A vida da humanidade está ameaçada. Um grande mal ocupa todos os espaços, e há poderes querendo assumir o papel de Deus. Quem, porém, cede a essa tentação e é detentor de poder, procura despir-se de sua condição de criatura, para submeter homens e mulheres, jovens e crianças, a natureza e o mundo a seus próprios interesses. O fruto dessa auto-suficiência incorpora-se num verdadeiro ídolo – designado na Escritura como poder do dinheiro (“Mâmon”). Esse mesmo ídolo, adorado e venerado, é o fundamento do sistema sócio-econômico-político hegemônico no mundo de hoje. Somos testemunhas de que esse sistema requer sacrifícios, faz suas vítimas e promove dor, sofrimento e morte. Algumas das conseqüências desta nefasta ação são aqui mencionadas:
Manifesto do Concílio
“Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância.”João 10.10
Aquilo em que você prende seu coração, isso é o seu deus.” Martim Lutero
No início de um novo milênio, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), reunida em seu XXII Concílio, em Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, nos dias 19-22 de outubro de 2000, ocupou-se com sua responsabilidade em face da situação por que passam o nosso país e o povo brasileiro. Jesus Cristo, o Bom Pastor, que vê as multidões “aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor”, também nos moveu a nós a percebermos toda uma realidade que clama por justiça, paz e vida digna. Deploramos e denunciamos os múltiplos mecanismos que promovem injustiças e exclusões. Na criação, Deus concedeu à humanidade todos os bens necessários para uma vida digna. Inclui-se nesta a oportunidade de trabalho e de usufruto de seus benefícios. O evangelho não nos deixa conformados quando há, de um lado, acúmulo de bens e, de outro, a falta do mais elementar. Anunciamos a vinda do reino de paz e justiça, o qual nos desafia para sermos seus arautos e instrumentos. Por essas razões a IECLB emite o presente manifesto.
1. Nossa inconformidade
“Não vos conformeis com este século...” (Romanos 12.2)
• Através do fluxo incontrolado de capitais, este sistema promove uma verdadeira ciranda financeira em que, graças às novas tecnologias de comunicação, faz girar diariamente um dinheiro virtual de bilhões de dólares, o que tem ocasionado colapsos econômicos e levado nações inteiras a sofrimento, angústia e desespero.
• Através de organismos financeiros internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, este sistema tem imposto ajustes estruturais aos países pobres e endividados, aumentando sua dependência e direcionando seus escassos recursos para o pagamento dos serviços da dívida.
O Brasil, por exemplo, no ano 2000, destinou 64 bilhões de dólares para o serviço da dívida. Nos últimos 10 anos, já pagou 200 bilhões e ainda deve 240 bilhões de dólares. Essa mesma dinâmica tem levado o país a endividar-se internamente, inviabilizando investimentos básicos nas áreas de serviços (como educação, saúde, nutrição, habitação, saneamento, transporte, pensões e aposentadorias etc.) às administrações municipais, estaduais e federal.
• Ao priorizar a maximização dos lucros, este sistema também tem desrespeitado o meio-ambiente, destruindo florestas, poluindo o ar e a água, e dilapidando recursos naturais não renováveis, como se fossem ilimitados. A tradicional agricultura de subsistência, já afetada pela concorrência tecnológica e genética internacional, é mais e mais substituída pelo cultivo de produtos de exportação, para equilibrar a balança de pagamentos. Além disso, esse processo é aviltado pela prática de subsídios agrícolas em países desenvolvidos, acarretando uma diminuição acentuada do preço dos produtos agrícolas e naturais no mercado internacional.
• Este sistema igualmente promove gigantesco fluxo migratório de pessoas que buscam oportunidades de trabalho e melhores condições de vida em outras partes do país ou do exterior. Identidades étnicas e minorias são desrespeitadas e violentadas. O processo desarraiga as pessoas, aniquila seus valores culturais e provoca profunda insegurança, tornando-as presas fáceis de todo tipo de manipulação.
• De igual maneira, este sistema gera uma enorme quantidade de pessoas excluídas nos campos e nas metrópoles. Assim, favorece a proliferação da violência e o crescimento da criminalidade de toda ordem, mediante assaltos, seqüestros, contrabando, tráfico de drogas, exploração sexual de mulheres e crianças.
• Além disso, há uma profunda mudança nas condições de trabalho. Apesar de criar novas oportunidades, causa também um amplo desemprego. Este, por sua vez, gera angústias e desesperança quanto ao futuro entre as pessoas afetadas ou ameaçadas. Como tentativa de sobrevivência, expande-se uma teia de sub-emprego e trabalho informal, sem seguridade social mínima.
• Os avanços nas pesquisas científicas, que envolvem a genética e a biotecnologia, deixam as pessoas inseguras e expostas a interesses até agora obscuros. O risco de que estes avanços possam servir para a manipulação e para fins preponderantemente comerciais nos deixa extremamente preocupados. É indispensável uma abordagem ético-social desses recursos, bem como seu controle político e social.
• Assistimos à eclosão de conflitos bélicos regionais e manifestações violentas que, além de suas causas econômicas, também são motivados por razões étnicas e mesmo religiosas. O gasto em armamentos seria suficiente para saldar todas as dívidas externas do mundo ou garantir o atendimento às necessidades básicas da população mundial.
Toda esta realidade aqui denunciada encontra-se em flagrante contradição com a imensa capacidade técnico-científica, hoje existente, de gerar recursos, capacidade jamais havida na história até os dias de hoje. Sendo socialmente bem distribuídos, esses recursos poderiam superar todas as iniqüidades mencionadas e garantir vida digna para a humanidade inteira. Essa contradição nos faz concluir que a realidade de sofrimento e injustiça denunciada não é fatalidade, muito menos vontade de Deus, mas fruto da ambição humana e da concentração de bens e poder entre pessoas, grupos e nações. Como Igreja, reconhecemos que participamos dessa culpa. Por isso mesmo, sentimo-nos na obrigação de, nesse contexto, confessar essa culpa, mas acima de tudo nossa fé, nossa esperança e nosso compromisso, baseados num Deus de justiça e paz.
2. A confissão de nossa esperança
Sempre preparados para dar “razão da esperança que há em vós” (1 Pedro 3.15)
A teologia da graça nos anima e fortalece na esperança e no compromisso transformador diante da ideologia do crescimento e acumulação ilimitados. Ela também previne contra uma teologia que enaltece o consumo como um fim em si mesmo ou glorifica a prosperidade desvinculada dos valores da justiça. O que temos e somos não constitui mérito nosso, mas representa dádiva e graça de Deus. Somos tão somente parte da criação divina. A criação nos é confiada a nosso cuidado, jamais para sua exploração.
Realçamos a teologia do amor que se doa, em oposição a uma ideologia que promove a exclusão e alimenta uma cultura da auto-satisfação.
Cremos no Deus da vida que ouve o clamor do povo sofrido e os gemidos de sua criação.
Cremos no Deus da vida que espera misericórdia e não impõe sacrifícios.
A idolatria de nossos dias fica excluída como opção autêntica já nas palavras de Jesus: “Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de aborrecer-se de um, e amar ao outro; ou se devotará a um e desprezará ao outro. Não podeis servir a Deus e às riquezas.” (Mateus 6.24) O reino de Deus e a sua justiça não combinam com a acumulação de riqueza por parte de alguns em detrimento do atendimento das necessidades existenciais da coletividade.
Confessamos que a fé no Deus da vida, ao relativizar a centralidade da economia, nos liberta para ações de graça e serviço, de trabalho e descanso, de festa e solidariedade.
Ao mesmo tempo, confessamos nossos limites e nossa precariedade quando se trata de viver e experimentar a partilha e a promoção da justiça e de vida digna para todos. Estamos conscientes das contradições, fracassos e tentações presentes nas comunidades e na Igreja. Sentimo-nos também envolvidos pelo sistema político-econômico vigente, a ponto de sermos co-participantes de um jogo com regras e fins dos quais até discordamos. A crise de valores traz em seu bojo outras graves conseqüências, como o tráfico e o consumo de drogas e o crescimento da corrupção no âmbito público e privado, em escala nunca imaginada. Nessa ambigüidade vivemos. Carecemos todos de libertação, renovação e mudança de rumo. Necessitamos de arrependimento e nova vida.
No entanto, em fidelidade à Palavra de Deus e à fé despertada e animada pelo Espírito Santo, somos instados a proclamar a razão de nossa esperança numa época de enormes desafios bem como de imensas necessidades e tentações.
Cremos em Deus que cria, mantém, salva e consola.
Por isso, rejeitamos doutrinas pseudo-religiosas mascaradas de projetos e sistemas político-econômicos que promovem a morte e exigem para si mesmos veneração e adoração.
Cremos em Jesus Cristo, a partir de quem recebemos vida nova. Somos perdoados e libertos de todas as amarras para servir, de forma livre e agradecida, a todas as criaturas, porque Deus em seu amor envolve a tudo e a todos, e a ninguém exclui.
Por isso, rejeitamos doutrinas que pregam a separação das esferas espiritual e material, depreciando o mundo e a sociedade e enaltecendo apenas valores espirituais. Igualmente rejeitamos todas as formas de preconceito racial e discriminação étnica.
Cremos no Espírito Santo, que pela Palavra e pelos sacramentos cria e mantém a Igreja. Esta é formada não por pessoas isentas de culpa, mas por pecadores justificados pela graça de Deus, pessoas que são chamadas a constituir comunidade, prestar culto a Deus e a testemunhar sua fé num mundo marcado pelo pecado. Esta fé move a Igreja e todos seus membros a viver em amor e a doar-se no serviço ao próximo, em especial aos mais pequeninos e fracos, aos desamparados e desconsolados, aos injustiçados e que padecem qualquer tipo de necessidade. Enquanto instituição humana, a própria Igreja e seus membros deixam questionar-se, pela Palavra, em suas falhas, a fim de que seu serviço seja mais consoante com a vontade de Deus.
Por isso, rejeitamos doutrinas que adaptam a Igreja ao mundo a ponto de ela servir aos interesses ideológicos e políticos hegemônicos, perdendo assim toda sua dimensão crítico-profética. Igualmente rejeitamos um individualismo que, mesmo afirmando a dignidade de cada pessoa humana, despreza na prática a importância de sua inserção e vivência fraterna em comunidade. Negamos que a pessoa se baste a si mesma, mas afirmamos a necessidade do servir uns aos outros.
3. Nossa vocação e ação
“Servi uns aos outros, cada um conforme o dom que recebeu.” (1 Pedro 4.10)
Conforme o testemunho bíblico e o Reformador Martim Lutero, a fé jamais ficará ociosa. Por conseguinte, os cristãos de confissão luterana são chamados a:
• Renegar a ideologia que dá suporte à acumulação e concentração de riqueza em benefício de minorias e em detrimento do atendimento das necessidades básicas do ser humano e da manutenção da boa criação de Deus.
• Renegar a adoração do capital e da religião do consumo como definidora do sentido da vida.
• Renegar modelos econômicos que desconsideram a necessidade e urgência de um desenvolvimento auto-sustentável que preserva a vida no planeta.
• Renegar todas as formas de individualismo voltado tão-somente para a auto-satisfação, desconsiderando a importância das relações coletivas e comunitárias, bem como o serviço mútuo e a solidariedade.
• Renegar toda e qualquer forma de competição proselitista entre as igrejas, mas afirmar a necessidade e as possibilidades da cooperação ecumênica.
• Renegar todo tipo de intolerância e desrespeito para com pessoas de orientação religiosa distinta e diferente da cristã, mas valorizar todos os empreendimentos em favor da paz e da vida.
Enfim, reconhecemos que a Igreja, como comunhão de comunidades centradas em Cristo, procura manter-se fiel ao Deus da Vida. Assim, torna-se, pelo Espírito Santo, instrumento de animação, articulação e realização da promessa e vocação evangélicas de ser luz do mundo, sal da terra e fermento na massa. O Espírito Santo nos desperta e nos abre os olhos para uma nova visão. Inspira-nos para agir com criatividade e destemor. Liberta e capacita-nos para a colocação de sinais concretos da nova vida em partilha solidária, segundo a vontade de Deus.
Nesse sentido, a IECLB se irmana ecumenicamente a todas as igrejas cristãs e “coopera, na medida do possível, com órgãos governamentais e não-governamentais, a fim de promover a justiça através da cura dos males sociais”. Assim o afirma o “Plano de Ação Missionária da IECLB” (pág. 14), aprovado pelo XXII Concílio em Chapada dos Guimarães. Segundo este Plano, todos nós somos comprometidos com a missão de Cristo, que veio para que todas as pessoas “tenham vida e a tenham em abundância” (João 10.10).
Chapada dos Guimarães, MT, 22 de outubro de 2000