Manifesto sobre AIDS - 1989

Carta Pastoral da Presidência

10/11/1989

1. Entre as grandes preocupações da atualidade está a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (= SIDA), conhecida como AIDS. Trata-se de uma doença causada por um vírus, o HIV, que destrói o sistema imunológico do corpo humano, provocando a morte. É bem verdade que outros males, sobretudo a fome, por ora causam bem mais vítimas em nosso País. Ainda assim, a AIDS parece constituir-se num dos maiores flagelos da humanidade em futuro próximo. Desafia, não por último, a comunidade cristã. Lembramos:

1.1. A doença progride em proporção geométrica. O número de pessoas infectadas duplica em períodos cada vez menores. Nem sempre a doença realmente se desenvolve. Pode permanecer latente. Entretanto, toda pessoa portadora do vírus é uma potencial transmissora do mesmo. Conforme estimativas inoficiais já ultrapassa a casa dos 800 mil o número de infectados somente no Brasil.

1.2. A AIDS é uma doença que, ao manifestar-se, é fatal. Ainda não está em vista uma vacina que imunizasse contra ela, nem mesmo um remédio que de fato curasse.

1.3. O contágio acontece através de sangue e de relações sexuais íntimas. Está sendo afetado, pois, o comportamento sexual das pessoas, motivo de uma inibição que pode colaborar com a proliferação da praga.

1.4. Em seus princípios, a AIDS era uma doença nitidamente concentrada em assim chamados grupos de risco, ou seja homossexuais, drogados (por usarem a mesma agulha de injeção), hemofílicos (por dependerem de periódicas transfusões de sangue), prostitutas. Hoje já não é mais bem assim. Toda pessoa obrigada a se submeter a uma cirurgia e receber sangue alheio está ameaçada. Ademais, também relações heterossexuais, com parceiros diversos, desconhecidos, representam um fator de risco. O uso da camisinha pode reduzir, mas não eliminá-lo.

1.5. Assim sendo, a AIDS já passou à condição de doença endêmica, sim pandêmica. Ninguém está seguro contra ela. Atinge predominantemente pessoas jovens, adultas, na “flor da idade. Mas também não poupa crianças e idosos.

2. As reações das pessoas a esta terrível ameaça são contraditórias:

2.1. Observa-se, de um lado, uma perigosa indiferença. Há pessoas que não se importam, talvez por se julgarem “fora de perigo” ou por assumirem uma atitude fatalista. Não procuram proteger-se a si mesmas nem a outros. Um exemplo: doar sangue é uma boa obra, necessária para salvar vida. Ninguém contrai AIDS dessa forma. Mas deve-se deixar de fazê-lo quando se sabe ser portador do vírus ou quando se tem dúvidas a respeito. Pais devem falar com os filhos sobre o problema dessa doença. Precisa haver esclarecimento na escola, e nem na Comunidade o tema deveria ser um tabu. Indiferença não deixa de ser atitude culposa.

2.2. De outro lado existe um verdadeiro pânico. Isola as pessoas infectadas e as joga ao abandono, muito à semelhança do que acontecia com os leprosos no tempo do Novo Testamento. Assim é multiplicado o sofrimento dos doentes. Não é por qualquer coisa que se dá o contágio. Não se transmite a doença por contato ou abraço, pelo uso dos mesmos talheres ou dos mesmos banheiros, e muito menos pelo uso do mesmo cálice na Santa Ceia. Não há motivos para perder a cabeça.

2.3. Uma terceira atitude é a que rejeita os aidéticos por motivos morais. Seriam pecadores, castigados por Deus, amaldiçoados. Tornaram-se conhecidas verdadeiras tragédias familiares: membros que contraem a doença são simplesmente excomungados. Ser aidético, isto para muitos ainda hoje é escandaloso. Parece revelar, sem margem de dúvida, pecado cometido. Desta forma, porém, os aidéticos devem suportar não somente os males de sua doença como também a amargura de uma brutal condenação social. Será justo isto? Quem está pecando?

3. Devido aos aspectos pastorais, morais e humanos que estão em jogo, necessário se faz uma reflexão a partir do Evangelho. Como posicionar-se? Antes de mais nada importa esclarecer a relação entre doença e pecado.

3.1. Não é raro ouvir-se dizer que AIDS é o justo castigo de Deus para o libertinismo sexual, as drogas e outras aberrações da atualidade. Tal juízo é perigoso. Pode incorrer em injustiça. Posso eu dizer exatamente quem merece o juízo de Deus, quem não? Jesus assumiu atitude diferente (cf Lc 13.1s). Ademais, não será arrogante tal juízo emitido por quem se considera justo? No Novo Testamento, doença é sem dúvida um mal. Mas Jesus não admite seja interpretado como castigo para determinadas pessoas (cf Jo 9.1 s). Que toda doença seja um castigo de Deus é opinião pagã, não cristã. Naturalmente, pode haver culpa na contração de certas doenças. No entanto, proíbe-se equacionar doença e pecado. AIDS atinge muita gente que, humanamente falando, é inocente. Quem tem a coragem de dizer ser castigo de Deus?

3.2. Aliás, é muito comum tentar-se fazer uma distinção entre aidéticos “inocentes” e outros “culpados”. Aos primeiros pertenceriam as vítimas de transfusões de sangue; os culpados seriam os demais. Novamente é preciso alertar para a injustiça que desta forma se poderá fazer. Separar entre o joio e o trigo (Mt 13.24 s) também neste caso vai terminar em desastre.

3.3. No fundo, porém, toda esta discussão sobre culpa e pecado é supérflua quando se trata de socorrer os doentes. Jesus não excomungou os pecadores. Manteve com eles comunhão de mesa (cf Lc 15.2). Não aprovou o pecado. Entretanto não fez depender sua ajuda de méritos ou dignidade. Se nós negarmos ajuda e comunhão aos que são considerados ou que realmente são pecadores, nós nos colocamos fora da comunhão com Jesus. Porventura não pertencemos também nós aos pecadores? Comunidade cristã é a comunhão dos pecadores agraciados. É por isto também uma comunidade terapêutica. Somos chamados a nos ajudar mutuamente. Um exemplo de tal ajuda temos nos quatro homens que não se renderam diante das dificuldades até terem posto o paralítico aos pés de Jesus (Mc 2.1 s). Culpa, se de fato existe, não é motivo para negar aos aidéticos a ajuda e a proximidade humana.

4. “Percorria Jesus toda a Galiléia ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades entre o povo” (Mt 4.23). Nosso poder de cura não é igual ao de Jesus. Especialmente frente à AIDS sentimos dolorosamente nossas limitações. Ainda assim, alguma coisa é possível fazer.

4.1. AIDS é uma doença mortal, mas em princípio evitável. Há como se proteger:

4.1.1. Em primeiro lugar é necessário buscar a informação. Existe por demais ignorância e preconceito. Falta a informação sólida, capaz de evitar tanto o comportamento leviano quanto temores infundados. Como já dizíamos, não há razões para a histeria. Chamamos atenção à Revista do CEM, por exemplo, Ano X, Nº 2, de 1988, com o tema AIDS; ou à revista CONTACT, Nº 56, de 1987, da Comissão Médica do Conselho Mundial de Igrejas. Não falta o material informativo. Ademais, a Comunidade pode convidar médicos ou outros especialistas para palestras ou até cursos. De qualquer modo, a informação é fundamental. Ignorância favorece a doença, facilita o contágio e bloqueia a terapia.

4.1.2. Precaução contra a AIDS exige comportamento sexual responsável. Promiscuidade, troca de parceiros ainda que esporádica, prostituiçãp representam fatores de alto risco; enquanto parceria e relação matrimonial estável asseguram eficiente proteção.

4.1.3. Importa insistir junto ao Ministério e às Secretarias de Saúde haja rigoroso controle do comércio de sangue. Grande parte dos infectados em nosso País contraiu a doença em razão da falta de tal controle.

4.1.4. Embora a convivência normal com aidéticos não corra o risco do contágio, recomenda-se cuidar da higiene, inclusive para proteger o próprio aidético. Certamente não há motivos para exageros. Mas negligência acarreta danos.

4.2. Os aidéticos, eles mesmos, têm responsabilidade em barrar o curso da doença e evitar a transmissão. Já nos referimos ao exemplo da doação de sangue. É claro que a responsabilidade é bem maior. AIDS requer comportamento ético em todos os sentidos. Requer também o respeito dos doentes aos sãos.

4.3. De igual forma, porém, os sãos devem o respeito aos aidéticos. Está comprovado que a falta de solidariedade e a rejeição aceleram em muito o ritmo da doença. A excomunhão do aidético colabora com sua morte. Assim como todos necessitamos do ambiente familiar e social para nosso bem-estar, assim também o doente. Lembremo-nos mais uma vez do exemplo de Jesus: deu sua companhia aos doentes e os curou. Comunhão tem força terapêutica. Comunidade cristã sabe disto. É por que solicitamos:

4.3.1. Que as famílias não excluam seus eventuais membros aidéticos, mas que tentem carregar com eles o fardo da doença.

4.3.2. Que o aidético não seja abandonado nem mesmo na fase terminal da doença. Amor ao próximo enfrenta neste e em semelhantes casos um de seus maiores testes de autenticidade.

4.3.3. Que os próprios aidéticos tratem de se socorrerem mutuamente, encontrando-se e procurando estabelecer formas de comunhão.

4.3.4. Que na comunidade cristã haja voluntários que, em casos concretos, estejam dispostos a prestar auxílio.

4.3.5. Que os órgãos governamentais cumpram a parte que lhes é devida no combate à doença e na assistência aos doentes.

4.4. A AIDS, por sua vez, confronta o ser humano com a perspectiva da morte. Não deixa de ser um problema espiritual. Ceifa, não raro, pessoas jovens. Exige dos doentes e dos que os acompanham enormes energias psíquicas. AIDS lança as pessoas em profundas crises. Nelas as forças da fé são vitais. Por isto é importante a oração, a aprendizagem da obediência a Deus, a comunhão dos irmãos e das irmãs. Diz o Novo Testamento ser a fé a vitória que vence o mundo (1 Jo 5.4). É capaz de vencer também a AIDS.

Dr. Gottfried Brakemeier

Pastor Presidente
 

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