Prédica: Lucas 22.31-34
Autor: Bertholdo Weber
Data Litúrgica: Domingo Invocavit
Data da Pregação: 20/02/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII
I — Texto
V.31: Simão, Simão, eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo.
V.32: Eu, porém, roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça. E tu, quando te tiveres convertido, fortalece os teus irmãos.
V.33: Ele (Pedro), porém, disse-lhe: Senhor, estou pronto a ir contigo, tanto para a prisão, quanto para a morte.
V.34: Mas ele (Jesus) respondeu: Asseguro-te, Pedro, que hoje o galo não cantará, antes que por três vezes tenhas negado conhecer-me.
II — Contexto
A nossa perícope, que se destina para o primeiro domingo da Paixão (Invocavit), faz parte de três conversações de Jesus com os seus discípulos (Lc 22.24-38). Encontra-se no meio, entre a disputa dos discípulos sobre qual deles seria o maior (vv. 24-30) e a exortação sobre a seriedade da hora (vv. 35-38). Esta posição do trecho todo, em meio à história da Paixão, deve-se ao trabalho redacional de Lucas, que aproveita o espaço de tempo entre a celebração da Ceia e a luta de Jesus no Getsêmani, para preenchê-lo com material que se encontra em outro contexto, nas passagens sinóticas paralelas. Todas as três conversações têm em comum a ignorância assustadora dos discípulos no que toca sua missão, a superestima de sua própria capacidade (Pedro) e a hora extremamente séria em que se encontram, seguindo a Jesus na caminhada à cruz.
III — Pistas exegéticas
A perícope levanta questões muito discutidas entre os exegetas, por exemplo, a unidade original, a autenticidade histórica e o lugar vivencial na comunidade após a Páscoa. Para o nosso objetivo homilético é desnecessário entrar em pormenores da análise crítico-literária, histórico-tradicional e redacional. Limitamo-nos ao seguinte:
O texto da perícope não forma uma unidade literária homogênea, mas se compõe de duas partes nitidamente distintas e, quanto à imagem de Pedro, até opostas entre si. Vejamos:
1. A primeira, parte, Lc 22.31 s, é material exclusivo de Lucas. Trata-se de uma palavra isolada, de tradição independente de Mc 14.27 (onde Jesus anuncia: Todos vós vos escandalizareis comigo..., relacionando este anúncio igualmente com a negação de Pedro).
Os vv. 31 e 32 referem-se a uma situação grave que põe à prova a fidelidade de fé dos discípulos. Trata-se, provavelmente, de um processo de triagem, de peneiramento (SINIAZEI = peneirar) através de uma perseguição iminente (At 8.1?). Em vista dessa provação futura, que sobrevirá a todos os discípulos, Jesus faz a promessa de que a fé de Pedro será preservada. Isto, não por causa da firmeza de seu caráter ou força de sua própria convicção de fé, mas porque Jesus intercede por ele em oração. Essa intercessão visa menos a pessoa de Pedro do que a missão, da qual o Senhor o incumbe. Sua tarefa, após ter passado pelo fogo da tentação, será fortalecer seus irmãos peneirados, guardando-os da ruína total de fé.
Por outras palavras: a intercessão de Jesus em favor de Pedro, para que a sua fé não desfaleça, põe limites ao poder de Satanás, que tem permissão (!) de peneirar os discípulos, isto é, de separar, pelo crivo, o trigo do joio. — Satanás representa o poder supra-individual do mal, o adversário de Deus, do seu povo e de sua missão no mundo. Ele é o tentador que procura separar os fiéis de Deus e põe à prova fé e fidelidade dos discípulos. — E essa provação é tão forte que ninguém, por si mesmo, é capaz de resistir aos seus ataques infernais. Mas a oração de Jesus, em favor dos seus, barra a reclamação diabólica: ao tentador e destruidor interessado na queda do discípulo defronta-se o intercessor que pede pela manutenção da fé de Pedro. Não é o homem Pedro (a rocha), o homem das palavras convencidas e de compenetração desmedida do seu próprio valor e coragem, quem constitui a garantia de não sucumbir. Antes, essa garantia é dada pelo fato de ele estar sendo guardado na fé, apesar de toda a insuficiência humana, unicamente pela fiel intercessão de Jesus. A perseverança na fé não é mérito próprio, mas, sim, graça imerecida que envolve o compromisso para com os irmãos fracos e necessitados.
Assim, o sentido da primeira parte da perícope é claro e concludente: todos os discípulos serão peneirados num processo de eliminação; a fé de Pedro, porém, manter-se-á, graças à intercessão de Jesus, e, por isso, cabe-lhe a tarefa de fortalecer mais tarde os seus irmãos e guardá-los o quanto possível da queda irremediável.
2. A segunda parte da nossa perícope (Lc 22.33s) apresenta uma imagem diferente. Pedro jura, solenemente, fidelidade absoluta a Jesus e está disposto a seguí-lo à prisão e até à morte. Em seguida, porém, tem de ouvir do Mestre o anúncio de sua negação e o malogro de sua fidelidade prometida.
Essa predição (v.34) é um anexo secundário e está em tensão com a promessa de Jesus dada a Pedro na primeira parte (v.32). A ligação entre as duas partes é obra redacionai de Lucas, que coordenou duas tradições opostas. Para conciliá-las era preciso reduzir a promessa, a fim de equilibrá-la com a negação. Isto, o evangelista o consegue, inserindo na missão de Pedro (v.32b) as palavras: quando te converteres (EPISTREPSAS), o que em aramaico simplesmente pode significar: novamente. O termo converter-se, evidentemente, choca-se com a promessa de que a fé de Pedro não desfalecerá. Seria também desconcertante, se o anúncio da negação seguisse imediatamente depois da promessa. No texto atual, a palavra de Pedro (v.33) forma a mediação entre os dois enunciados de Jesus. Assim, o evangelista combina a profecia do peneiramento dos discípulos e da intercessão pela fé de Pedro com o prenúncio da negação. Assumindo a tradição de Marcos (14.31), Lucas prefere a formulação própria, no incondicional, harmonizando, assim, o contraste entre as duas tradições. Importante, porém, é que ele faz à profecia da tríplice negação ser precedida pela promessa de intercessão e futura função de Pedro, de fortalecer os irmãos na fé.
IV — Meditação
Nós todos temos que enfrentar a morte. Ninguém vai morrer em lugar do outro. Cada qual terá que lutar por si mesmo com o diabo e a morte. Um pode gritar aos ouvidos do outro, mas cada qual deve estar preparado por si mesmo para a hora final. Eu não poderei estar contigo, nem tu comigo. Por isso é necessário que cada um mesmo conheça bem as coisas principais que tocam ao cristão e esteja bem preparado...
Com estas palavras, Lutero começa seu sermão no Domingo Invocavit de 1522, em Wittemberg, para onde se dirigira, vindo do castelo Wartburgo, para enfrentar os distúrbios causados por elementos radicais (entusiastas), e conclama a comunidade sob a cruz de Cristo. Era uma situação histórica muito séria, cheia de desafios, tentações e agitação dos espíritos. — A caminhada do povo de Deus pela história está pontilhada por tais horas de crise e de triagem, quando a comunidade de Cristo é sacudida na peneira, ao sopro forte do vento que separa o trigo da palha. O próprio Senhor, que nestas semanas da Paixão nos convida para acompanhá-lo no caminho da cruz, não prometeu aos seus discípulos um futuro glorioso, de sucessos esplêndidos e de conquistas triunfais. A Paixão de Cristo, não restringida à comemoração na época quaresmal, constitui de fato a realidade que marca e determina vida e missão de sua comunidade no mundo.
Jesus acaba de celebrar, em comunhão com os seus discípulos, a última Ceia e está com eles a caminho para o Jardim de Getsêmani, onde será traído e preso. Os discípulos, porém, parecem nada perceber da gravidade da hora. Discutem entre si sobre quem entre eles seria o maior. Neste momento, antes de enfrentar o poder das trevas, Jesus se dirige a Simão Pedro, o representante dos demais discípulos, e anuncia-lhe que Satanás, com a permissão de Deus, reclamou-os para peneirá-los como trigo. Já naquela noite, eles abandonam o Mestre e se espalham como palha ao vento. Mais tarde, a história da comunidade cristã primitiva nos relata perseguições sangrentas que puseram à prova a fé dos fiéis. Jesus previne os seus e promete-lhes assisti-los por sua intercessão.
Na vida da comunidade pode haver períodos de desenvolvimento tranquilo e contínuo, como a sementeira do campo cresce sem distúrbios até a colheita. O mesmo pode acontecer na vida do cristão que, por experiências as mais diversas, cresce e amadurece na fé. Mas sempre houve e haverá tempos em que a comunidade e o cristão individual enfrentam todo o poder satânico, tempos em que a fé corre perigo de desfalecer e o amor começa a arrefecer, tempos em que a comunidade, em vez de seguir o crucificado e ressuscitado Senhor, sua verdadeira vocação, instala-se no mundo, deixando de cumprir sua missão de ser sal da terra e luz do mundo. Qual é a nossa situação, hoje, neste particular?
Em nossa ambiência, é relativamente fácil confessar a Cristo, comparando a nossa situação com a de cristão, por exemplo, da Albânia, do Vietnã do Norte e de outros países, onde confessar-se cristãos leva a desvantagens, perseguição e até ao martírio. E, certamente, não estamos sendo perseguidos e peneirados como os cristãos dos primeiros tempos. Mas, nem por isso deixa de estar presente, também hoje, a tentação que Jesus teve de enfrentar, no começo de sua atividade publica, e a qual ele venceu também para nós. Talvez o processo de triagem, hoje em dia, seja diferente. Há os cristãos que se acomodam, satisfeitos consigo mesmos e indiferentes para com os outros, cultivando apenas sua religião tradicional e individual, sem maiores conse-quências para a vida real. Em seu ser-cristão, não se sentem desafiados pelas necessidades, injustiças e discriminações em nossa sociedade. Ser cristão, hoje e aqui, é pensar e viver a fé de forma libertadora, comprometida com os pequenos, os pobres e humilhados, lutando por .sua dignidade e ajudando a construir uma sociedade mais justa, humana e fraterna. Ser cristão, ser discípulo de Jesus, nunca foi, e ainda menos hoje em dia é, a coisa mais natural do mundo Vale também para nós, hoje, a alternativa decisiva diante da qual se achavam os primeiros discípulos: confessar ou negar, seguir ou trair a Cristo. Negamo-lo na vida não somente com a boca, deixando de confessar o seu nome, mas faltando com o amor e a solidariedade ativa para com os irmãos.
É neste processo de peneiramento, diante de desafios e em meio a sofrimentos, que se mostra o quilate e a autenticidade da nossa fé. A nossa fé? — Aquele Pedro, tão simpático, que está pronto a seguir o Senhor até a prisão e a morte, também existe em nós: há muito entusiasmo, declarações solenes de fé e de fidelidade que nos lembram as palavras de Simão Pedro; e há, também, muito fracasso, negação e ruína no caminho da nossa fé, igual à dele. Conclusão: por mais forte e sincera que seja a nossa resolução subjetiva de seguir a Cristo, ela, por si mesma, não é capaz de resistir, na hora da provação, ao poder do mal. Os melhores propósitos e as mais sagradas tradições são levados qual palha pelo vento. Assim como a fé de Pedro, também a nossa desfalecerá sem o fiei sumo sacerdote que intercede por nós diante do Pai (Hb 7.25b). Essa intercessão de Jesus, e não a nossa fidelidade e autoconfiança exagerada, faz com que a fé não desfaleça na provação. Eu roguei por ti. Esta promessa dada a Pedro, que ocupa um lugar de liderança, vale para toda a comunidade e para cada um de nós. Quem nos segura e sustenta a fé é o Senhor, sua fidelidade e sua promessa, sua graça e sua oração em favor de nós. Não é a nossa própria segurança! Essa experiência da fé envolve o compromisso de fortalecer a todos que estão em lutas e dúvidas, correndo o risco de perder a fé e a confiança em Deus.
Pedro acaba de receber uma promessa de uma missão maravilhosa. Mas, em vez de receber humildemente essa promessa de Jesus, promete, por sua vez, seguir a Jesus até a morte. Ele se sente seguro de si mesmo. Quão corajoso se houvera no caminho do cenáculo, onde celebraram a Santa Ceia, até Getsêmani! Mas, naquela vez, eslava em companhia dos outros discípulos. Ao encontrar-se, porém, no palácio do sumo sacerdote, sozinho, a coragem o abandonou. Sentira-se seguro demais, confiando em si mesmo, em sua capacidade de guardar fé e fidelidade. Até mesmo o anúncio de sua negação não o abalara nesta sua segurança. Pelo contrário, tornava-o ainda mais teimoso (Mt 26.35). E, depois, basta uma única palavra da boca de uma criada, e Pedro falha vergonhosamente. Três vezes nega conhecer a Jesus. E, então, o galo cantou, como Jesus lhe havia predito. Eu não teria pensado que a natureza humana fosse tão fraca, escreve Bergengruen no seu romance O Grão-tirano e o Juízo.
Pedro — a pedra! — é um exemplo dessa fraqueza. E Pedro é homem, simples homem como tu e eu, como todos nós. Eis até que ponto o homem pode chegar quando põe confiança ilimitada em si mesmo. Supõe que está em pé, mas em que abismo caiu! Aquele que pensa estar em pé, veja que não caia. (1Co 10.12) Gostaríamos de dirigir estas palavras a Pedro: Pensas que és forte, e és tão fraco. Porventura, não é preciso dizer a mesma palavra também a nós mesmos? Pedro nos adverte como é fácil o homem cair. Mas Pedro também é o exemplo consolador de como Jesus intercede por nós, para que a fé não venha a desfalecer na hora da provação. Esta intercessão do Senhor faz com que Pedro, depois de sua derrota, ache o caminho de volta. E agora ele está preparado, por esta experiência vívida pessoalmente, a socorrer e fortalecer os irmãos que estão em perigo semelhante ao que ele passou.
A base inabalável da fé não está em nós, e o que nos preserva da queda não é nossa disposição pessoal, mas, sim, a fidelidade de Deus que nos segura em Cristo. Podemos converter-nos a Deus somente porque ele se converteu, em Jesus Cristo, a nós. Tempos de provação, de peneiramento, vistos desta maneira, sem a falsa segurança ensimesmada, ligam-nos mais firmemente ao Senhor e tornam-se em chances e possibilidades de confessarmos aquele que na cruz se confessou a nós.
V — Sugestões para a prédica
O Domingo Invocavit é o dia de penitência em nossa Igreja. Sua mensagem nos chama ao arrependimento, apresenta-nos o Senhor que está a caminho para a cruz e nos convida a acompanhá-lo não apenas nas semanas da Paixão, mas em nossa vida do dia-a-dia.
Em vista do caráter divergente do texto, poder-se-ia dar mais peso à primeira ou à segunda parte da perícope:
1. A comunidade está sendo peneirada — em nossos dias. Jesus intercede pela preservação da fé e lhe dá a missão de servir aos irmãos.
2. A falsa segurança não preserva da queda. — Pedro em nós. O que significa confessar ou negar Cristo na realidade concreta em que vive a comunidade? (cf. IV — Meditação)
VI — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nesta semanas, somos novamente lembrados da via dolorosa que tiveste que seguir até a cruz. Diante da tua Paixão reconhecemos a nossa culpa: nós, muitas vezes, não te seguimos em nossa vida e silenciamos onde deveríamos confessar-te. Fomos covardes e tímidos onde deveríamos ter denunciado injustiças e violência. Vivemos, gratos, do teu perdão, mas a nós mesmos nos custa perdoar uns aos outros. Tu, porém, continuas mantendo a fidelidade para conosco e intercedes por nós, para que o poder do mal não nos vença e a nossa fé não desfaleça. Por isso, pedimos-te confiantemente: perdoa-nos a nossa culpa e tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Obrigado, Senhor, porque tu não nos deixas e continuas segurando-nos com fidelidade Inalterável. Tu suportaste sofrimento, para que nós tivéssemos alegria; foste preso, para que nos conseguíssemos liberdade; condenado, para que nós fôssemos absolvidos; morto, para que nós tivéssemos vida eterna. Por isso tudo, te agradecemos de coração. Fala, agora, a nossos corações e consciências, para que aceitemos o teu grande amor, transmitindo-o pela convivência fraterna aos outros. Amém.
3. Assuntos para a intercessão na oração final: Agradecimento pela fidelidade do Senhor, que intercede e fortalece a fé dos seus. Lembrar que a comunidade está inserida no mundo e tem a sua missão no mundo, onde há conflitos, luta de classes, exploração e onde se usa a religião para acalmar os ânimos, deixando tudo correr como sempre correu. Lembrar a responsabilidade de toda a comunidade pelas pessoas que vivem em solidão e aflição, doença e luto, que passam fome e miséria ou sofrimentos e opressão. Pedir que Deus nos fortaleça sempre de novo para a oração e intercessão pelos fracos e tentados, para que sua fé não desfaleça. Pedir que o Senhor acorde as comunidades e membros do sono de um cristianismo morno e tradicional, de uma religiosidade barata e uma piedade individual, sem compromissos, para que realmente sejamos o que devemos ser, segundo a sua vontade: sal da terra e luz do mundo. Amém.
VI — Bibliografia
- BOFF, L. Igreja, carisma e poder. 2. ed. Petrópolis, 1981.
- CULLMANN, O. Petrus. München, 1952.
- KLEIN, G. Die Verleugnung des Petrus. Zeitschrift für Theologie und Kirche, Tübingen, 58(3), 1961.
- LINNEMANN, E. Die Verleugnung des Petrus. Zeitschrift für Theologie whd Kirche, Tübingen, 63(1), 1966.
- LUTERO, M. Sermones de Cuaresma 1522. In: Martin Lutero, páginas escogidas. Buenos Aires, 1961.