Marcos 12.38-44

Auxílio Homilético

07/11/2021

 

Prédica: Marcos 12.38-44
Leituras: 1 Reis 17.8-16 e Hebreus 9.24-28
Autoria: Wagner Tehzy
Data Litúrgica: 24° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/11/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV

A oferta da viúva pobre e a hipocrisia religiosa

1. Introdução

Os textos bíblicos indicados mostram uma conexão entre si quando expressam a entrega em confiança de toda a vida a Deus. Em 1 Reis 17.8-16, a viúva de Sarepta e seu filho, apesar de se encontrarem entre a vida e a morte por causa da fome, acreditam no profeta Elias e na palavra de Deus proferida por ele de que não faltaria sua farinha nem seu azeite. Sua confiança foi recompensada no sustento de sua casa. O texto de Marcos 12.38-44 nos mostra duas cenas que estão interligadas: a reprovação à atitude dos escribas e a denúncia do sistema de opressão que vitima as pessoas mais fracas, e o louvor à viúva pobre, que oferece tudo o que tem para o templo. Nessa entrega, sua própria sobrevivência está confiada nas mãos de Deus. O texto de Hebreus 9.24-28 aponta para a entrega de Jesus como sacrifício definitivo e suficiente para tirar os pecados. Aponta também para a segunda vinda de Cristo aos que nele confiam e o aguardam, quando haverá plenitude da salvação.

2. Observações exegéticas

Os escribas

A palavra grega traduzida como escriba é grammateus, que vem de gramma = letra. O título tornou-se sinônimo de pessoas instruídas. Os escribas eram especialistas em assuntos legais e por isso vistos como professores da lei.

Vemos que os escribas nem sempre são retratados de maneira negativa em Marcos, como em nosso texto. Em 12.34, Jesus declara para um escriba que ele não está longe do reino de Deus. Jesus concorda com a interpretação deles de que Elias deveria vir primeiro (9.11-13).

Em nosso texto, eles são descritos negativamente como aqueles que:

• gostam de andar com vestes talares
• gostam das saudações nas praças
• gostam das primeiras cadeiras nas sinagogas
• gostam dos primeiros lugares nos banquetes
• devoram as casas das viúvas
• fazem longas orações para justificar seus atos

Jesus dirige essa fala à multidão, que o ouvia com prazer (v. 37). Dentro do contexto da perícope, os escribas estão sendo apontados como aqueles que não estão amando os outros como a si mesmos (12.31), mas buscando apenas seus próprios interesses e privilégios por meio da dominação das pessoas mais fracas.

Parece provável que aqui haja uma advertência às primeiras lideranças cristãs, para que não venham a sucumbir à tentação de parecer “bem-sucedidas” segundo os padrões do mundo.

Não está totalmente claro o que se entende por “devorar as casas das viúvas”. Aqui duas interpretações:

1 – Marcos está se referindo à prática dos escribas de administrar bens das viúvas, já que, como mulheres, elas não podiam administrar as posses e os negócios dos maridos falecidos. Devido à sua reputação pública de piedade, eles ganhavam o direito legal de administrar as propriedades. Então recebiam porcentagens pelo serviço, que não raramente era acompanhado de abuso. Crítica semelhante se observa na prática de Corbã, à qual Jesus igualmente se opõe em Marcos 7.9-13. A vocação do judaísmo da Torá é “proteger órfãos e viúvas”, mas, em nome da piedade (para o justificar fazem longas orações), os escribas exploram essa classe de pessoas socialmente vulneráveis.

2 – Outra explicação pode ser encontrada na oposição que a narrativa de Marcos estabelece entre “oração” e “roubo”. O local de oração dos escribas é o templo, e as atividades demandadas pelo templo devoram os recursos dos pobres. Jesus, que se colocou enfaticamente contra essa exploração na ação do templo, aponta para a história da “oferta da viúva pobre” como uma ilustração.

Em ambos os casos, o ponto principal está na exposição de uma piedade falsa, que ao invés de levar a Deus é marcada por oportunismo e exploração econômica. Marcos responsabiliza os escribas pelos abusos e, por isso, eles sofrerão juízo muito mais severo (v. 40). Talvez o julgamento mais severo se deva ao maior conhecimento desses professores da lei. Seu conhecimento deveria estar a serviço das pessoas mais fracas e desamparadas, em lugar de buscar explorá-las.

As viúvas

A preocupação bíblica com as viúvas evidencia sua posição de inferioridade na sociedade. Considerava-se uma desgraça ser uma viúva (Rt 1.20-21; Is 54.4). Elas contavam apenas com a compaixão das pessoas para receber atos de caridade e justiça. Tornar-se viúva era o destino mais temido por uma mulher. No caso da morte do marido, a viúva poderia voltar à sua própria família – caso houvesse pagamento por ela. Do contrário, ela deveria permanecer com a família do marido e, com frequência, recebia ocupações humilhantes, sendo lembrada como um fardo.

Além de seu baixo status, a viúva do texto ainda é descrita no v. 42 como pobre (ptōchē), que se refere a alguém que é mendigo. Toda a vida dessa viúva depende da caridade de outras pessoas.

O v. 41 diz que Jesus observa como as pessoas depositavam dinheiro no gazofilácio. Para a sua compreensão, o como importava mais do que o quanto as pessoas depositavam. Quem sabe ele observava suas expressões e seus sentimentos, como alegria, tristeza, orgulho, humildade.

Leptos é o nome das duas moedas que a viúva pobre colocou como oferta. Era a menor moeda disponível. O dinheiro que ela colocou era insignificante, ao menos para o templo. O que dois lepta poderiam comprar? Para se ter uma ideia, eram necessárias cerca de oito lepta para comprar um simples pardal. Era o que ela tinha. Era muito pouco, e ela entrega tudo.

Em vista do status das viúvas e da insignificância das duas moedas, chama a atenção a atitude de Jesus, que qualifica justamente essa oferta como sendo maior que todas as outras depositadas.

A questão não está no quanto as pessoas ofertam, mas como o fizeram. Todos os outros ofertaram do que lhes sobrava, de sua abundância. A palavra abundância (perisseuō) implica ter mais do que o necessário. Suas doações vieram do que não precisavam, do excesso, das sobras. Mesmo tendo ofertado grandes somas, isso não lhes custou quase nada. Em contrapartida, a viúva oferta da sua pobreza, necessidade, falta (histēresis). O final do v. 44 mostra que ela entrega tudo o que precisava para viver. Bios significa vida, mas aqui também tem o sentido de bens, propriedades.

A partir da cena, duas interpretações:

1 – A perícope aponta para o que Cristo fez, dando toda a sua vida. O ensino é destacado quando é lido como uma abertura para a paixão de Cristo. A ação da viúva pobre é louvável porque em sua pobreza e sem reservas ela entrega todo o seu viver a Deus. Sua oferta é um prenúncio do que Jesus está prestes a fazer: entregar sua própria vida. Para Marcos, o gesto da viúva aponta para Cristo, que sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos (2Co 8.9).

2 – Alguns intérpretes encontram o significado da história na oposição entre a ação da viúva e a crítica aos escribas na cena anterior. A interpretação é que Jesus está atacando os escribas e todo o sistema religioso, que ensinou essa mulher a entregar mesmo suas últimas e insignificantes moedas, como se Deus exigisse esse tipo de sacrifício por parte das pessoas mais pobres. Ou seja, a história seria mal interpretada se servisse para mostrar a superioridade da piedade dos pobres, quando deveria ser vista como uma desaprovação veemente de Jesus sobre o que se passa no templo. Myers conclui afirmando: “O templo roubou dessa mulher seus meios de subsistência. Como classe, os escribas não mais protegem as viúvas, mas as exploram. Como se estivesse com desgosto, Jesus ‘sai’ do templo pela última vez” (MYERS, 1988, p. 321).

Interessante observar que imediatamente após esse episódio, Jesus prediz a destruição do templo (Mc 13.1-2). Isso poderia ser uma referência ao fim da exploração dos pobres e vulneráveis?

3. Meditação

O evangelho de hoje nos fornece algumas pistas sobre a mensagem que Jesus tinha para dois tipos diferentes de pessoas. No início, Jesus alerta contra a hipocrisia religiosa: guardai-vos dos escribas. Eles viviam para manter uma posição elevada e honrada na comunidade. No entanto, usavam de forma errada a sua posição, vitimando as pessoas mais frágeis da sociedade.

Depois, Jesus observa a viúva pobre, que oferece duas moedas de pequeno valor. Jesus chama a atenção dos seus discípulos para essa mulher: da sua pobreza deu tudo quanto possuía, todo o seu sustento. A importância não está no fato de ter ofertado tudo, mas em que confiava em Deus para suprir todas as suas necessidades.

É bem possível que essa viúva tenha sido uma daquelas que foram lesadas pelos escribas, que receberam reprovação por parte de Jesus. As palavras que elogiam a viúva trazem condenação aos hipócritas, que não agem em favor dessa categoria de pessoas. As palavras podem soar como um lamento sobre aquelas pessoas cheias de dinheiro que nada fazem por essa viúva.

Por outro lado, as palavras de Cristo louvam o dom da fé do Espírito Santo, que permitiu a essa viúva experimentar a total dependência de Deus. Jesus observa além do valor das moedas. Ele enxerga uma mulher que ama a Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de toda a sua força (Mc 12.29). Ela deposita o que tinha no gazofilácio, mas Jesus percebe que ela tinha convicção de que toda a sua vida estava nas mãos de Deus.

Dentre esses dois tipos de pessoas, queremos ser sempre aquelas que recebem aprovação de Jesus. Incomoda-nos parecer hipócritas. Queremos ser e agir como a viúva, que dá o que tem e se entrega aos cuidados de Deus. No entanto, se formos sinceros, temos de admitir que também parecemos com os escribas. Preocupamo-nos demasiadamente com a aparência, apreciamos lugares de destaque. Não questionamos a injustiça, os sistemas de opressão dos devoradores das casas das viúvas do nosso tempo. Como aqueles a quem Jesus observava, também ofertamos daquilo que nos sobra, do que não fará falta, e não olhamos ao redor, para as pessoas fragilizadas. Já nos ressentimos quando alguém não reconheceu devidamente nosso esforço na comunidade. Já pensamos em outras pessoas hipócritas (nunca nós), que deveriam estar ouvindo determinada parte da prédica.

Ao olharmos com sinceridade para dentro de nós mesmos, reconhecemos que também nos cabem as palavras de juízo de Jesus. No entanto, sabemos que ele entregou, ofertou toda a sua vida por nós, e o fez na cruz. A partir disso, ele nos oferece perdão e vida renovada pela salvação.

O Espírito Santo continua trabalhando por meio da palavra de Deus para nos conceder a mesma fé da viúva pobre. Faz isso por meio das Sagradas Escrituras que lemos e ouvimos e também na sua presença visível, no que comemos e bebemos no sacramento. A fé que o Espírito Santo nos concede recebe aquilo que Jesus nos oferece, quando dá sua vida em nosso favor. A mesma fé nos torna participantes da grande festa do reino de Deus, onde recebemos perdão, vida e salvação.

4. Imagens para a prédica

Escrevo este auxílio neste tempo difícil de pandemia causada pelo coronavírus. Tempo cheio de incertezas, de dor, perda de vidas, perda de empregos, em 
que as paróquias e comunidades da IECLB são desafiadas a pensar também sobre sua sustentabilidade. O texto da pregação coloca-nos a refletir com  responsabilidade e sensibilidade sobre como temos lidado com as pessoas mais frágeis em nosso meio, também quando falamos sobre ofertas e contribuições.

Ao tratar sobre a perícope da viúva pobre, o contexto impele-nos a olhar além, para todo um sistema de opressão que está instalado no templo, aqui representado pelos escribas. Eles são os que devoram as casas das viúvas. Como exemplo atual, lembro que há algumas semanas o apóstolo Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, estava prometendo cura da Covid-19, entregando sementes de feijão em troca de uma oferta de mil reais. O Ministério Público Federal publicou em seu site que é falso que exista um tipo de feijão capaz de curar a doença. Também foi determinado que fosse retirado da plataforma YouTube o conteúdo. Esse é só um exemplo entre tantos, que infelizmente nos habituamos a assistir no cenário religioso do país. Escandaloso é que, há alguns anos, a revista Forbes (negócios e economia) tenha feito um artigo sobre os pastores milionários do Brasil. São aquelas pessoas que gostam de posar na mídia, que se orgulham de sua influência política, que não se envergonham de acumular riqueza diante da simplicidade das pessoas fiéis. São os mesmos que em meio à pandemia fizeram pressão junto ao governo para que os cultos religiosos fossem considerados serviços essenciais, ignorando os riscos para seu público.

Cabe-nos também um olhar crítico sobre nossa instituição, na qual, por vezes, aquelas pessoas que doam do que lhes sobra acabam recebendo elogios e tratamento diferenciado, fazendo com que as pessoas que sustentam o trabalho das comunidades de maneira constante se sintam diminuídas, e as pessoas mais fragilizadas, esquecidas.

Bibliografia

CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado versículo por versículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 1, p. 768-769.
MYERS, Ched. Binding the Strong man: A Political Reading of Mark’s Story of Jesus. New York: Orbis, 1988. p. 318-322


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Autor(a): Wagner Tehzy
Âmbito: IECLB
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo do Tempo Comum
Natureza do Domingo: Pentecostes
Perfil do Domingo: 24º Domingo após Pentecostes
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 12 / Versículo Inicial: 38 / Versículo Final: 44
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2020 / Volume: 45
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 64888
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