Prédica: Lucas 6.17-26
Leituras: Jeremias 17.5-8 e 1 Coríntios 15.12,16-20
Autora: Selma Nascimento
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 12/02/1995
Proclamar Libertação - Volume: XX
1. Análise do texto
O texto apresenta Jesus após sua oração solitária (6.12) e a escolha de seus apóstolos (enviados) (6.13-16). De maneira diferente de Mateus (5.1), onde Jesus sobe a montanha e fala aos seus discípulos, a mensagem do texto de Lucas descreve Jesus descendo a um lugar plano e apresentando sua mensagem a um grupo numeroso de discípulos e a uma massa enorme de gente vinda de toda a Judéia e de Jerusalém, do litoral de Tiro e de Sidom (6.17) — uma proposta de dimensões universalistas.
Os vv. 18 e 19 apresentam uma multidão atenta ao novo ensinamento e à nova realidade — a cura. Lucas parece estar mais preocupado em mostrar o essencial da mensagem cristã — a prática do amor, uma vez que não explicita o teor da mensagem da planície.
Fazendo ainda um paralelo com o texto de Mateus, veremos o seguinte:
MATEUS LUCAS
oito bem-aventuranças (5.3) quatro bem-aventuranças sobre os pobres (6.20b)
Mateus | Lucas | |
Pobres | 5.3 | 6.20 |
Famintos | 5.6 | 6.21 |
Os que choram | 5.4 | 6.21b |
Perseguidos | 5.11 | 6.22 |
Lucas acrescenta quatro maldições (6.24-26). Há ainda outras diferenças: Lucas fala em pobres (6.20b), Mateus em pobres em espírito (5.3); Lucas — os que estão com fome (6.21), Mateus — os que têm fome e sede de justiça; Lucas — aqueles que choram (6.21b), Mateus — os aflitos (5.5). Com tranquilidade, se percebem divergências nas duas formulações das bem-aventuranças. O texto de Lucas deve ser entendido a partir do problema vivencial que constituía para as comunidades cristãs dos anos 70, o atraso da Parusia. Precisava dar uma nova significação à existência cristã chamada a prolongar-se no tempo da Igreja.
As três primeiras bem-aventuranças — as dos pobres, dos aflitos e dos famintos — formam um todo e devem representar o núcleo mais antigo da pregação inicial do Jesus histórico. Este fundo, em estreita relação com o oráculo de Isaías 61.1-2 (também 49.10,13; 52.7,9...), era a afirmação fundamental de que em Jesus Deus queria pôr um termo às situações desumanas, a todo esse mal intolerável que surgia diante dele como um desafio à sua justiça real e de que eram vítimas os pequenos do seu povo. Para eles a vinda de Jesus era uma boa nova — a da libertação.
Quem são os bem-aventurados de Lucas?
* Pobre — é aquele que não tem trabalho para sobreviver, que assim deve, desprovido de tudo, mendigar. É aquele que, na sociedade, fica submetido aos poderosos; aquele que, sem aparência e cultura, não pesa na balança e, então, não tem nada a dizer.
* Aflito — é a pessoa submetida a tristeza profunda e persistente; tão profunda e forte é esta tristeza que manifesta-se externamente no choro.
* Faminto — é o ser privado da comida indispensável; sequer possui os meios e as condições de procurar o pão que lhe mataria a fome.
Por incrível que pareça, Jesus os proclama felizes (6.20). É evidente que nos lábios de Jesus não há um elogio à pobreza como um ideal em si de vida. A felicidade consiste que no tempo humano o hoje da graça de Deus na pessoa de Jesus vem para libertá-los.
Lucas acrescenta as quatro maldições, ao retomar as quatro bem-aventuranças do documento primitivo. O enunciado primitivo já oferecia uma forma paradoxal e antitética: proclama felizes os infelizes. Lucas acrescenta as antíteses inversas: anuncia a infelicidade dos felizes deste mundo. Radicalizando assim o dado original, reforça-o e o precisa num certo sentido.
Quem é Lucas? Cristão de segunda geração, não conheceu diretamente Jesus de Nazaré e não foi testemunha direta de sua ressurreição. Viveu um acontecimento decisivo — a irrupção do Reino de Deus na pessoa do Libertador. Período também assinalado pela perda do grande brilho da rica Igreja de Antioquia — terceira cidade do Império Romano, depois de Roma e Alexandria.
As bem-aventuranças de Lucas devem ser lidas neste contexto. Todavia, as mesmas não devem ser isoladas do discurso inaugural de Jesus de Nazaré (4.16-21), onde se define o programa central de todo o seu ministério.
Para Lucas, a vinda do Reino representava um momento decisivo da história da salvação, que exige, ainda hoje, uma opção clara, a favor ou contra. Exige do cristão condutas e comportamentos coerentes (12.33; 16.9; 12.13-21; 16.19-31; 16.1-9; 12.21; 12.33; 18.22...).
2. Atualização
O texto leva-nos, aparentemente, a uma situação de impasse — anunciai que a felicidade está em sofrer, pois a presença do Senhor nos é garantida. Alento algum há, saber que após uma vida de dores teremos o céu. A boa notícia precisa atingir-nos hoje, em nossa realidade. Nosso contexto é doloroso — os meios de comunicação de massa revelam que levar vantagem, a lei de Gérson — tem atingido a nossa sociedade nas relações mais primárias. Mas a própria Palavra nos revela uma saída:
V. 17: A mudança de local geográfico revela um momento e um espaço em que não estamos mais divididos por questões econômicas, afetivas e sociais. Incluiria, também, raciais. Somos gente à procura de ser mais gente, de forma cristã.
V. 17: O grupo não se limita aos discípulos — embora presentes, não se encontram em situação de privilégio. Juntos, em grupos — são fermento na massa; destaque há somente para a pessoa de Jesus.
Será que em nossas comunidades conseguimos repetir tal experiência? Conseguimos realizar nosso trabalho, deixando apenas que os gestos de Jesus se sobressaiam? Vejo aí a chave de toda a questão: por reforçarmos o esquema competitivo da sociedade, nossas comunidades ainda não conseguem ser sinal desta Nova Proposta. Temos a teoria bem clara; o mesmo, porém, não ocorre com a prática. Conseqüentemente, a cura não acontece.
V. 18: Precisamos curar-nos, mas, atenção, a cura não ocorre num contexto individualizante. Por incrível que pareça, somente na relação com outras pessoas, a Boa Nova, a Cura, a Nova Sociedade chegará até nós.
Vv. 20, 21 e 22: Relação nova com aquele que padece nas dimensões afetiva, económica e social. Coerência cristã, que exige de nós uma denúncia daqueles que se encontram numa situação de saciedade afetiva, econômica e social.
Vv. 23-26: A própria Palavra nos impele a, como novos profetas, a exemplo de Jesus, recordar que, como no passado, esta sociedade não reconhece a ordem estabelecida por Deus — acolhemos falsos valores e falsos profetas.
O que precisamos fazer? Com a ajuda do Senhor e da Comunidade, vamos ensaiar, arriscar novos passos de fraternidade. Desta forma, atrairemos a presença de Jesus e seremos então tocados pela sua força, para sermos todos curados.
3. Bibliografia
Comentário Bíblico Litúrgico. Petrópolis, Vozes, 1984.
DATTLER, Frederico. Comentários Bíblicos e Homiléticos. São Paulo, Paulinas, 1970.
E´PLLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo, Paulinas, 1993.
PIKAZA, Javier. Teologia de Lucas. São Paulo, Paulinas, 1978.
STORNIOLO, Ivo. Como Ler o Evangelho de Lucas. São Paulo, Paulinas, 1992.