A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, reunida em seu VII Concílio Geral em Curitiba nos dias 22 a 25 de outubro de 1970, obediente à missão que lhe é inerente como Igreja de Cristo, resolve manifestar o seguinte:
1. Teses sobre as relações entre a Igreja e o Estado
1.1 - A mensagem da Igreja cristã visa à salvação do homem salvação que transcende as possibilidades humanas, inclusive as políticas. É mensagem de Deus - não deste mundo. Mas ela é destinada a este mundo e quer testemunhar Jesus Cristo como Senhor e Salvador do mundo. Por isso a Igreja não pode viver uma existência sectária, guardando para si mesma a mensagem que lhe foi confiada. Ela tem o ministério de testemunhar a palavra de Deus, ministério do qual ela não se poderá esquivar, a não ser pelo preço da desobediência para com seu Senhor.
A mensagem da Igreja sempre é dirigida ao homem como um todo, não só à sua “alma”. Por isso, ela terá conseqüências e implicações em toda a esfera de sua vivência - inclusive física, cultural, social, econômica e política. Não tenderá apenas a regular as relações entre cristãos, mas visará igualmente ao diálogo com outros cidadãos ou agrupamentos, sobre todas as questões relacionadas com o bem-comum.
1.2 - A mensagem “pública” da Igreja cristã, no que se refere aos problemas do mundo, não poderá ser divorciada do seu testemunho “interno”, já que este implica naquela. Assim, a Igreja não pode condicionar seu testemunho público aos interesses de ideologias políticas momentaneamente em evidência, ou a grupos e facções que aspiram ou mantêm o poder. Em seu testemunho público, não poderá ela usar métodos incompatíveis com o Evangelho.
1.3 - Em princípio, Estado e Igreja são grandezas separadas, como o define também a Constituição do nosso País. Mas em virtude das conseqüências da pregação cristã que se manifestam na esfera secular,e pelo próprio fato de os cristãos serem discípulos de Cristo e simultaneamente cidadãos de seu país, não será possível separar totalmente os campos de responsabilidade do Estado daqueles da Igreja, embora seja necessário distinguí-los. Na esfera onde os respectivos campos se fundem, a Igreja, por sua vez necessitando da crítica do mundo, desempenhará uma função crítica - não de fiscal, mas antes de vigia (Ezequiel 33,7), e de consciência da Nação. Ela alertará e lembrará as autoridades de sua responsabilidade em situações definidas, sem espírito faccioso, e sempre com a intenção de encontrar uma solução justa e objetiva.
1.4 - A Igreja busca o diálogo franco e objetivo com o Estado em atmosfera de abertura, de liberdade e de autêntica parceria - diálogo que tem por finalidade encontrar soluções para os problemas que afligem a sociedade. Como parceira corresponsável do governo secular, ela obedece ao preceito do Senhor que diz: “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Marcos 12,17). Baseada nesta premissa fundamental, ela se sente chamada a cooperar com as autoridades governamentais em uma vasta gama de tarefas, como, por exemplo, na educação das novas gerações, na alfabetização de adultos, no apoio a ações sociais do governo, no combate a doenças, à pobreza, à marginalização do homem, e em outras atividades que não sejam de caráter puramente técnico. Esta cooperação implica no constante esforço destinado a eliminar as causas que eventualmente provoquem os males em questão.
1.5 - Em conseqüência da pregação pública da Igreja poderão surgir tensões com autoridades governamentais, seja por equívocos humanos, seja por razões de caráter fundamental. A Igreja, em tais casos, não procurará contestar o poder do Estado, como se ela fosse um partido político, mas proclamará o poder de Cristo. Onde ela sentir-se compelida a contrariar medidas governamentais, antes de tomar qualquer atitude pública, procurará dialogar com as autoridades respectivas. Em todos os casos agirá sem intuitos demagógicos - deixando claro que ela se sabe chamada a advogar em prol de todos os homens que sofrem.
2. Assuntos que preocupam a Igreja
2.1 - O caráter do culto cristão
A Igreja entende que o culto, sendo o evento central da vida do cristão, através do qual se nutre sua vida espiritual, deverá ter resguardado o seu caráter de serviço a Deus, de adoração, de comunhão cristã e de diálogo com Deus. Jesus Cristo é o único Senhor do culto cristão.
O culto terá conseqüências políticas, por despertar responsabilidade política, mas não deverá ser usado como meio para favorecer correntes políticas determinadas. Pátria e governo serão objetos de intercessão da comunidade reunida para que possam promover justiça e paz entre os homens, e os fiéis darão graças a seu Senhor por estas preciosas dádivas. A pátria será honrada e amada; seus símbolos serão respeitados e usados com orgulho cívico, no sentido mais legítimo, mas o cristão não poderá falar da pátria em categorias divinizadoras.
O diálogo entre Igreja e Estado poderá resultar numa responsabilização conjunta pela programação dos dias festivos nacionais que rendem homenagem à pátria.
2.2 - Ensino cristão e educação moral e cívica
Embora numa sociedade pluralista e multiconfessional, como a brasileira, o Estado, compreensivelmente, esteja interessado em evitar uma orientação sectária no campo educacional, julgamos ser indispensável que nas escolas seja mantido, inequivocamente, o ensino cristão. Consideramos ser a educação moral e cívica uma matéria necessária para a formação do cidadão, porém não a julgamos uma matéria que possa ou deva suplantar o ensino cristão. O ensino moral e cívico, com bases ideológicas declaradas, para muitos cristãos deixou imprecisos ou limites entre a esfera da Igreja e a do Estado. Entendemos que qualquer atitude moral ou cívica autêntica tenha as suas raízes em uma confissão autêntica. Um ensino “teista mas aconfessional”, como o define o Decreto-Lei 869/69, pode induzir muitas pessoas a compreendê-lo como substitutivo do ensino cristão, e as suas bases ideológicas como sendo alternativa para uma orientação confessional cristã. Tanto professores como educandos serão levados necessariamente a conflitos de consciência, caso estes conceitos se fixarem.
É do interesse da IECLB que esta questão seja objeto de um exame em conjunto de representantes das Igrejas e do Estado.
2.3 - Direitos humanos
Numerosos cristãos sentem-se perturbados pelo fluxo de notícias alarmantes sobre práticas desumanas que estariam ocorrendo em nosso País, com relação principalmente ao tratamento de presos políticos, donde surge uma atmosfera de intranquilidade, agravada com a carência de informações precisas e objetivas. Embora as notícias veiculadas no exterior, frequentemente evidenciem caráter tendencioso, e embora órgãos oficiais do País seguidamente tenham afirmado a improcedência das mesmas, permanece um clima de intranquilidade, em virtude das informações não desmentidas da imprensa do País, sobre casos onde se inculcam órgãos policiais de terem empregados métodos desumanos - seja no tratamento de presos comuns, seja de terroristas políticos, ou seja de suspeitos de atividades subversivas.
Entendemos mesmo, como Igreja, que nem situações excepcionais podem justificar práticas que violam os direitos humanos.
E como Igreja sentimos necessidade de dialogar com o nosso Governo também sobre este assunto - uma vez para apontar a extrema gravidade da questão, tendo em vista os princípios éticos em jogo, mas também para promulgar o nosso inteiro apoio a quem se acha seriamente empenhado em coibir abusos cometidos e em oferecer ao mais humilde dos brasileiros - inclusive ao politicamente discordante - a absoluta certeza de que será tratado segundo as normas da mesma lei com a qual possa ter entrado em conflito.
Curitiba, 24 de outubro de 1970
Karl Gottschald
Pastor Presidente
NOTA: O documento acima transcrito foi entregue pelos pastores Gottschald, Kunert e Schlieper, no dia 5 de novembro à tarde, à Presidência da República no Palácio Planalto em Brasília. No dia 6 de novembro de manhã, os mesmos pastores foram recebidos em audiência pelo Senhor Presidente da República. O diálogo muito franco e cordial estabelecido entre o Senhor Presidente da República e os representantes da IECLB evidenciou, de maneira clara e insofismável, a disposição por parte dos homens responsáveis do nosso Governo em dialogar com a nossa Igreja sobre os problemas que nos preocupam. A maneira de como foi recebida esta Manifestação da nossa Igreja demonstra a abertura do nosso Governo para sugestões e críticas construtivas.
Para evitar exploração indevida da Manifestação nesta época pré-eleitoral, foi estabelecido, desde o início, que o conteúdo deste documento fosse publicado apenas depois do dia 15 de novembro, dia das eleições.