Lutero universitário

01/12/2013

O jovem Martim Lutero (ou Luder na grafia de então) estudou por quatro anos em Erfurt. Frequentou a “Faculdade dos Artistas”. Depois estudou Direito. A op- ção não foi Teologia. Foram quatro anos importantes. Tinha entre 18 e 22 anos. Normalmente, esses anos são considerados os mais importantes no desenvolvimento da pessoa. Contudo, ele pouco fala a seu respeito, dando destaque a conflitos experimentados no mosteiro. Quando fala de Erfurt e de seus estudos louva os professores pelos conhecimentos transmitidos, mas critica-os por não haverem comunicado o “principal”. Em Erfurt, teria tido, pela primeira vez, uma Bíblia em suas mãos e... dado uma olhadinha. Biógrafos afirmam que estava acorrentada e aproveitaram para afirmar que ele teria libertado a Escritura de seus grilhões. A afirmação carece de objetividade: o valor de uma Bíblia de Gutenberg equivalia a uma junta de bois! Caso fosse roubada, o prejuízo era grande. O jeito era acorrentá-la.

O primeiro biógrafo de Lutero descreve-o como estudante exemplar. É tipo alegre que inicia o dia com oração e missa. Depois parte para os estudos, origem de seu provérbio: ‘Oração intensa é mais da metade do estudo’. Diálogos com professores e colegas, além de frequência à Biblioteca deram consistência aos estudos. Após um ano tornou-se Baccalaureus. Transcorridos mais dois anos, Magister. O pai radiante, pois o filho correspondia ao caminho por ele traçado, passou a designá-lo de “Senhor”, deixando de lado o “Tu”. Antevia o filho secretário e conselheiro de príncipes.

Ao ingressar na Universidade, o estudante tinha que passar a residir em uma “bursa” (=bolsa), em internato. Tudo era controlado: orações, estudos, alimentação, entradas e saídas, currículo. A vestimenta era uniforme. Não cabia ao estudante a escolha das leituras. Luder só vai ter lido o que foi determinado pelos professores. O uniforme estudantil assemelhava-se à batina dos monges, mas cada estudante trazia espada à cintura. A espada não era mero adorno. Duelos, mesmo que proibidos, aconteciam. Um dos melhores amigos de Luder foi morto em um desses duelos. Sua morte pode ter levado Martim a ingressar no mosteiro. Nas bursas, as refeições eram abundantes e também se consumia cerveja. Havia diversas tavernas na cidade, onde também se reuniam os professores. Havia os conservadores, sóbrios, mas também aqueles humanistas que encontraram modelos entre os antigos clássicos, mais liberais.

No centro de Erfurt encontrava-se a catedral e a igreja de São Severo, formando uma espécie de burgo, no qual residia a aristocracia eclesiástica. Os cidadãos de Erfurt considerava-a corpo estranho. Viviam em suntuosas residências. Suas mesas serviam as mais finas iguarias e os melhores vinhos, o que só veio à tona, quando nos dias da Reforma o povão invadiu o burgo, caçando os “padrecos”. Tinham suas concubinas, no que não eram exceção. Sanguessuga da sociedade de Erfurt, este alto clero também estava isento de todos os impostos em decorrência das isenções e privilégios que lhes eram concedidos pelo arcebispo de Mogúncia (= Mainz). Isso só fazia aumentar o ódio em relação ao arcebispo e a seus representantes.

A cidade tinha nos dias de Luder mais de 90 igrejas e capelas, além de 36 mosteiros e conventos, nos quais estavam presentes as mais diferentes ordens e congregações. Havia grupos “reformados”, “observantes” e críticos dos abusos, mas a regra era a inobservância. Monges perambulavam pela cidade, participavam das festividades e procuravam por comida, onde a pudessem encontrar. Não devem ser criticados por isso, pois na vida religiosa havia desníveis. Havia grupos privilegiados com bons recursos e outros bem menos dotados que se aproximavam da penúria. Os desníveis sociais também se manifestavam na sociedade religiosa. A única coisa que tinham em comum era o caráter indelével da ordenação sacerdotal. Esse caráter indelével era acentuado em sua defesa, quando alguém, por exemplo, pretendia processar um clérigo por roubo, adultério ou por assassinato. Somente a instituição Igreja podia julgá-los, o que só fez aumentar a ira popular.

Os registros das críticas aos monges e clérigos, contudo, não nos deveriam le- var a encobrir a vida religiosa em Erfurt. Na cidade aconteciam festas e procissões. Capelas e igrejas continuavam a ser construídas. Artesãos produziram entalhes preciosos. Lápides foram esculpidas para designar locais em que pessoas eram sepultadas. Ourives produziram muitos ostensórios e cálices, majoritariamente destruídos quando, mais tarde, se caçou a “fradaria”. Mas isso não é tudo: nos mosteiros também havia monges que meditavam em silêncio e se dedicavam à oração. Estes, porém, não eram a regra. Partes significativas do estrato social estavam podres.

Não dispomos de informações sobre como o estudante Luder percebeu o que descrevemos. Não deve ter ficado apenas na leitura dos textos recomendados por seus professores. Por outro lado, não deve ter participado dos excessos da vida estudantil. Aperfeiçoou-se, antes, na técnica do debate acadêmico, o que lhe seria de grande valia no futuro, quando professor universitário; soube ser mestre nesta arte.

Estudante esforçado fazia da oração parte integrante de seu cotidiano, e em pouco tempo prestou seus exames. De seus colegas recebeu dois apelidos “filósofo” e “músico”. De fato, depois da Teologia, a Música foi o que mais o atraiu. A Música constava do currículo universitário, mas estava ligada ao ensino da Matemática. Cantava quando garoto. Tinha bela voz. Tocava alaúde, cuja afinação em geral exigia nada menos que 15 minutos e ouvido apurado, o que não faltava ao estudante. Não sabemos quais eram suas melodias preferidas, mas a “música popular” estava em ascensão e surgiam as primeiras coletâneas. A música era acompanhada por danças e as pessoas não tinham dificuldade de acompanhar também os cantos sacros com danças. Disso Luder aprendeu que “a música alegra a alma; não é a boca quem se alegra. Quando se canta esforçado, a alma se encontra no corpo, brinca e se sente muito bem. A música é consolo quando há tentação e tristeza, que são representantes do diabo. O diabo não tolera alegria e foge da música”.

Luder havia obtido o grau de Magister. A sua frente estava o estudo do Direito. O Codex Iuris de Justiniano lhe foi dado de presente pelo pai que desembolsou um bom dinheiro. O filho seria jurista, seguiria carreira no mundo político. O pai também lhe planejou o casamento, com noiva rica. Brilhante carreira se descortinava.

Colega de estudos nos relata que o Codex Iuris e outros livros foram adquiridos em Gotha. Ao retornar desta cidade teria recebido sinal do céu, por ele interpre- tado como ordem para ingressar em mosteiro. Chegando a Erfurt, vendeu os livros, convidou amigos e amigas para encontro alegre, ao final do qual se diri- giu ao mosteiro. Ninguém, a não ser Lutero, viu o raio que o jogou ao chão, nas proximidades de Stotternheim, e o fez prometer a Santa Ana que seria monge. O pai nem sequer foi comunicado da decisão, pois o filho sabia muito bem qual teria sido a reação. Pela primeira vez em sua vida negou obediência a uma autoridade e confiou a vida a outra autoridade: a Igreja. É impossível que o “raio”, como o quer a maioria das biografias de Lutero, seja o único responsável pela decisão. Outros “raios” estão em jogo.

Entre esses “raios” está a morte de amigo. A morte, aliás, fazia assustadoramente parte do cotidiano, pois volta e meia a peste se manifestava. Dois irmãos de Luder sucumbiram a ela. Por ocasião de uma viagem, ele próprio caiu e a espada que carregava cortou-lhe a coxa, seccionando artéria. Quase morreu em consequência da perda de sangue. Invocou Maria. Passou por forte depressão. Muitas vezes, mencionará o dito: “o desespero faz o monge”. Qual terá sido o “desespero” que o levou ao mosteiro? Na velhice, Lutero culpou a educação rigorosa dos pais pelo ingresso no mosteiro. Não deve ter sido essa a causa. Martin havia experimentado muita liberdade em Erfurt. Essa liberdade, talvez, o tenha levado a buscar por nova autoridade. A questão da submissão à autori- dade sempre fez parte de sua vida. Aos 22 anos a autoridade paterna já não mais ajudava, nem os livros jurídicos. Esses livros só opinam: “é possível”, “pode ser”,  “certamente... mas”. Talvez a única autoridade que ainda lhe parecia insofismável fosse a Igreja. Depois, no mosteiro, descobriu que também ela não o era. Por isso, dirigiu-se diretamente a Deus, através da Bíblia, outra autoridade, uma manjedoura, na qual se encontra Jesus ou “palha”. Daí brotaram duas certezas: Somente Cristo! Somente a Escritura!

Quando o “raio” bateu naquele carvalho próximo a Stotternheim, fez uma promessa. Jovem, tratou de cumpri-la. Na vida acontecem erros de leitura. Podem acontecer conversões. Mais tarde, Lutero dirá que quando Deus bate na gente está querendo nossa conversão. Muitos, porém, fogem dele. “Sob o papado a gente ia para o mosteiro.” Ainda mais tarde dirá que ali permaneceu até que aprouve a Deus agir de outra maneira.


O autor é Pastor e Professor emérito de história e reside em São Leopoldo/RS


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Autor(a): Martin Dreher
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2014 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2013
Natureza do Texto: Artigo
ID: 34374
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Quando eu sofro, eu não sofro sozinho. Comigo sofrem Cristo e todos os cristãos. Assim, outros carregam a minha carga e a sua força é também a minha força.
Martim Lutero
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