Deixemo-nos guiar pela estrela
1. Introdução
Epifania, a revelação de Deus, faz parte do ciclo de Natal. Nela, comemoramos o fato de que Jesus foi manifestado não somente ao seu próprio povo, mas a todos os povos e nações, representados pelos magos/sábios do Oriente. Esse dia proclama uma grande verdade da fé: que a salvação em Jesus é para todos os povos, sem distinção de raça, cor ou religião.
A Carta de Paulo aos Efésios leva aos gentios a mensagem da coparticipação no corpo e nas promessas de Cristo por meio do Evangelho. Este não pertence aos judeus apenas, mas a todos os povos do mundo que esperam e se abrem à salvação dada por Deus.
O profeta Isaías anuncia a luz da glória de Deus que se manifestará às nações que ora vivem na escuridão e nas trevas da opressão e maldade. Anuncia que filhos e filhas virão de perto e de longe para se unir no mesmo projeto de salvação que trará alegria, pois haverá abundância para aqueles que sofrem.
O Evangelho provoca reações diversas. Por um lado, de alegria, naquelas pessoas que o procuram e escutam, que o acolhem com amor. Por outro, de medo, naquelas pessoas que se asseguram em seus privilégios e suas leis. Toda a humanidade é chamada a participar da mesma herança e formar o mesmo corpo e a participar da mesma promessa.
2. Exegese
O Evangelho de Mateus tomou forma por volta do ano 85 d. C., após longo processo de compilação de tradições orais e escritas das palavras e práticas de Jesus. A destruição do Templo de Jerusalém pelo exército romano já havia acontecido (ano 70 d. C.). Os vários grupos judaicos que participaram dessa guerra foram massacrados. Os sobreviventes tiveram que fugir. Algumas comunidades foram para a Fenícia, Síria, até a região da Antioquia. Lá, as comunidades foram integradas por judeus da diáspora e de gentios convertidos. Nesse período, começam a se intensificar as perseguições das autoridades judaicas a grupos de judeus de tendências e tradições diferentes. Os destinatários desse evangelho provavelmente viviam na Síria, em Antioquia. O Evangelho de Mateus surge para animar essas comunidades que seguiam Jesus desde a Palestina.
Com a destruição do Templo de Jerusalém, os grupos influentes, como saduceus, zelotes, sicários e herodianos, se desarticularam. Sem o templo, uma forte crise se desencadeou: o que é ser judeu? O que define o judaísmo? O judaísmo precisou se reorganizar para sobreviver. Especialmente os fariseus se empenharam em reunir os valores da fé judaica, centrados agora numa instituição central: a sinagoga.
O conflito entre judeus fariseus e judeus cristãos cresce à medida que os judeus fariseus se consideram o verdadeiro Israel e os intérpretes legítimos da Lei de Moisés. Controlavam o povo a partir das sinagogas, de onde explicavam e interpretavam a Lei. Acreditavam que a libertação do povo só aconteceria através do cumprimento da Lei do puro e impuro (Lv 11 – 15). Desta forma, o número de pessoas excluídas das sinagogas era grande, como os pobres, doentes, estrangeiros e deficientes.
De outro lado, os judeus cristãos também se consideravam como o verdadeiro Israel. Entre eles, os excluídos eram acolhidos, pois viam nas palavras e atitudes de Jesus uma nova interpretação da Lei, especialmente quando ele diz: Misericórdia é o que eu quero, e não o sacrifício (Mt 9.13; Os 6.6).
Além do conflito externo com judeus fariseus, havia conflitos internos, já que a maioria que compunha as comunidades eram judeus cristãos que traziam consigo a tradição judaica e a observância da Lei. À medida que cristãos helenistas se integram, a influência da cultura grega faz com que haja uma posição mais aberta em relação à Lei. Além dos conflitos gerados pela sua interpretação, existe a ideia da superioridade dos judeus em relação aos gentios e a disputa pela liderança.
Desta forma, as comunidades de Mateus tiveram que fortalecer sua unidade enfrentando divergências internas e externas, propondo um diálogo mais aberto e fraterno. Crê-se que o evangelho teve a intenção de servir para a catequese das comunidades, dando luz às palavras e atitudes de Jesus, animando todos a perseverarem no seu seguimento.
A estrutura de Mateus é composta por cinco partes, mais uma introdução sobre as origens de Jesus e uma conclusão com a narrativa da morte e ressurreição de Jesus. Nosso texto faz parte da introdução e é material exclusivo desse evangelho.
Para Mateus, Jesus de Nazaré é o Messias tão esperado pelo povo judeu. Vemos esse aspecto também no título messiânico que só Mateus apresenta dessa forma: Filho de Davi (cf. 12.23; 15.22; 21.9,15). Salta aos olhos, também, o fato de que a árvore genealógica em Mateus começa com Abraão, o homem com quem Deus iniciou a história de Israel (1.1ss). Segundo Mateus, se Jesus é o Messias, isso não significa que ele veio para abolir a Lei, mas para cumpri-la (5.17).
O texto de Mateus 2.1-12 é altamente simbólico. Apresenta uma técnica da literatura judaica chamada “midraxe”, ou seja, uma releitura de passagens bíblicas com a intenção de atualizá-las. Assim, Mateus quer ensinar algo sobre Jesus usando figuras e símbolos tirados de diversos textos das Escrituras judaicas. O texto está subdividido em três cenas:
1) Nascimento de Jesus em Belém sob o poder do império opressor romano. A vinda dos magos do Oriente, que decifram os sinais para homenagear o rei dos judeus, é uma releitura da profecia de Balaão em Números 24.17. Ela reconhece em Jesus a estrela descendente de Judá, o Messias Deus conosco. A palavra mago (magoi) é traduzida por sábios do Oriente, que poderiam ser sacerdotes, talvez da Pérsia (hoje Irã/Iraque). Eles têm outra religião. O texto não diz que pelo fato de vir homenagear/adorar ao menino Jesus eles tenham mudando de religião. Eles não vieram visitar o menino Jesus porque reconheceram que a religião dos judeus era superior à religião deles. Eles apenas reconheceram que na religião dos judeus havia coisas boas que vale a pena conhecer e respeitar. E, provavelmente, ao voltarem para sua terra, continuaram praticando a sua religião.
2) Preocupado, Herodes convoca os chefes dos sacerdotes e mestres da Lei para encontrar o Messias. Eles confirmam que o rei dos judeus nascerá em Belém, conforme a profecia de Miqueias 5.2. Eis uma comparação importante: os magos sabem entender os sinais; Herodes, os sacerdotes e escribas, que apesar de terem a Lei e os profetas nas mãos, não reconhecem nem compreendem nada. Herodes procura uma solução: perseguir para eliminar essa ameaça. Age da mesma forma que o faraó do Egito diante da ameaça da força do povo hebreu (Êx 1 – 2). Para concretizar seu plano, pede aos magos que o mantenham informado da localização do menino para adorá-lo também.
3) Os magos partem, seguindo a estrela que agora ressurge e os guia até o menino. Eles chegam à casa onde ele está com sua mãe. Agora, não estão mais em uma estrebaria. Estão numa casa. Há lugar para eles e para todos que vierem homenageá-lo/adorá-lo. Os magos expressam o seu reconhecimento com preciosos presentes, com o melhor que há em suas terras. Os estrangeiros sabem discernir os sinais e são guiados pela estrela. Voltam para suas terras, avisados em sonho, para não permitir que o poder dominante mate a criança.
3. Meditação
Por ser material exclusivo de Mateus, o texto chama a atenção para as reações diferentes diante do nascimento de Jesus. Os que deveriam reconhecer o Messias, pois são versados na Lei, ficam alarmados. Outros, pagãos do oriente, buscando sem ter certeza, arriscam muito para descobrir o Deus anunciado pelos profetas, o guia que apascentará o povo, para entregar-lhe presentes preciosos.
A estrela que guiou os magos, normalmente, está presente nas imagens ou representações da cena do Natal. Sim, ela revelou aos magos a vinda do menino. Mas ela desaparece em Jerusalém. Quando os magos partiram para Belém, no caminho, ela os precedeu (v. 9). Por que ela não brilhou em Jerusalém? Lá estavam os principais sacerdotes, fariseus e mestres da Lei que compunham o Sinédrio e ditavam para o povo a interpretação da Lei e as regras para o comportamento da vida judaica. Porém nenhum desses viu a estrela ou a nenhum deles ela foi revelada.
Para Mateus, o Reino dos Céus, que veio para restabelecer a autoridade soberana de Deus, será reconhecido no filho nascido em Belém, anunciado pela antiga aliança. Ele escreve entre os judeus e para os judeus, procurando mostrar na pessoa de Jesus o cumprimento da Escritura. Essa concretização da antiga aliança não foi revelada às autoridades judaicas, mas a pessoas de povos pagãos.
Há nesse texto algo muito peculiar e importante: o sofrimento do povo sob regime autoritário, violento e corrupto, traz a memória da escravidão no Egito. Tanto lá como aqui, ao se dar conta ou ser avisado de um possível perigo de um “salvador” ou do Messias esperado, a reação do rei é de alarme, de medo pela perda do poder. Sentindo a ameaça, ele e o faraó buscam por alternativas que, na maioria das vezes, são violentas ou ardilosas: dissimular, enganar e mandar matar. E também não é por acaso que grandes sacerdotes e escribas (autoridades religiosas) se aliam ao poder político na identificação do lugar onde devia nascer Jesus, pois percebiam que, há séculos, sua religião oficial deixara de brilhar como luz profética na defesa da vida, do amor e da liberdade.
Hoje, verificam-se as mesmas reações diante de Jesus e do seu Evangelho. Muitos querem reduzir a religião a algo folclórico com shows e eventos comoventes, mas que, de forma alguma, possa questionar a nossa sociedade e os seus valores. Em tempos de fake news, essa poderosa arma que governos usam para ludibriar o povo, argumentos como “querem acabar com a raça branca; os estrangeiros imigrantes estão ameaçando a nação; o cristianismo está em perigo; os opositores querem acabar com as famílias insuflando a ideologia de gênero” fazem com que uma grande parcela da população acredite nos profetas e sacerdotes do rei. Ameaças, discursos de ódio, perseguições pessoais e até assassinatos estão se tornando comuns e justificáveis por seus seguidores. Diante disso, o evento da Epifania, da revelação divina a povos e pessoas diferentes, em detrimento ao seu próprio povo, ou melhor, às suas lideranças religiosas e políticas, nos faz ver a luz da estrela no caminho, não na capital, não entre a segurança dos muros.
A luz que se revela no caminho, ainda hoje nos dá a dimensão da busca, do movimento, É preciso soltar as seguranças que nos paralisam para ir, para seguir a estrela, para encontrar o que Deus prometeu ao seu povo. Povo que não é composto pela sua cor de pele, nacionalidade, classe social ou orientação sexual, mas que é plural, diverso, universal.
Os magos nos convidam a abrir nossos olhos e nossas mentes, a fim de não sermos enganados e enganadas pelas mentiras dos poderosos através da mídia e, como eles, buscar caminhos alternativos para garantir a vida. A vida é o bem mais precioso. As parteiras desobedeceram ao faraó e não mataram os meninos; os magos voltaram por outro caminho para que o rei não encontrasse o menino. Assim como os magos, estejamos à procura de Jesus para segui-lo. Quantas pessoas, de modos diferentes, estão à procura de Jesus, que se manifesta de diversas maneiras na vida das pessoas, e que estão sedentas e à procura dessa luz? Jesus não precisa de presentes, mas do nosso esforço na vivência das relações do Reino de Deus.
A salvação é para todos – uma mensagem mais do que nunca importante ao nosso mundo, no qual fervem sentimentos de divisão, de xenofobia, de ódio religioso e racial. Daí a importância de, enquanto Igreja de Jesus, sair ao encontro do mundo de hoje, multicultural e pluralista. Nossa preocupação não é primeiramente “converter” pessoas de outras religiões, mas é seguir a “estrela” que leva a experimentar o amor universal e misericordioso de Deus, manifestado em Jesus, através da nossa vivência como seus discípulos e suas discípulas.
4. Imagens para a prédica
1. Henry van Dyke, pastor presbiteriano, escreveu uma lenda russa em 1896. Nela, os sábios não eram três, mas quatro. Essa lenda pode ser acessada em:
2. Em grandes centros, as cidades se modificam rapidamente: casas onde havia grandes famílias bem situadas, em pouco tempo se transformam em revendas de carros ou prédios de escritórios e comércio. A comunidade percebeu a sua igreja e o centro comunitário distantes da moradia das famílias, que agora se mudaram para apartamentos e condomínios mais seguros. Ao lado do centro comunitário, num terreno desocupado, algumas famílias indígenas se instalaram quando vieram vender seus produtos na cidade. Ao ouvirem os cantos e o barulho das crianças no seu encontro do Culto Infantil, algumas crianças indígenas se aproximam. Uma das crianças foi até o portão e convidou as visitantes para participar. Foi uma grande festa! As crianças da comunidade estavam por demais curiosas para conhecer esses novos amigos e amigas. Uma das melhoras parte do encontro foi a hora do lanche. Uma mesa enorme com bolos, cachorro-quente, sucos naturais. Todos saíram felizes e foram contar a seus familiares a grande novidade. Qual foi a reação de pais, mães e avós? (Deixo para você continuar essa história conforme a vivência, os valores e a reflexão da sua comunidade.)
5. Subsídios litúrgicos
Deus de muitos nomes
Deus de muitos nomes!
Vem e caminha conosco, para que possamos caminhar em tua graça e paz.
Enche-nos de esperança para que possamos romper as barreiras.
Inspira-nos em nossa caminhada ecumênica, tornando possíveis o encontro e o diálogo.
Envia teu Espírito para nos fortalecer em nosso compromisso profético de proclamar libertação.
Que teu Espírito seja uma suave brisa quando necessitamos de consolo e segurança, mas que seja vento forte quando estivermos demasiadamente acomodados e devamos falar com firmeza.
Que tua paz vivificadora entre em nossos corpos e se expresse em ações de paz entre as pessoas, entre as igrejas e religiões e entre as nações.
Que tua graça, que transforma o mundo, nos inspire a unir nossas mãos e a declarar a liberdade que teu amor nos dá.
Derrama, Senhor, as tuas bênçãos sobre nós em nosso caminhar, anunciando a boa nova da justiça, do serviço e da aceitação. Amém.
(Milton Schwantes e Elaine Neuenfeldt)
Bibliografia
NAKANOSE, Shigeyuki; MARQUES, Maria Antônia. Deus Conosco: o Messias da justiça e da misericórdia. Entendendo o Evangelho de Mateus. São Paulo: Paulus, 2014.
GIESE, Nilton. Meditação sobre o Evangelho de Mateus 2.1-12. Disponível em: <https://cebi.org.br/noticias/coisas-boas-para-conhecer-e-respeitar-emoutras-religioes/>.
Voltar para índice do Proclamar Libertação 47