Prédica: Lucas 23.33-49
Leituras: Oseias 5.15b - 6.6 e Hebreus 4.14-16; 5.7-9
Autoria: Vítor Hugo Schell
Data Litúrgica:
Data da Pregação: 15/04/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
Salva-te e a nós também
1. Introdução
O quadro pintado pelo texto de Lucas 23.33-49 tem como motivo principal a crucificação e as diversas reações de seus expectadores. Zombaria, escárnio, confissão, lamento e contemplação são retratados. O texto de leitura vindo do profeta Oseias aponta para a obstinação do povo de Deus e para a cura por ele mesmo providenciada. Em foco estão o reconhecimento de culpa e a busca pela face do Senhor (cf. Os 5.15). A ferida feita é ferida que será sarada. No texto de prédica, o ferido é o próprio Jesus, sobre quem se pergunta se seria, de fato, o Cristo de Deus. A ferida é assumida por ele no monte Calvário e nele está disponível a cura a todas as pessoas, em todos os tempos. Em Lucas, misturam-se na cena aqueles que reconhecem sua culpa e enxergam na face do crucificado o próprio Senhor e aqueles que se negam a fazê-lo. Já o texto de Hebreus 4.14-16 convida, por sua vez, a chegarmo-nos junto ao trono da graça de Deus, onde se encontra o sacerdote que se compadece de nossas fraquezas (cf. Hb 4.16), o qual é Jesus, o Cristo de Deus sofredor, fraco, angustiado e tentado. Ele, porém, sem pecado e obediente no sofrimento, foi feito pelo próprio Deus Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem (cf. Hb 5.9).
2. Exegese
O texto da prédica inicia com o relato da chegada ao Calvário (tradução latina de Gólgota [heb.] = caveira, lit. crânio [kranion], talvez devido ao formato do local em questão) e da crucificação de Jesus entre os dois malfeitores já mencionados no v. 32. Os v. 33 a 38 descrevem as diversas opiniões e atitudes dos que acompanham o acontecimento, enquanto os v. 39 a 43 relatam o diálogo entre Jesus e os dois criminosos que com ele compartilham da mesma sentença. De uma visão mais geral que aponta para opiniões diversas de observadores, Lucas se volta para o protagonista da cena em um diálogo muito pessoal. De uma perspectiva mais intimista, os v. 44 a 49 fazem o leitor se voltar novamente ao significado mais amplo do acontecimento, relatando o desfecho do espetáculo (theorian). Sinais como o escurecimento do sol, o véu do santuário que se rasga, o clamor de Jesus ao Pai em alta voz, lamento e contemplação marcam a cena. Também no momento de sua morte, Jesus é para Lucas claramente o médico que veio para os que estão doentes (cf. Lc 5.31-32 e par.) e que em meio à zombaria e injustiça clama ao Pai pelo perdão aos seus acusadores porque não sabem o que fazem (v. 34; cf. At 7.60). O pedido de Jesus fundamenta ainda a possibilidade de arrependimento no último momento devido à ignorância dos judeus, motivo que é retomado na pregação apostólica (cf. At 3.17 e 13.27). Isaías 53.12, no cântico do servo do Senhor, e o v. 18 do Salmo 22 lançam uma luz especial sobre as atitudes para com Jesus narradas no v. 34. A questão principal é alcançada no v. 35, a saber, na pergunta pelo reconhecimento ou não do Cristo de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. O evento é observado pelo povo e a zombaria dos líderes religiosos vai na direção da mentalidade deles mesmos. O que importa e o que confirmaria a identidade de Jesus, na sua opinião, seria a salvação de si mesmo. O que Jesus, o Filho de Deus, porém, realiza na cruz é justamente o contrário, abrindo mão da salvação de si mesmo para salvar outros. Os soldados escarnecedores fazem com que se cumpram com Jesus as palavras do Salmo 69.21: Por alimento me deram fel e na minha sede me deram a beber vinagre. Os soldados oferecem vinagre a Jesus (Marcos ressalta que uma vez lhe foi oferecido vinho misturado com mirra, utilizado como sedativo [Mc 15.23] e que depois foi lhe dado ainda vinagre [Mc 15.36]). O escárnio dos soldados ressalta o que já fora destacado em Lucas 23.2, ou seja, a acusação de que Jesus teria buscado perverter a nação contra César, afirmando-se como rei. João, ao relatar a cena, afirma que Pilatos teria sido o responsável pela inscrição sobre a cruz: Jesus Nazareno, o rei dos judeus (cf. Jo 19.19), palavras essas que parecem uma síntese do que encontramos como conteúdo da epígrafe sobre a cruz de Jesus aqui em Lucas 23.38 e do que lemos nos outros sinóticos (veja Mt 27.37; Mc 15.26).
Somente Lucas dá atenção ao diálogo entre os crucificados. De um lado, a reação é de blasfêmia e, de outro, de temor a Deus, reconhecimento da própria culpa e de que Jesus estava a sofrer castigo injustamente. O v. 42 ainda aponta para o pedido em confiança na vinda do Reino que é, sim, de Jesus. O clamor reflete a fé de que Jesus é o Cristo. A resposta de Jesus ao pedido realizado afirma a realidade do Reino como dimensão presente no “hoje”. A expectativa messiânica do primeiro criminoso apresenta-se como certeza de que o verdadeiro Cristo salvaria a si mesmo e os criminosos da condenação recebida, de que o Cristo tomaria o Reino e livraria do jugo opressor romano. O segundo criminoso lança seu olhar para o Reino que vem e que é, sim, conforme Jesus, para “hoje” como grandeza temporal, como eternidade experimentada, mas que ainda assim não significa o livramento imediato da cruz no Calvário, mas o “paraíso” como grandeza espacial que remete à ideia recebida a partir da compreensão bíblica do jardim de Deus em Gênesis.
O escurecimento do sol e as trevas durante três horas (da hora sexta até a hora nona, que correspondem, pela contagem judaica, do meio dia às três horas da tarde) e o rompimento ao meio do véu do santuário do templo de Jerusalém, o qual separava o Santo dos Santos como local da presença de Deus, são sinais que apontam para a amplitude, para o significado do “espetáculo” observado pela multidão presente (cf. v. 48), pelos soldados (cf. v. 36 e pelo seu comandante, o centurião, cf. v. 47) e também por seguidores e seguidoras de Jesus desde a Galileia. O evento tem consequências cósmicas. Nele a história da salvação atinge seu ponto alto e por meio dele a separação que existia entre Deus e o povo é desfeita. O v. 46 descreve o momento exato da morte de Jesus. Entregando-se completamente nas mãos do Pai, utilizando-se das palavras do Salmo 31.5 (assim como também o faz o mártir Estêvão, cf. At 7.59), Jesus morre. Representativas são as reações do centurião e da multidão reunida. O centurião dá glória a Deus (cf. v. 47), reconhecendo Jesus como homem justo, enquanto a multidão retirava-se a lamentar e a bater no peito em sinal de perplexidade. Os seguidores e as seguidoras de Jesus desde a Galileia contemplam de longe o que acontece. Lucas 8.1-3 dá destaque às mulheres que seguiam Jesus e que, inclusive, lhe prestavam assistência com seus bens.
3. Meditação
Jesus fora julgado de forma nada imparcial e condenado à cruz como criminoso. Com isso a multidão de judeus e suas autoridades, aliadas dos romanos, estavam satisfeitas. A opinião de Caifás, relatada pelo evangelista João, representa bem o pensamento da liderança judaica: Nem considerais que vos convém que morra um só homem pelo povo, e que não venha a perecer toda a nação (Jo 11.50). Levado ao Calvário e crucificado, Jesus morre, enfim, por conveniência. Ironicamente, Caifás acaba afirmando que a morte de Jesus aconteceria por toda a nação. Ainda que a preocupação de Caifás se limite ao momento político específico, o evangelista João faz o mesmo que o evangelista Lucas no texto da prédica: ambos olham para além, para o significado amplo e decisivo do que está acontecendo com Jesus.
Lucas descreve a maneira como o evento é encarado por diversos grupos. Por detrás de zombaria e escárnio apresenta-se a pergunta decisiva: poderia ser Jesus de Nazaré o Cristo, o ungido de Deus (cf. v. 35)? A pergunta pelas credenciais de Jesus permeia o relato dos quatro evangelhos. Como um malfeitor condenado e crucificado entre outros dois criminosos poderia ser o Cristo? Enfatizando o escárnio sofrido, o sorteio de suas vestes e a zombaria por parte das autoridades presentes, Lucas faz o leitor atento lembrar de que tudo isso já estava nos planos de Deus. Palavras do Antigo Testamento lançam luz sobre esses planos, concretizados no evento que agora é testemunhado. Claro que isso só enxergam os olhos da fé! As personagens presentes na hora da crucificação são descritas como senhores da situação e a ironia é que Lucas mostra que justamente na zombaria e no escárnio fazem cumprir o plano de Deus. Como nos outros evangelhos, também em Lucas é preciso enxergar que Jesus não vai ao encontro de expectativas e interesses que limitam seu Reino à perspectiva humana imediatista, egoísta e utilitarista, para dizer o mínimo. Mas não são somente as autoridades judaicas e romanas que têm uma visão equivocada sobre o que Jesus deveria fazer. Vemos nos evangelhos que os próprios discípulos se mostram, por vezes, totalmente afastados dos propósitos de seu mestre. O evangelista Marcos, por exemplo, faz questão de mostrar quão insistentes eles são, a caminho de Jerusalém, em sua ânsia por poder político, domínio e benefícios para o agora (basta lermos com atenção os capítulos 8, 9 e 10 de Marcos), enquanto Jesus fala de sua morte e ressurreição. Para ser reconhecido como Cristo, Jesus deveria, então, salvar a si mesmo, seguindo a mesma lógica que governa este mundo. Não é a si mesmo, porém, que Jesus quer salvar. Sua lógica é a do Reino, da entrega e do serviço ao próximo (cf. Lc 9.23ss). Somente na sua entrega está a nossa salvação!
Deixando de lado a multidão e os diversos grupos de espectadores por um momento, Lucas procura mostrar nos v. 39-43 de que maneira o acontecimento torna-se um confronto pessoal que leva inevitavelmente a um posicionamento de fé. Também um dos ladrões ao lado de Jesus é deflagrado em sua visão equivocada sobre o Messias. A resposta à pergunta pela identidade de Jesus marca também a hora final dos dois criminosos crucificados ao seu lado. É preciso perceber que o serviço prestado por Jesus não é como qualquer favor que possamos, de alguma forma, prestar a alguém. Discípulos de Jesus servem porque foram servidos por ele, que sendo Deus serviu em primeiro lugar (cf. Fp 2.6-7). Discípulos e discípulas de Jesus são como o criminoso perdoado ao lado de Jesus. A diferença é que tiveram tempo para viver um pouco mais e que, no tempo que lhes resta, vivem em gratidão a quem lhes salvou. O serviço feito por Jesus na cruz não pode ser substituído por nenhum outro, pois Jesus é o Cristo, o ungido de Deus. A sentença que desgraça a vida do criminoso na cruz ao lado não é por si só o que lhe serve como força propulsora para o favorecimento, como uma espécie de “purgatório”, que o isenta da necessidade do que apenas o Messias pode lhe oferecer. Sofrer como pecador é resultado óbvio! O que não é óbvio é que o justo sofra daquela forma (veja o v. 41). E é essa a injustiça que Jesus encara. Jesus de Nazaré não é apenas mais um crucificado entre tantos e isso precisa ser reconhecido. Ele é o Messias, o Filho de Deus. A partir disso é necessário dizer que também quem não tem mais a esperança de “descer da cruz” para poder realizar qualquer serviço, quem não tem mais tempo para qualquer boa obra que “limpe sua barra” diante dos seus e da sociedade, tem seu destino decidido pelo confronto pessoal com o Jesus crucificado, em quem os olhos da fé podem enxergar o ungido de Deus, o caminho para estar “hoje mesmo” no paraíso.
Por fim, o relato aponta para o significado do evento da cruz bem para além de opiniões pessoais. Certo é que no “espetáculo” assistido não se trata de um evento isolado, resultante apenas de mais uma arbitrariedade do governo romano em parceria com as lideranças judaicas, nem de um evento meramente íntimo, que faz diferença apenas no coração de um criminoso arrependido, que, na hora final, sem alternativa, investe todas as suas fichas no mestre Jesus. Lucas relata a consternação e o lamento dos espectadores, os sinais no cosmos e no templo, que acompanham a crucificação de Jesus e apontam para sua abrangência e centralidade na história da salvação de Deus.
No v. 46, lemos que Jesus entrega-se inteiramente nas mãos do Pai. Sua obra está realizada. Ainda antes o sol se escurece e o véu do santuário se rompe. Existe algo a mais, para além da esfera de domínio daqueles que se pensam no controle da situação. Lucas relata um fato que convida à fé. Responder positivamente ao convite significa colocar-se em sintonia com os planos de Deus que acontecerão, por fim, quer queiram ou não. Não é a aceitação em fé da pessoa de Jesus por parte de alguns ou a zombaria e descrença por parte de outros que torna o evento relevante, como se a fé produzisse um sentimento bonito que faz ver algo onde nada existe. Para Lucas, os eventos fazem parte da história universal e seu testemunho é relato do ponto alto da história da salvação de Deus que acontece no Calvário e confronta todas as pessoas. Para ele não é assim que “fé cada um tem a sua e sobre religião a gente não discute!”.
O relato chama-nos a um posicionamento frente ao que acontece com o Cristo de Deus, o salvador dos pecadores, o médico que veio para os que estão doentes (cf. Lc 5.31-32) e que assume a morte sobre si mesmo. O posicionamento frente à sua pessoa, a confissão de que ele é o Cristo (cf. 1Jo 2.22) decide tanto de que forma viveremos adiante “hoje mesmo” quanto se, ao findar nossa vida por aqui, estaremos ou não com ele no paraíso. Jesus não deixa o criminoso confesso (veja o v. 41), o pecador que sobre ele coloca sua confiança sem sua palavra de esperança, sem sua promessa que faz olhar adiante! Jesus não deixa aquele dia de trevas e pavor sem apontar para o que viria pela frente. Na sexta-feira de sua paixão Jesus aponta para o terceiro dia, para a ressurreição. Que o Espírito Santo nos conduza à fé em Jesus, a um posicionamento claro de fé “hoje mesmo” e à esperança na promessa da vida da ressurreição. Amém.
4. Imagens para a prédica
Muitos são os episódios dos próprios evangelhos que trazem imagens que podem ressaltar a congruência entre o agir de Jesus ao enfrentar a cruz e o seu anúncio do Reino e proceder já anteriormente. Vários são os confrontos de Jesus, especialmente com as autoridades e líderes religiosos judaicos, que mostram a falta de entendimento a respeito de sua missão e identidade e a pergunta pelas suas credenciais. O segundo aspecto a ser ressaltado na prédica a partir do diálogo entre Jesus e os criminosos ao seu lado é a exclusividade da pessoa e obra de Jesus na cruz e a aceitação confiante dessa obra por fé. Muitas palavras do apóstolo Paulo sublinham o aspecto da salvação por graça e fé e poderiam ser conectadas a essa parte da prédica. Também trechos do reformador Lutero podem servir como apoio.
5. Subsídio litúrgico
A pergunta pela presença de Deus em meio ao sofrimento, em destaque nos últimos tempos devido à pandemia, e a ausência de respostas que apontem na direção de um Messias que “desce da cruz” e tudo resolve instantaneamente com poder podem ser elucidadas em algum momento por meio da imagem da crucificação de Cristo de Matthias Grünewald (1470-1528), do altar de Isenheim (facilmente encontrada na Internet). A imagem ajudará a ressaltar (1) o Cristo para além das expectativas messiânicas marcadas por imediatismo e utilitarismo, de uma teologia da glória; e (2) a presença de Deus levando sobre si mesmo, em Cristo, a peste e a morte.
Bibliografia
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. In: FASCHER, E.; ROHDE, J.; WOLFF, C. (Hg.). Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 9. Aufl. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1981. v. 3.
MORRIS, L. L. Lucas. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1983.
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