Prédica: Marcos 1.21-28
Leituras: Deuteronômio 18.15-20 e 1 Coríntios 8.1-13
Autoria: Ana Isa dos Reis Costella e Irineu Costella
Data Litúrgica: 4° Domingo após Epifania
Data da Pregação: 31/01/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Palavra e ação: práxis do amor cristão!
1. Introdução
Epifania abre o “pequeno” Tempo Comum. Nesse Tempo, os textos enfatizam a revelação de Jesus como o Messias e como o cumprimento das promessas do Antigo Testamento. Essa revelação se dá até por meio dos demônios que, segundo relatos do Novo Testamento, sabem quem Jesus é. Marcos revela um Jesus que passou pela morte e a venceu por meio da ressurreição. Como Jesus tem sido revelado hoje? E o que essa revelação tem a ver com o cotidiano e com a vida? Jesus é o Messias e o Filho amado de Deus, ele é a Boa Notícia de Deus, porque traz consigo a salvação. À sua presença é impossível ficar indiferente. A revelação de Jesus como Messias provoca uma confissão e, necessariamente, seguimento ou fuga.
O texto de Deuteronômio relaciona-se com o texto de Marcos na medida em que aponta para o profeta que surgirá do meio do povo e que confessamos ser Jesus. Já o texto de 1 Coríntios traz uma resposta pastoral de Paulo à preocupação quanto aos alimentos que eram usados nos sacrifícios pagãos e consumidos por cristãos.
2. Exegese
2.1 Estrutura do Evangelho de Marcos e questões pertinentes
Mc 1.1 – 9.50 – A atuação de Jesus na Galileia
1.1-13 – Título, João Batista, batismo e tentação de Jesus
1.14 – 3.35 – Início da atuação: curas, conflitos, chamamento de discípulos
1.14-15 – Proclamação da boa nova, anúncio do reino de Deus
1.16-20 – Chamado de discípulos
1.21-28 – Cura do homem dominado por um espírito mau
1.29-31 – A cura da sogra de Pedro
1.32-34 – Cura de doentes e endemoniados
1.35-39 – Anúncio do evangelho
1.40-45 – Cura de um leproso
Etc.
4.1-41 – Parábolas do reino e a calmaria
5.1-43 – Três curas
6.1 – 9.50 – Rejeição em Nazaré, instruções aos discípulos, morte de João Batista, distribuição de pães e peixes, curas, confissão de Pedro, conflitos, transfiguração
Mc 10.1-52 – A caminho de Jerusalém
Mc 11.1 – 13.37 – A atuação de Jesus em Jerusalém
Mc 14.1 – 16.8 (9-20) – Paixão, morte (e ressurreição) de Jesus
O Evangelho de Marcos não descreve a vida de Jesus como os demais evangelistas ou como uma biografia no estilo da história dos imperadores. Seu objetivo é anunciar o evangelho de Jesus, o Messias, o Filho de Deus. Sua forma revela que a atuação de Jesus cria mistério, suspense, interrogações e exige uma definição de quem ele é. Mesmo que os demônios conheçam seu segredo e Jesus os manda se calar, porque não sabem adorar seu mistério nem sua ação salvadora, o evangelista Marcos cria um itinerário interessante até confessar Jesus como verdadeiro Messias e Filho de Deus. Marcos escancara que Jesus não é um Messias poderoso e glorioso, como se esperava, mas um “Messias que seguirá o caminho da cruz, que se fará último e o servo de todos, porque não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida como resgate por muitos” (PAGOLA, 2010, p. 531). O convite de Marcos para crer em Jesus como verdadeiro Messias e Filho de Deus se dá diante do Jesus crucificado e diante do seu sepulcro vazio. “É ali que Deus pode revelar-nos seu Filho” (PAGOLA, 2010, p. 533).
2.2 Olhando cada versículo
V. 21 – traz informações sobre a cena (análise das versões NTLH, Nova Pastoral, Jerusalém e ARA)
Local: sinagoga em Cafarnaum: local de culto e de articulação da religiosidade judaica.
Dia: sábado. A perícope não deixa claro se Jesus entrou no próprio sábado em Cafarnaum ou dias antes. O que se sabe é que foi em um sábado, na sinagoga judaica, que a cena em questão aconteceu.
Sujeitos da ação: somente a NTLH apresenta Jesus e os discípulos que recém haviam sido chamados e que decidiram seguir Jesus. As demais versões, assim como no grego eisporeuontai apresentam “eles entraram”, não especificando quem são esses “eles”.
V. 22 – Marcos não menciona o conteúdo do ensino de Jesus, mas fala sobre a reação provocada por esse ensino: as pessoas ficaram maravilhadas. Esse maravilhar-se aconteceu por causa do modo como Jesus ensinava, diferentemente de escribas e fariseus (que eram os responsáveis pela transmissão dos
conteúdos, especialmente a observância da lei). Poderíamos definir autoridade como “a habilidade de levar outros a fazerem, de bom grado, sua vontade” (HUNTER, 2006, p. 32).
V. 23-26 – Enquanto Jesus ensinava na sinagoga, um anthrōpos en pneumati akathartō (homem que tinha espírito imundo/impuro) dirige-se a Jesus. O paralelo da perícope é apenas encontrado em Lucas 4.31-37, que menciona que estava na sinagoga um anthrōpos echōn pneuma daimoniou akathartou (homem que tinha um espírito de demônio imundo/impuro).
“Os demônios são concebidos como espíritos, ou seja, poderes ‘sem carne e osso’ (cf. Lc 24.39), que incidem sobre as pessoas e lhes causam malefícios” (WEGNER, 2003, p. 5), que provocam doenças físicas e psíquicas. Os “espíritos” são designados de impuros, porque: a) a impureza é ritual e cultual, por impedirem que a santidade de Deus se torne plena e abrangente; b) a impureza provém do contato dos demônios com coisas, seres ou lugares impuros (desertos, ruínas, cemitérios, sepulcros); c) a impureza decorre do fato das pessoas sofrerem com doenças causadas que faziam com que o endemoninhado contraísse impureza legal, sendo afastado da participação na vida religiosa. “A crença na ação de demônios como causadores de doenças era muito comum na Antiguidade, tanto em Israel como nos povos vizinhos” (VOIGT, 2008, p. 65), ainda que tenhamos relatos de pessoas que não criam nem em demônios, espíritos ou ressurreição, a exemplo dos saduceus, do sofista Luciano e de Hipócrates.
Em geral, os exegetas tendem a ver, na “possessão diabólica”, uma enfermidade. Tratar-se-ia de casos de epilepsia, histeria, esquizofrenia ou “estados alterados de consciência”, nos quais o sujeito projeta de maneira dramática num personagem maligno as repressões e conflitos que dilaceram seu mundo interior (PAGOLA, 2010, p. 207).
Contudo, mesmo sendo legítimo pensar dessa forma, hoje é preciso compreender a diferença cultural e temporal que nos separa e que, para aquelas pessoas, o sofrimento era real e estava ligado a forças malignas e desconhecidas.
De acordo com sua mentalidade (daqueles camponeses da Galileia), são eles que se sentem invadidos e possuídos por algum daqueles seres malignos que infestam o mundo. Esta é sua tragédia. O mal que padecem não é uma enfermidade a mais. É viver submetido a um poder desconhecido e irracional que os atormenta, sem que possam defender-se dele (PAGOLA, 2010, p. 207).
Pessoas que eram consideradas endemoninhadas precisavam da ação de um exorcista para livrá-las. Esses exorcistas afastavam os demônios, espíritos impuros ou maus, por meio do uso de amuletos, anéis, incensos, cabelos ou de palavras e fórmulas misteriosas. Em geral, era usada a invocação de um nome ou palavra poderosa e muito comum era o uso do nome de Salomão (considerado senhor sobre os demônios e patrono dos exorcistas, citado, inclusive por Flávio Josefo, que menciona lendas sobre Salomão), já que o nome de Deus (Javé) não podia ser pronunciado. Jesus não recorre aos recursos utilizados pelos exorcistas de seu tempo, mas estabelece uma relação peculiar com os endemoninhados. Bastam sua presença e o poder de sua palavra para impor-se (e, até, para que esses se manifestem, pois não é possível ficar indiferente a Jesus).
Buscando submeter os demônios, fala diretamente com eles, penetra em seu mundo, pergunta-lhes seu nome para melhor dominá-los, grita-lhes suas ordens, gesticula, põe-nos furiosos e os expulsa. Desta maneira destrói a identidade “demoníaca” da pessoa e reconstrói nela uma nova identidade, transmitindo-lhe a força sanadora de sua própria pessoa (PAGOLA, 2010, p. 210).
Diante de Jesus, o comportamento da pessoa dominada pelo espírito imundo/impuro, demônio é o de manifestar como a presença de Jesus ameaçava e intimidava. Na perícope, o espírito se manifesta no plural, “nós”, e confessa que sabe a identidade de Jesus, revelando-o como “Santo de Deus”.
V. 27-28 – Novamente Marcos descreve a reação das pessoas: maravilharam-se. Se, antes, estavam maravilhadas com o modo como Jesus ensinava, agora é acrescido o modo como Jesus se relacionava também com pessoas cuja identidade fora tomada/transformada pelo espírito impuro/imundo. “Para Jesus, as curas e os exorcismos eram parte integrante do anúncio do reino de Deus [...], um sinal de que o mal estava sendo vencido” (VOIGT, 2008, p. 70). A atuação de Jesus com os endemoninhados impressionava as pessoas, perguntando onde estava o segredo de sua força tão poderosa. Com Jesus, o próprio reino se faz presente, ainda que não em sua totalidade. A ação e as palavras de Jesus revelam sua identidade de Filho de Deus, de Messias.
3. Reflexões a partir do texto
Reconhecer que Jesus é o Santo de Deus envolve mais do que (apenas!) uma confissão. Significa orientar a vida a partir de Jesus, de sua boa notícia. Significa continuar realizando os sinais do amor e da misericórdia de Deus no mundo. Significa assumir o discipulado.
Enquanto escrevo este recurso para o PL, vivemos a pandemia do coronavírus e, no Brasil, uma visível polarização, negação até mesmo da existência do vírus e ódio pelo diferente. Nas diversas esferas, ouvimos confissões de que Jesus não vai deixar nada de mal acontecer aos seus escolhidos e vemos gestos de “arminha” mesmo com a Bíblia na mão. Vivemos tempos em que se ouvem pessoas afirmarem que Jesus é o Messias, mas as ações dessas pessoas contradizem – até mesmo, negam – sua confissão. Ora, até mesmo os demônios reconhecem em Jesus a presença de Deus. Confessar deveria significar professar a fé com a totalidade do ser (alma, coração, entendimento, forças) e que deságua no mar da própria existência, seguindo Jesus como discípulo que carrega a marca do amor. Um confessar apenas de “boca pra fora!” é o mesmo que palavras lançadas ao vento.
A autoridade de Jesus reside no fato de ser Filho de Deus e na coerência de suas palavras e suas ações. “Diferentemente dos escribas e fariseus, Jesus dava mais importância à história das pessoas do que ao ‘pecado’ como ato moral. Entrava no mundo delas, percorria a trajetória de suas vidas. Gostava de ouvi-las” (CURY, 2012, p. 23). Jesus é o maior de todos os líderes, tem a habilidade de influenciar pessoas, de transformar sua vida, sem obrigar quem quer que seja a segui-lo, nem mesmo as pessoas por ele curadas.
“Para Jesus, as curas e os exorcismos eram parte integrante do anúncio do reino de Deus” (VOIGT, 2008, p. 70). Jesus vai além de aliviar o sofrimento das pessoas enfermas e endemoninhadas ao dar à sua atuação uma interpretação transcendente, vendo em tudo isso um sinal e manifestação do reino de Deus. Jesus tem uma preocupação genuína com as pessoas que sofrem e padecem sob doenças e forças que roubam o próprio eu das pessoas. Jesus se importa a ponto de libertar as pessoas para que possam retomar sua própria identidade.
Quem seriam os possessos no tempo de Jesus? Pagola descreve:
Os possessos de quem Jesus se aproxima não são simplesmente enfermos psíquicos. São pessoas desnutridas, vítimas de violências endêmicas, impotentes para defender-se de abusos insuportáveis. Os endemoninhados não se sentem protagonistas de uma rebelião contra o mal, mas vítimas de um poder desconhecido e estranho que os atormenta destruindo sua identidade (PAGOLA, 2010, p. 208s).
Entendendo que curas e exorcismos eram manifestações do reino de Deus, Jesus se empenha em promover libertação. Uma das reações diante dos exorcismos de Jesus era de desacreditá-lo e até mesmo acusá-lo de estar possuído por Belzebu.
Os que lançam esta acusação não pensam no bem que Jesus faz a estes enfermos. Pelo contrário, veem em seus exorcismos algum tipo de ameaça à ordem social. Libertando os endemoninhados, Jesus está reconstruindo um novo Israel, constituído por pessoas mais livres e autônomas; está buscando uma nova sociedade. Para neutralizar sua perigosa atividade, nada melhor que desacreditá-lo socialmente acusando-o de comportamento desviado [...] (PAGOLA, 2010, p. 211).
A questão da possessão demoníaca deveria ser objeto de reflexão na preparação da homilia. A leitura do texto bíblico poderá suscitar perguntas nas pessoas, que, talvez, após o culto ou mesmo durante a semana, venham procurar a ministra/o ministro, pois têm dúvidas sobre o assunto ou porque têm curiosidade ou porque acreditam que algo parecido esteja acontecendo com alguém. O filme “O exorcista” e a frequência de cultos de libertação, promovidos especialmente por igrejas pentecostais e neopentecostais, atestam que o assunto é atual e gera debates. Danièle Hervieu-Léger, em seu livro O peregrino e o convertido, menciona o crescimento da crença do diabo na França a ponto de levar a Igreja Católica, em 1997, a refletir seriamente e propor ações de acolhimento àqueles que se dizem possuídos, além de estabelecer exorcistas oficiais. Em 2003, Uwe Wegner apresenta quatro principais interpretações atuais do fenômeno, a partir de patologias de ordem física, psíquica e espiritual:
1. A interpretação que assume, até certo ponto, a cosmovisão bíblica e interpreta o fenômeno a partir da existência e ação de seres espirituais maléficos, o que se costuma fundamentar com as práticas e ditos exorcistas de Jesus e dos apóstolos e/ou com textos como Rm 8.38s; Ef 2.2; 6.11s; Mt 25.41/Ap 12.9, etc. Entende-se possessão, nessa interpretação, sempre como ação de fora para dentro de alguém, sendo que sobre a identidade e as características mais exatas de tais demônios são admitidas diferenças nos detalhes. No essencial, há consenso: a ação dos demônios manifesta-se, por excelência, nos casos em que impropérios e irreverência a Deus ou Cristo aparecem conjugados com mentalidade mórbida e autodestrutiva, mais alterações físicas, como força sobre-humana, alterações faciais e de voz, insensibilidade à dor, entre outras;
2. A interpretação demitologizante clássica, representada, p. ex., por Bultmann. Esta é de opinião que os avanços científicos em áreas como medicina, física, astrologia etc. tornam perfeitamente prescindível uma crença em demônios. O pressuposto é: o que era atribuído a demônios pode ser explicado plausivelmente de outras formas. Atualmente é, sobretudo, a parapsicologia que busca interpretar racionalmente os fenômenos ligados à possessão e exorcismos através de teorias como o sansonismo, a tiptologia, telecinesia, psicofonia, xenoglosia, hierognose etc.;
3. Interpretações da psicologia e psiquiatria. Estas sustentam que as possessões representam casos de doenças mentais ou psicossomáticas, a exemplo de neuroses, psicoses e, mais recentemente, dissociações de personalidade (multiple personality disorders);
4. Interpretações sociológicas. Nesses casos, entendem-se as possessões como estratégias para o aumento da autoestima ou então como comportamentos de protesto por parte de pessoas oprimidas (WEGNER, 2003, p. 20-21).
Essas principais tentativas podem complementar-se ou corrigir-se parcialmente sem, necessariamente, se excluírem. Ainda que as novas pesquisas consigam explicar, satisfatoriamente, muito sobre questões de possessões, prossegue Uwe Wegner, há casos que deixam perguntas e dúvidas.
Talvez também nós façamos bem em nos esforçarmos para a elucidação racional dos fenômenos de possessão até onde isto seja possível, evitando, contudo, prensar todos os fenômenos dentro de uma única cosmovisão – e esta muitas vezes cunhada por um excessivo iluminismo e materialismo. Será sempre salutar se conseguirmos ter uma atitude de abertura para a possibilidade de o mundo criado por Deus compreender um pouco além daquilo que conseguimos ver e examinar em laboratórios ou clínicas terapêuticas (WEGNER, 2003, p. 21).
Olhando para documentos da IECLB, encontramos dois posicionamentos: A IECLB às portas do novo milênio, de 1999, e IECLB no pluralismo religioso, de 2000, que assim se manifesta:
Doenças psicossomáticas e semelhantes requerem especial serenidade, responsabilidade e discrição da nossa parte. É preciso haver discernimento entre a competência espiritual e psicossomática. Esse é o alerta do sinal amarelo. Tais doenças não poderão ser curadas por decreto, muito menos em forma de show e espetáculo público, ou seja, em assim chamados cultos de libertação. Quando há suspeita de que uma pessoa seja possessa, “necessário se faz um criterioso e abalizado estudo, assessoramento de especialistas na área da saúde e envolvimento da liderança da comunidade para uma tomada de decisão a mais objetiva possível. Como em outras áreas, também nesse assunto decisões monopolizadas pelo pastor ou pastora e, mesmo, por um pequeno grupo exclusivo, abrem portas ao abuso e à arbitrariedade. Constatada a veracidade do caso, o exorcismo dar-se-á pela oração, com o envolvimento do pastor ou pastora e da liderança da comunidade. A cura requer também discrição, em respeito ao paciente e à sobriedade da atuação do Espírito. De modo algum, a oração deve ser desvirtuada, pelo exorcismo, em espetáculo público para a atração de novos fiéis” (cf. A IECLB às portas do novo milênio. cad. 1, item 2.7; 2.18,6). Aí o semáforo passa para o sinal vermelho.
É importante uma reflexão – anterior à preparação do culto e da homilia – sobre a questão de possessões. Vemos propagandear que “tal dia e tal hora vamos revelar espíritos imundos/malignos e expulsá-los”, provocando perguntas em membros de nossas comunidades, curiosidade ou, até mesmo, a bricolagem da fé. Jesus não fez encenação e tampouco espetáculo. O próprio evangelista Marcos narra os acontecimentos de forma natural, sem alardes. E um detalhe: o que aconteceu em nossa perícope não foi obra de seres humanos, mas de Deus, por meio de Jesus. Cremos em um só Deus, que se revela de forma trina. Assim, as forças do mal (e não uma entidade, como se houvesse um outro deus) sucumbem diante de Deus.
4. No horizonte da pregação
Penso que o tema central de Marcos 1.21-28 seja a revelação de Deus em Jesus de Nazaré. A partir de Jesus, o reino de Deus já se faz presente entre nós, ainda que não em plenitude. O “milagre” relatado é um sinal da manifestação do reino de Deus na história da humanidade. O Santo de Deus é aquele cuja palavra, assim como no Gênesis, tem poder de organizar o caos, de libertar. A Epifania é obra de Deus. Sua manifestação espera uma resposta. Assim como os magos respondem indo ao encontro e o adorando, oferecendo-lhe o que de melhor possuíam, resta esperar que percorramos o mesmo caminho.
Viver o Batismo é assumir a fé em Jesus em sua radicalidade. Para além de uma confissão apenas cheia de palavras, há o imperativo de essas terem brotado de um coração e uma mente confessante. Não basta reconhecer em Jesus o Santo de Deus. É preciso que essa confissão encontre eco em minha vida. Confessar e viver a fé é deixar que Deus faça novas todas as coisas (Ap 21.5), o que inclui, necessariamente, a minha vida, minhas ações, minhas palavras, meus gestos. Se 2021 for expressão de um novo tempo, e já o será se tivermos vencido esse novo coronavírus, tanto mais a práxis do amor cristão se revelará na unidade e coerência entre palavra e ação, enraizadas em Jesus.
Contudo, o pecado é uma realidade que se manifesta na minha vida, por isso Batismo é conversão diária. Também a sociedade na qual estou inserida é marcada por pecados, doenças e forças do mal. Poderíamos metaforizar a possessão (além da reflexão feita no item anterior) como tudo aquilo que nos afasta de Deus, que nos arranca a identidade de filhas e filhos de Deus, que se opõe a Jesus. Essas forças do mal poderiam ser identificadas:
► na esfera sistêmica/conjuntural – injustiça, desigualdade, criminalidade, depredação do meio ambiente em nome de um progresso que não se classifica como desenvolvimento, enriquecimento de uma minoria sem considerar as necessidades da ampla parcela da população, “dificultação” do acesso à saúde e escola de qualidade, marginalização racial, social e econômica, desemprego, falta de políticas públicas que promovam vida digna a todas as pessoas;
► na esfera pessoal/comunitária – preconceito com “o diferente”, polarização que leva a ofensas e rompimentos, negação do pedir e ofertar o perdão, ganância de ter em detrimento do ser, arrogância, fake news. Cada pregadora/pregador identificará possíveis forças do mal em mecanismos, estruturas e características onde está inserida/o. As forças do mal trazem dor, sofrimento, rompimento, exclusão, perguntas, incertezas, e muitas pessoas, famílias, a criação toda sofrem consequências diretas. A práxis de Jesus, unidade entre sua palavra e sua ação, que revela o reino de Deus, deveria ser a força para nossa atuação e da comunidade na luta contra o mal, na vivência coerente entre palavras e ações, em atividades e projetos comunitários. A marca de reconhecimento da pessoa discípula de Jesus é o amor. Sem esse amor, que é obra de Deus, não há pertencimento ao projeto do reino de Deus. O chamado de Jesus se dirige a nós.
O reino de Deus que ele tanto deseja: a derrota do mal, a irrupção da misericórdia de Deus, a eliminação do sofrimento, a acolhida dos excluídos na convivência, a instauração de uma sociedade libertada de toda aflição. Ainda não é uma realidade acabada, muito pelo contrário. É preciso continuar realizando sinais da misericórdia de Deus no mundo. Essa será precisamente a missão que ele confiará aos seus seguidores (PAGOLA, 2010, p. 214).
5. Recursos litúrgicos
A Liturgia de Rememoração do Batismo prevê a renúncia ao mal e a afirmação da fé. O elemento da renúncia e adesão aparece explicitamente, pela primeira vez, em Tertuliano (160 a 220 d.C.). Essa ideia, no entanto, é neotestamentária, implica uma ruptura com a “velha natureza”.
Nos dizeres da igreja antiga, a pessoa a ser batizada renunciava, neste ponto, a “Satanás e a todas as suas pompas e seduções”. Segundo a cosmologia da época, a pessoa que renunciava a Satanás e aderia a Cristo passava do reinado de um para o reinado do outro. Retirava-se do poder do demônio e colocava-se sob o poder de Jesus Cristo. Dessa forma, as pessoas empreendiam um corte com seu passado (estilo de vida, determinadas atividades, a religião pagã que seguiam etc.), integrando-se a um novo presente, diferente por causa de Cristo. O batismo implica ruptura com determinadas crenças, valores e formas de vida. O elemento litúrgico da renúncia e adesão expressa que essa ruptura tem a ver com decisões e opções tomadas pela própria pessoa. E, para tanto, ela conta com a ajuda de Deus, através do seu Espírito. [...] Como a renúncia é sempre seguida da profissão de fé e esta expressa sempre implicitamente uma adesão [...] (IECLB, Livro de Batismo, p. 53s)
Após a renúncia e a profissão de fé, segue-se, na Liturgia de Rememoração do Batismo, a possibilidade de um compromisso, que expressa a disposição do discipulado do amor.
Bibliografia
CURY, Augusto. O mestre dos mestres. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.
HUNTER, James. Como se tornar um líder servidor. Rio de Janeiro: Sextante, 2006.
PAGOLA, Antônio. Jesus, aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010.
VOIGT, Emilio. Jesus de Nazaré: manual de estudos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008.
WEGNER, Uwe. Demônios, maus espíritos e a prática exorcista de Jesus segundo os evangelhos. Estudos Teológicos, v. 43, n. 2, p. 82-103, 2003.
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