Lucas 16.19-31

Sobre os abismos entre nós

28/09/2016

Lucas 16.19-31

Céu e Inferno
No século XVI, no tempo de Martim Lutero, a igreja pregava que depois da morte existia o purgatório. O purgatório era a ante-sala do céu, onde as almas tinham que sofrer para entrar no céu. Para Martim Lutero, esse texto do Evangelho de Lucas era uma prova clara que depois da morte não existe purgatório. Depois da morte, somente existe o céu e o inferno e quem está de um lado já não poderá passar para o outro. Por isso, as indulgências que eram vendidas para salvar as pessoas do purgatório, na opinião de Lutero, eram inúteis.

No reino dos vivos
O Evangelho de Lucas 16.19-31 também destaca que antes da morte, aqui no mundo dos vivos, imperam as relações de desigualdade e ostentação. Os ricos se sentem abençoados e vivem uma vida esplendorosa. Os pobres caminham todos os dias pelas ruas - de um lado para o outro – acompanhado de alguns cães, à procura de seu sustento diário. Os ricos estão por cima, os pobres estão por baixo.

A desigualdade é evidente. O rico-sem-nome se vestia luxuosamente com roupas (púrpura e linho) que podiam custar anos de salário de um trabalhador ordinário. As roupas mais luxuosas e mais caras eram feitas com um caracol marinho, que existia na Índia e no Egito, do qual se extraía uma tintura vermelha geralmente reservada para os mantos de reis. Em flagrante contraste, o pobre Lázaro (nome que quer dizer DEUS SOCORRE) também tinha o corpo revestido de vermelho, por causa das pústulas, das úlceras e das feridas.

A desigualdade é ainda maior. O rico-sem-nome realizava banquetes suntuosos diariamente. Na época não se usavam talheres ou guardanapos (eles somente foram inventados por volta do ano 1500 por Leonardo da Vinci), de modo que os convidados costumavam servir-se com as próprias mãos, e para limpar os dedos utilizavam pedaços de pão, que eram atirados para fora pela porta ou janela. Podemos imaginar Lázaro e os cães, esperando e disputando os pedaços de pão temperados pelos dedos dos convidados.

No reino dos mortos
Mas a morte, que não faz acepção de pessoas, certo dia recolheu a ambos igualmente. E a morte é reveladora, ela nos revela o destino de cada um.O pobre Lázaro morre e é “levado pelos anjos para o seio de Abraão”. Essa expressão era usada para dizer que ele foi para o céu. Para descrever a situação do rico-sem-nome, bastou dizer que “foi sepultado”.

E de repente as coisas se invertem: aquele que estava por cima, agora fica por baixo, e o pobre Lázaro, que antes ficava por baixo, é levado para cima. O rico-sem-nome agora sofre em tormentos lá do Hades (inferno), e o Lázaro está aconchegado nos braços de Abraão.

A situação de conforto e tormento se inverte. Antes o pobre Lázaro passava fome, agora o rico-sem-nome passa sede. Quem antes clamava em vão por misericórdia, era o pobre Lázaro, agora quem faz isso é o rico-sem-nome.

A intransigência de Abraão
Mesmo lá no inferno, o rico somente consegue ver a Lázaro como um ser inferior. Alguém que deveria estar a seu serviço. Mas Abraão é um pai inflexível. Nega-lhe as reiteradas súplicas.

No diálogo entre o rico e Abraão, vemos que primeiro ele pede que Abraão mande o Lázaro molhar o dedo e aliviar a sua sede naquele inferno (v. 24). Abrão diz que não é possível fazer isso pelo fato de haver um grande abismo entre cada qual que impede o ir e vir de um lado para outro (v. 26).

Diante da negativa do atendimento, o rico faz uma segunda tentativa, dessa vez não em seu benefício, mas em favor de seus irmãos (v. 27s), novamente mediante a ajuda de Lázaro. Mais humilde do que no primeiro pedido – “eu te imploro” (erōtō se) –, ele pede a Abraão que envie Lázaro para junto de seus irmãos como testemunha, a fim de que também eles não venham para “este lugar de tormento” – uma descrição precisa do inferno: um lugar em que se sofre castigo em forma de tormentos. Também esse pedido é negado (v. 29) com um argumento característico da tradição judaica: eles têm Moisés e os profetas –onde todo fiel tem a orientação correta para a sua vida.

O rico faz uma terceira tentativa, apontando para um efeito maior no caso de alguém ressurgir dos mortos e ir falar com os irmãos (v. 30). Também esse pedido é negado: se não dão ouvidos a Moisés e aos profetas, também não se deixarão convencer, mesmo que alguém ressuscite dentre os mortos. (v.31)

O pecado do rico
Mas, qual foi mesmo o pecado do rico? Talvez ele nem tenha sido tão mau assim. Afinal, não expulsou a Lázaro da porta da sua casa, não objetou que este recolhesse o pão que era jogado da sua mesa. Também não consta que ele tenha sido uma pessoa cruel ou violenta.

Muitos estudiosos da Bíblia dizem que o pecado do rico foi não prestar atenção no Lázaro, tê-lo aceito meramente como parte da paisagem, haver pensado que era perfeitamente natural, que ele fosse uma pessoa abençoada com muitas riquezas, e que Lázaro estivesse ali na sua porta abandonado à dor e à fome. O pecado do rico foi pensar que o mundo era assim mesmo, e que isso era vontade de Deus.

O pecado do rico foi que ele podia ver o sofrimento e a necessidade do mundo, sem sentir compaixão. O seu pecado foi ver outro ser humano, faminto e dolorido, e não ter questionado a injustiça nesse mundo. O pecado do rico foi não ter lutado por um mundo mais justo. Pecou não pelo que fez, mas pelo que deixou de fazer.

E quanto a nós?
Tanto em vida como depois da morte, o rico e o pobre Lázaro viviam muito próximos, mas, ao mesmo tempo, muito distantes.

Abismos semelhantes existem em grande número em nossa sociedade, ocupando os mesmos espaços: ricos e pobres que acham que não tem nada a ver um com o outro, grupos políticos que não se entendem; movimentos religiosos que se combatem; familiares que não conseguem conviver.

O Evangelho não é contra a riqueza ou contra os ricos. Mas ele chama a atenção para que as pessoas ricas - ou que se identificam com o rico - a não cometer o mesmo erro dele. O erro do rico foi acomodar-se com a sua situação privilegiada, esquecer-se do mandamento de amar a Deus e amar ao próximo, de não ver e nem se solidarizar com o pobre, com a pessoa que precisa de sua ajuda. O erro do rico foi achar que a desigualdade entre pobres e ricos é natural, que isso era a vontade de Deus.

Como superar esses abismos?
Jesus nos chama para que usemos nossos tesouros e nossos talentos em favor da justiça, da solidariedade, do repartir, do acolher. Lamentavelmente as pessoas cristãs se desgastam em lutas internas, desperdiçando o tempo classificando a uns de coxinhas e outros de mortadelas. O Evangelho quer chamar a nossa atenção para que superemos os abismos entre as pessoas.

Entre grupos sociais, a superação é possível por meio da justiça social, de oportunidades de emprego, de acesso à educação.

Entre partidos políticos, entre familiares em desentendimento, a superação é possível com o diálogo e o respeito mútuo.

Mas tem um elemento que não devemos esquecer. Isso está no final do texto bíblico que diz assim: ”Os teus irmãos têm a Lei de Moisés e os livros do profetas pra os avisar. Que eles os escutem” (v. 29). Isso significa que a comunhão com Deus e a participação na Comunidade, na Igreja, é fundamental, pois essa comunhão tem a força para romper todas as barreiras e nos proteger do equívoco de pensar só em nós mesmos. É na igreja que ouvimos o Evangelho de Jesus, que anuncia a salvação de Deus para todas as pessoas. É na igreja e na comunhão com Deus e com outras pessoas, que vamos encontrar forças para poder perdoar e buscar a reconciliação. Jesus espera que essa mensagem produza bons frutos em cada um de nós. Esses bons frutos são visíveis quando trabalhamos juntos por um mundo menos desigual, quando saímos de nós mesmos e – tal qual Jesus – vamos ao encontro do outro.

Sim, Jesus espera que - junto com Ele - nós possamos fazer uma diferença nesse mundo.

Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus nosso Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam no meio de nós. Amém.
 


Autor(a): Nilton Giese
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 19 / Versículo Final: 31
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 39666
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Isaías 58.11
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