Mateus 18.21-35

Auxílio Homilético

13/09/2020

 

Prédica: Mateus 18.21-35
Leituras: Gênesis 50.15-21 e Romanos 14.1-12
Autoria: Evandro Jair Meurer
Data Litúrgica: 15° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/09/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

Qualidade e reciprocidade do perdão

1. Introdução

Quantas vezes o tema do perdão deve ainda fazer parte do Proclamar Libertação? Sete? Bem, então faltam só duas, pois esta é a quinta vez que o texto de Mateus 18.21-35 é pauta homilética (X, XVIII, 30, 32). Mas você há de convir: nem se fosse a 77ª ou a 490ª vez, o tema do perdão e principalmente sua real e integral vivência seriam contempladas. Se concordamos com Gerson Monteiro (www.extra.globo.com) de que “Perdoar é sinal de inteligência”, o QI da maioria de nós é muito baixo. Somos expert em ofender e perdoar só de boca, mas não esquecer. A qualidade do perdão é que importa e não somente a quantidade de vezes. Só esse argumento já é suficiente para nos animar à preparação de mais uma prédica sobre a parábola do credor incompassivo (O empregado mau, cf. NTLH) e sobre a infinitude qualitativa do perdão.

O final do Gênesis (50.15-21), que nos relata sobre a magnanimidade de José para com seus irmãos e suas lágrimas derramadas diante da memória das palavras do falecido pai, Jacó, são um pilar para a unidade temática. Uma parábola real a respeito de 11 motivos (irmãos) para perdoar.

Romanos 14 (1-12), mesmo não enfocando o tema do perdão, pode colaborar com a temática. Paulo apela para a tolerância em relação à fraqueza de fé e ao julgamento que se faz mutuamente, que constantemente se manifesta de diferentes formas nas diversidades presentes na comunidade. Tolerância e perdão se relacionam intimamente

2. Exegese

Numa estruturação singela, o texto poderia ser dividido em duas partes:

a) V. 21 e 22: a indagação de Pedro e a resposta de Jesus.

Ah, esse Pedro! Sempre o mais metido, ousado, intrépido, curioso, inteligente, temperamental, espontâneo, ingênuo, interessado dentre os 12 apóstolos, sempre tomando a dianteira em palavras e ações: seja para andar sobre as águas (Mt 14.28-33), responder às perguntas de Jesus (Mt 16.13-20), cortar a orelha de alguém (Jo 18.15-18), ou negar Jesus três vezes (Mt 26.69-75), sem contar seu protagonismo conforme relatos de Atos dos Apóstolos (cap. 2 – 4). Agora, aqui, ele aparece lançando uma pergunta para Jesus. A NTLH é precisa na formulação: Senhor, quantas vezes devo perdoar  o meu irmão que peca contra mim? Sete vezes?. A informação de Pedro ter chegado mais perto (aproximando-se) de Jesus para questioná-lo não é mero detalhe. Um “particular” com Jesus faz parte do processo de discipulado, mas da mesma forma a prudência em não se expor diante da temática ou da dúvida é legítima. O interesse em aprender é crucial. A preocupação numérica recebe uma resposta numérica à altura. Pedro parece conhecedor e querer restringir o tema do perdão à contabilidade de Gênesis (4.23-26). Mas vai conhecer agora a matemática evangélica da Boa-Nova de Jesus. Pedro está conseguindo ver somente o cotidiano viciado em números, leis e limites. Jesus está falando de reino dos Céus. Pedro representa a voz da quantidade, Jesus é porta-voz da qualidade. O modo humano de pensar é quantitativo. O modo divino, celestial de ver as coisas é qualitativo. O importante não está na quantidade mínima ou máxima de vezes que se venha a conseguir perdoar alguém, mas na qualidade desse receber e dar perdão.

b) V. 23-35: a parábola

Falar por parábolas é algo típico de Jesus. Em sua missão de explicar a nova proposta de Deus e o seu jeito novo de “acertar as contas”, ele apela constantemente para esse recurso de linguagem. “O QUE SÃO PARÁBOLAS? […] As parábolas narram um caso fictício que tem a ver com a vida. De forma geral, a parábola é caracterizada por um elemento de comparação. […] Em aramaico, […] o termo ‘parábola’ tinha o sentido de ‘palavra enigmática’. Parábola é uma comparação que contém um enigma, um mistério, um elemento surpresa. Quem ouve precisa refletir e descobrir o sentido. Se é preciso descobrir o sentido, então é possível que uma parábola seja compreendida de maneira diferente. Sim, a parábola possibilita a diversidade! […] Jesus não espera somente que nós desvendemos o enigma das parábolas. Suas parábolas têm uma aplicação, ou seja: convidam para a ação” (Curso Redescoberta do Evangelho. 1 – Parábolas de Jesus, p. 6).

A ilustração enigmática, mesmo que se referindo a questões do mundo de negócios da época (crédito-débito, ativo-passivo, dívida-quitação, cobrança--acordo, cem-milhões), em sua essência vai muito além. A parábola aponta para postura de vida, atitude coerente, diferenciada, qualificada, sistêmica. Congruência e simetria entre o receber e conceder, aqui no caso perdão, mas na verdade vale para muitos outros valores desse reino alternativo apresentado por Jesus.

Bastaria apenas raciocínio lógico, um mínimo de inteligência, para pressupormos o que deveria ter acontecido: um foi perdoado em “milhões”, logo, natural e logicamente, este mesmo perdoaria facilmente a dívida de alguns poucos grãos de “milhos”. Mas justamente no desnaturado e ilógico agir humano, de ontem e de hoje, é que reside a necessidade e a importância da parábola. Se recebemos perdão de uma dívida milionária, por que não somos capazes de perdoar o mínimo?

A NTLH fala em “acerto de contas”. É uma tradução “perigosa”, se pensamos nos numerosos “acertos de contas” que acontecem atualmente no mundo das drogas, por exemplo, quando simplesmente alguém “apaga” outro alguém. Contudo, magicamente, a expressão na Bíblia na Linguagem de Hoje nos remete ao que, no mundo da Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, conhecemos como o momento da “rescisão de contrato”. Uma hora tensa, difícil! Aplicação das regras, cálculos frios, sem dó! Por outro lado, com raras exceções, é um momento capcioso para o executor ou a executadora e para o executado ou a executada. Bem o sabe quem (como este que voz escreve) já esteve em ambos os lados. Mas na “parábola” (infelizmente ficção enigmática) acontece uma surpresa: perdão, amplo perdão, irrestrito perdão, miraculoso perdão, extremo perdão, infinito perdão, qualificadíssimo perdão... Milhões de moedas de prata (v. 23 NTLH) é bem mais chocante do que dez mil talentos (Almeida). São 350 toneladas. Cem milhões de dólares hollywoodianos. Muito pouco ainda, se fôssemos mensurar, em dinheiro, o preço da esposa, dos filhos e, quem sabe, ainda netos e netas. Valores incomparáveis aos míseros cem denários, digamos, três salários mínimos, contrapostos na sequência da parábola. E observem só, a diferença de postura: Ele pegou o seu companheiro pelo pescoço e começou a sacudi-lo, dizendo, “Paga--me o que me deves!” (v. 26 NTLH).

A comparação está posta, o enigma, apresentado. Não são números que interessam, mas a qualidade e a reciprocidade do perdão (igualmente, v. 33, Almeida). Por isso mesmo tristeza (v. 31 Almeida) é pouco como reação de quem assistiu à cena. Revolta (NTLH) parece mais real, humano e, no mínimo, justo e coerente diante da situação. E não é nem o caso de se pensar em caguetagem aqui, mas sim de defesa daquele irmão, companheiro (com certeza até sindicalizado como eles). Em fim, seja o cara amigo, colega de trabalho ou um baita de um safado, malandro, miserável (v. 33 NTLH), “Aquilo não tá certo, minha gente!”, pensaram eles. Indignação (v. 34 Almeida) parece brando. Ficar com muita raiva (NTLH) parece mais dramático e dentro do real. O Pai Celeste quer bem isto: perdão sincero ao seu irmão (v. 35 NTLH), perdão qualificado, simétrico, coerente e lógico na reciprocidade. Caso contrário: É isso o que meu Pai, que está no céu, vai fazer com vocês [...] (v. 35 NTLH).

3. Meditação

Pensando na atualidade da parábola narrada a Pedro, não há como fugir de cruzarmos a ponte para o momento brasileiro atual. Jogando no Google a expressão “perdão da dívida”, nos deparamos com diversas possibilidades de linkar fontes jornalísticas que nos dão conta sobre “O perdão bilionário que Bolsonaro quer dar ao agronegócio” (https://www.terra.com.br/noticias/brasil/o-perdaobilionario-que-bolsonaro-quer-dar-ao-agronegocio; acesso em: 06 maio 2019). Que “bondade maravilhosa” essa do nosso presidente do Brasil, de sinalizar apoio à aprovação do Projeto de Lei 9.252/2017 (até então parado na Câmara) que concede perdão total das dívidas acumuladas por produtores rurais e agroindústrias com o Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural (FUNRURAL) – um impacto da ordem de R$ 17 bilhões aos cofres públicos, pelas contas da Recita Federal (https://www.valor.com.br/brasil/6034935/bolsonaro-quer-perdoar-divida-ruralrombo-e-de-r-17-bi). A “bondade presidencial” (já prometida em campanha) surpreende quando o valor devido por esses é maior do que a economia prevista pelo governo com as mudanças nas aposentadorias dos servidores públicos da União (13,8 bilhões de reais) com a proposta de Reforma da Previdência em trâmite (https://www.cartacapital.com.br/politica/anistia-para-ruralistas-superaeconomia-da-previdencia-com-servidor/).

Se nossa pregação dominical não tem mais nada a dizer sobre a realidade social que nos cerca, somos os mais infelizes dos pregadores e pregadoras. Mexer nos direitos de aposentadoria de milhões de trabalhadores e trabalhadoras brasileiros e anistiar centenas de grandes empresários rurais, no mínimo deveria gerar em nós a mesma indignação dos colegas de trabalho daquele servo que não soube perdoar o seu conservo e do seu senhor que o entregou aos verdugos. Semana da Pátria sem denúncia e anúncio evangélico não é compatível com uma compreensão e prática do “evento igreja”, da forma como Vítor Westhelle propõe em livro com esse título. “Um novo modelo de igreja que coloca a comunidade cristã protestante em condições de lidar com a esfera pública.”

A ponte para o pessoal e comunitário se faz mais naturalmente. Primeiramente apontando enfática e insistentemente para a graça divina capaz de, em Jesus Cristo, nos anistiar de toda a nossa culpa. Graça e perdão incondicional que nos são concedidos no crucificado e ressurreto. Graça essa que, incondicionalmente, nos faz agir na mesma moeda: com perdão incondicional “a quem nos tem ofendido” (Pai-Nosso). Graça essa que nos afasta dos números e nos quer aproximar de um perdão qualificado e sistêmico com esse perdão já oferecido e recebido em Cristo.

A parábola está em sintonia com a “regra de ouro” de Jesus no sermão da montanha: Façam aos outros o que querem que eles façam a você (Mt 7.12 NTLH). O perdão que gostaríamos de receber cabe-nos praticá-lo também, sempre. Um ensino universal que deveria reger não somente pessoas cristãs. Perdoem como vocês querem ser perdoados. “É perdoando que se é perdoado” (Oração de São Francisco). Um perdão horizontal em recepção e doação, acolhimento e partilhamento. Uma via de duplo e mútuo sentido. Esse é o perdão qualitativo. Mais importante do que a quantidade desejada, esperada ou eventualmente limitada.

O hino “Falar com Deus”, de Lineu Soares e Valdir Lima, que transcrevo abaixo, é muito conveniente para o tema do perdão. A 4ª estrofe é composição minha, pensada justamente para contemplar o aspecto do lamento e pedido de perdão coletivo, social, pelo mundo: o Kyrie eleison!

1. Na oração encontro calma,
na oração encontro paz.
Orar a Deus faz bem à alma,
falar com Deus me satisfaz.

Grande é o nosso Deus,
e as obras que ele faz.
O seu amor não tem limites,
em seu perdão encontro paz.

2. Falar com Deus, que privilégio!
Abrir a alma ao Criador!
Sentir que os céus estão abertos,
e ouvir a voz do Salvador!

3. Falar com Deus é o que eu preciso!
Pois Ele é fonte de poder.
Só nEle a vida faz sentido,
pois nos dá forças pra viver.

4. Interceder por sua luz.
Pedir a Deus transformação.
Tem piedade, ó meu Jesus!
No mundo há dor. Tem compaixão!

Mahatma Gandhi foi grande ao afirmar: “O fraco nunca pode perdoar. Perdão é um atributo dos fortes”. Sua ideia é com certeza evocar a grandeza que envolve o ato de perdoar e, por consequência, a pessoa perdoadora.

4. Imagens para a prédica

De forma singela carrego comigo e sempre que possível reparto três motivos por que devemos perdoar: um motivo espiritual, um motivo psicológico e um motivo relacional. Ou, para dizer de modo diferente: perdoamos, primeiro, por causa de Deus; segundo, por causa da gente mesmo, e terceiro, por causa da outra pessoa.

1. Perdoar por causa de Deus: É vontade e ensinamento de Jesus e ele deu o maior exemplo.

Uma oração para o fim do dia/à noite
Se eu feri alguma alma hoje,
se causei a saída de alguém,
se estou perdido na minha própria desgraça,
Senhor Deus, perdoa.
Perdoa o pecado que confessei para ti.
Perdoa meus pecados secretos também.
Oh, Senhor Deus, vigia a mim e a minha própria desgraça.
Senhor Deus, amém!

2. Perdoar por causa de nós mesmos: Para que carregar isso com a gente? “Perdoa os outros, não porque eles merecem perdão, mas porque você merece paz.” E depois tem mais: esqueça! “O primeiro a pedir desculpas é o mais corajoso. O primeiro a perdoar é o mais forte. E o primeiro a esquecer é o mais feliz”.

3. Perdoar por causa das outras pessoas que pecaram, pecam e pecarão contra nós. E ainda buscaremos dizer como Jesus na cruz: Perdoa-lhes porque não sabe o que fazem!

5. Subsídios litúrgicos

Proponho que na liturgia de abertura se use como recurso para a confissão de pecados o hino “Se sofrimento te causei, Senhor”. A música tem letra de C. M. Battersby, 1913, com adaptação de Humberto Cantoni, 1966, alterado por Joaquim Silvério Costa, 1987. Battersby é um desconhecido. No YouTube você encontrará uma versão cantada por Elvis Presley (An Evening Prayer), que os mais dados à língua inglesa vão poder fazer melhor uso.

Porém a melodia que se consagrou na hinologia cristã há décadas vem da Música 1, versão coral de Pablo Sosa, 1959, arranjo de Ralph Eugene Manuel, 
1975, e Música 2: Charles Hutchison Gabriel, 1856-1932. Confira abaixo a letra mais usual no mundo evangélico. No HPD 150 e LCI 36 está a versão conhecida na IECLB.

1. Sim, sofrimento te causei, ó Deus!
E ao meu exemplo o fraco tropeçou,
e eu não andei nos bons caminhos teus.
Perdão, Senhor!

2. Sim, vão e fútil foi o meu falar
e amor a meu irmão não demonstrei;
ao sofredor eu não quis ajudar.
Perdão, Senhor!

3. Sim, negligente foi o meu viver,
sem me dispor a pelejar por ti,
e firme em teu trabalho eu não quis ser.
Perdão, Senhor!

4. Escuta, ó Deus, a minha oração
e vem livrar-me do pecado vil.
Renova este pobre coração!
Amém, Senhor!

Minha sugestão e prática têm sido:

– Cantar a estrofe 1 e, com um fundo instrumental do mesmo hino, orar confessando nosso pecado individual.

– Cantar a estrofe 2 e, com o mesmo hino instrumental ao fundo, apresentar em oração o pecado relacional.

– Cantar a 3ª estrofe e apresentar o pecado social, as dores e o pecado do mundo, ainda com a mesma melodia de fundo musical instrumental.

– Encerrar com a 4ª estrofe cantada.
Muito provavelmente você não terá tempo hábil para isso, mas, com certeza, será muito bom se um grupo (de canto ou coral) preparar o hino “Falar com Deus” (cf. acima) para apresentá-lo após as palavras de absolvição.

Bibliografia

WESTHELLE, Vítor. O evento igreja: chamado e desafio a uma igreja protestante. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2017.


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Autor(a): Evandro Jair Meurer
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 15º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Mateus / Capitulo: 18 / Versículo Inicial: 21 / Versículo Final: 35
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54677
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