Marcos 6.14-29

Auxílio Homilético

11/07/2021

 

Prédica: Marcos 6.14-29
Leituras: Amós 7.7-15 e Efésios 1.3-14
Autoria: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 7° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/07/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV

Missão, desafios e violência:
paradigmas para a prática cristã

1. Introdução

Os agrupamentos humanos organizam-se em torno de valores que determinam o que é aceitável, o que é inaceitável, o que se deve buscar e o que se deve rejeitar. Uma forma de caracterizar esses valores é o conceito de honra e vergonha. O que é honrado? O que se deve buscar alcançar? O que se deve rejeitar? Em torno desses conceitos as sociedades se organizam. É certo que esses valores são diferentes e produzem sociedades diferentes. Nosso texto transita no choque de valores de honra. Não apenas denuncia critérios inaceitáveis de honra, como também desafia a comunidade de fé a se posicionar diante deles.

A perícope de Marcos 6.14-29, o relato sobre a morte de João Batista, se entrelaça com os relatos sobre o envio dos discípulos para a missão, a notoriedade de Jesus, de João Batista e também de Herodes, Herodias e Salomé. Tudo se transforma em um grande relato para orientar os cristãos e as cristãs sobre o compromisso da missão e sobre a violência exercida pelos poderosos para defender sua honra. Esse é o caminho de interpretação da perícope da morte de João Batista.

2. Exegese

A narrativa sobre a morte violenta de João Batista aparece no Evangelho de Marcos com as características redacionais clássicas desse evangelho. A história aparece envolta em outra história. Nessa maneira de construir o relato, as histórias se completam e formam um discurso maior. A fala sobre a reação violenta de Herodes ao receber informações de que Jesus era visto pelo povo como João Batista que voltou à vida, serve de oportunidade para se introduzir a história da morte de João Batista. A morte de João Batista interrompe a narrativa do envio missionário (Mc 6.7-13) e a da volta dos doze (Mc 6.30-32). Esse estilo de interromper uma história com outra história é característica do Evangelho de Marcos. Na verdade, essas histórias se completam. Ou seja, a morte de João Batista se relaciona diretamente com a reação violenta do império contra Jesus e, consequentemente, contra seus seguidores e seguidoras. Mais do que apontar a reação, o texto, ao descrever com uma riqueza de detalhes a morte de João Batista, aponta também as características que marcavam o Império Romano e os critérios que norteavam a honra daqueles que exerciam o poder. Para perceber isso, é importante analisar esse texto em seus detalhes.

A morte de João Batista acontece no contexto de um banquete. Não podemos nos prender a uma percepção do banquete apenas como uma festa gloriosa. No mundo greco-romano a refeição tinha um papel importante no estabelecimento das relações de poder e nas configurações de padrões de honra e de vergonha. O Império Romano organizava-se em torno do patronato. Nesse sistema, a honra do patrono era ter muitos clientes e isso era confirmado ao ter muitos convidados no banquete. Por outro lado, para o cliente ser convidado pelo patrono, denotava honra também. Era um sistema de troca de favores. O patrono oferecia benesses para seus clientes. O cliente oferecia fidelidade a seu patrono.

O banquete oferecido por Herodes se inseria na demonstração de poder e de honra do patrono. Herodes, ao convidar pessoas, demonstrava seu poder e sua autoridade, e ao conceder favores, deixava claras as vantagens dos clientes por terem tal patrono. Por isso, diante da satisfação de Herodes com a dança de Salomé, Herodes demonstra seu poder de patrono, oferecendo a ela tudo o que ela quisesse, até mesmo a metade de sua fortuna: uma típica relação patrono-cliente. Como ofertar metade da fortuna tornaria nesse mundo alguém mais importante? Aqui está o elemento diferenciador dessa sociedade em que a história se insere. No Império Romano, o que tornava alguém mais importante do que outro não era ter uma fortuna maior, e sim ter um número maior de clientes. Era comum patronos abrirem mão de uma parte de seus bens para obter mais clientes. Herodes, ao oferecer a Salomé o que ela quisesse, mesmo que fosse metade de suas posses, demonstraria para seus clientes presentes no banquete sua generosidade para com aqueles que o agradassem. Então, quando Salomé, instruída pela mãe, pede a cabeça de João Batista, instaura uma crise na autoridade patronal de Herodes. Não atender ao pedido apontaria para os clientes presentes que o patrono não tinha palavra e não cumpria suas promessas. Ele não seria um bom patrono. O atendimento ao pedido o levaria não só a matar alguém a quem ele temia, como também poderia incitar alguma revolta pública.

Outra peça nessa trama é a esposa de Herodes, Herodias. Descrever o conluio entre Herodias e sua filha Salomé descreve também os códigos de honra e vergonha dessa sociedade e os estreitos limites em que as mulheres poderiam transitar. No jogo de poder, mãe e filha se organizam para alcançar seu objetivo maior: eliminar João Batista. O motivo que as leva a tomar essa atitude era a acusação pública que João Batista fazia da relação conjugal inaceitável de Herodes e Herodias: ela, sendo mulher do irmão de Herodes, não poderia ter sido tomada como esposa por ele. Aqui, como se vê, se desenha a honra de uma mulher nesse sistema, a qual se concretizava no casamento. Uma relação marital indigna, como denunciava João Batista, colocava Herodias em uma situação de vergonha pública. Na luta para estabelecer honra, essas mulheres transitam em um jogo de sedução em que a dança da filha proporciona à mãe alcançar a honra do seu status de esposa de Herodes. Deste modo, as figuras femininas, nesse texto, denunciam não só os conceitos de honra e vergonha do mundo greco-romano, como também o papel que era reservado à mulher nessa sociedade: gerar filhos; agradar o  marido; honrá-lo publicamente. Ou seja, tanto a figura masculina (Herodes) quanto as figuras femininas (Herodias e Salomé) que aparecem nesse relato retratam a estruturação da sociedade e apontam critérios de honra e vergonha que geram submissão e limitação do papel das mulheres a troca de favores e demonstrações de poder dos homens. Nessa estrutura, a vida de profetas e profetizas são eliminadas para preservar sistemas indignos de honra.

Por isso pode parecer, em uma primeira leitura do relato, que Herodes não teve opção nessa violência contra João Batista. Também pode parecer que a culpa seria de Herodias em um conluio com Salomé. Mas o que o relato aponta é muito diferente disso. Todos são culpados, pois o que Herodes, Herodias e Salomé buscavam era alcançar a honra, utilizando os mecanismos que essa estrutura injusta do patronato apresentava. Nessa busca, a vida das pessoas, no caso a vida de um profeta, João Batista, não tinha valor nenhum. Era um objeto nos jogos de poder.

Ao entendermos essa história no conjunto dos relatos do envio de missionários por Jesus, onde ele próprio é visto como um profeta, percebemos que essa é uma narrativa didática. Ela ensina a seguidores e seguidoras de Jesus os desafios da missão, a injustiça e a violência de um sistema no qual a valorização da honra individual massacra a vida inocente e os riscos que esses e essas que são enviados irão passar. O relato aponta aos seguidores e seguidoras de Jesus que, de um lado, terão de enfrentar a violência desse sistema que coloca a honra acima da vida e, de outro, que terão de assumir que a missão se inscreve na denúncia dessa estrutura de morte.

3. Meditação

Nas mais diversas sociedades ao longo da história, o grande desejo sempre foi o de ser reconhecido como alguém honrado. Isso faz parte da pretensão humana. Porém os conceitos que definem o que é honra ou o que é vergonha mudam no decorrer dos tempos e são diversos dentro de cada sociedade. Em alguns agrupamentos, a honra pode ser marcada por busca de dignidade, em outros a honra pode ser caracterizada pelo acúmulo de poder ou de posses. Deste modo, esse conceito cria encontros e desencontros. Na busca da honra pode-se construir espaços de dignidade e luta pela vida ou de violência e morte. Nosso texto é um alerta acerca desses processos e um convite a um compromisso de vida: buscar a honra por meio da denúncia profética da violência e no desafio para a vivência da missão enfrentando essa realidade.

Ao lermos Marcos 6.14-29, encontramos a trágica história da morte de João Batista. Ela é contada para a comunidade de Marcos no meio dos relatos do envio missionário dos discípulos de Jesus. Isso não é gratuito. Ao descrever a violência em meio ao envio missionário, o evangelista relembra sua comunidade e a todas as pessoas cristãs que essa mesma violência está presente no desenvolvimento da missão.

Outros textos que cercam o calendário litúrgico dialogam com o texto de Marcos. Em Amós 7.7-15, encontramos o profeta anunciando o juízo de Deus sobre as práticas iníquas. Por causa disso, o profeta sofre a violência dos poderes dominantes. Em Efésios 1.3-14, encontramos a descrição da obra redentora de Cristo que nos coloca como escolhidos e escolhidas pelo Senhor, como filhos e filhas vocacionados para fazer a vontade de Deus. A união desses textos apresenta- -nos a redenção, o vocacionamento e os desafios para cada seguidor e seguidora.

A missão desenvolve-se na oposição aos poderes que buscam estabelecer sua honra por meio da violência. João Batista criticou Herodes e a estrutura de poder e de família. Sua morte apontou não apenas a violência contra o profeta como também denuncia o funcionamento das estruturas de poder de sua época.

Em um sistema em que a honra era marcada para o homem por possuir muitos clientes e para a mulher por ter uma família notória, João Batista acusa Herodes e Herodias de um relacionamento impuro, portanto sem honra. Nesse sistema violento, Herodias e sua filha se organizam usando os papéis destinados às mulheres para conseguir a promessa de morte de João Batista. Herodes, diante da possibilidade de decepcionar seus clientes e parecer um patrono fraco, executa João Batista. Homens e mulheres, nesse sistema, utilizam recursos violentos para buscar honra, respeito e status. A vida de um ser humano é menos importante do que o papel que se representa na sociedade.

Diante de um sistema como esse, discípulos e discípulas recebem o chamado, aceitam o vocacionamento e precisam ter em mente que, ao anunciarem o evangelho, existe a possibilidade de sofrerem a violência. Ao mesmo tempo, necessitam ter em mente que assumir os ditames da sociedade sem questionar esses valores, como fizeram Herodes, Herodias e Salomé, é inaceitável para aqueles e aquelas que experimentaram a redenção em Jesus.

Diante disso, cabe a cada pessoa cristã vivenciar o desafio de construir espaços de justiça, valorização da outra pessoa e de solidariedade e, como afirma Cora Coralina em sua poesia Ofertas de Aninha, precisamos “não desistir da luta, recomeçar na derrota […] e acreditar nos valores humanos”, em especial nos valores e na coragem que são defendidos em nosso texto.

4. Imagens para a prédica

Nossa sociedade vive uma experiência que nossos pais e nossos avós não experimentaram: uma pandemia global com muito longa duração de tempo. Embora recentemente tenhamos vivido uma pandemia do H1N1, ela não foi em nada comparável a uma pandemia global como a da Covid-19. Outra só aconteceu no início do século 20 (a gripe espanhola) e, antes disso no século XIV (a peste negra).

Diante da ameaça de vidas, as imagens que mais nos indignaram foram as de pessoas que minimizaram o sofrimento das famílias que perderam entes queridos, desqualificando a pandemia. Também imagens daquelas pessoas que, em nome de realizar práticas que davam prazer, colocaram outros em risco e disseminaram o vírus usando para isso o discurso do direito individual, mesmo que isso significasse colocar as vidas mais frágeis em risco.

Mesmo as igrejas, por vezes, frente ao desejo de realizar celebrações presenciais, colocaram vidas em risco. Muitas vezes, colocaram sobre Deus a responsabilidade de preservar essas vidas. Em todas essas imagens, a manutenção de direitos individuais, do hedonismo, da manutenção de estruturas que garantiam privilégios se sobrepôs à vida das pessoas fragilizadas da sociedade. Como esse texto fala a essas situações? O que se aprende com isso?

5. Subsídios litúrgicos

Ofertas de Aninha (aos moços) – Cora Coralina

Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.

Bibliografia

KONINGS, Johan; GOMES, Rita Maria. Marcos – O Evangelho do Reinado de Deus. São Paulo: Loyola, 2018.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.


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Autor(a): Paulo Roberto Garcia
Âmbito: IECLB
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 7º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 6 / Versículo Inicial: 14 / Versículo Final: 29
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2020 / Volume: 45
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 64871
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Jamais alguém pode louvar a Deus sem que antes o ame. Da mesma forma, ninguém pode amar Deus se não conhece Deus do modo mais amável e perfeito.
Martim Lutero
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