Lucas 16.19-31

Prédica

20/08/1972


A PARÁBOLA DO RICO E DO LÁZARO 

(Evangelho segundo Lucas cap. 16, versos 19 a 31) 

Havia um homem rico que se vesti a de luxuoso tecido vermelho e linho finíssimo, dando esplêndidos banquetes diariamente. Um pobre, chamado Lázaro, todo coberto de feridas, estava atirado junto ao seu portão. Bem que gostaria de se alimentar com o que caía da mesa do rico! Até cães vinham lamber suas feridas. 

Aconteceu que o pobre veio a morrer. E foi levado pelos anjos para o seio de Abraão. O rico também morreu e foi sepultado. 

No meio das torturas do mundo dos mortos, o rico viu Abraão de longe. E Lázaro estava junto a ele. Então gritou: 

— Pai Abraão, tenha pena de mim! Mande que Lázaro molhe a ponta do dedo e me refresque a língua, pois estas chamas me atormentam! 

— Meu filho, respondeu Abraão, lembre- se que já recebeu seus bens em vida. Lázaro teve males e agora encontra consolo aqui. Você está padecendo. 

Aliás, é grande o abismo entre nós e vocês. Os que quiserem passar daqui para lá, não conseguem. Nem se pode vir de lá até cá. 

— Pai, insistiu o rico, peço-lhe então que ao menos envie Lázaro até minha casa paterna. Tenho ainda cinco irmãos. Lázaro poderá adverti-los para que não acabem também neste lugar de tormentos!

Mas Abraão replicou: 

— Eles tem Moisés e os profetas. Que os ouçam, portanto! 

— Não, Pai Abraão, disse-lhe ainda o rico, se algum dos mortos fosse a procura deles, por certo se converteriam.

Mas Abraão concluiu: 

— Se não dão ouvidos a Moisés e os profetas, ainda que algum ressuscite dos mortos não se deixarão convencer.

 

Céu e inferno: prêmio e castigo? 

À primeira vista, estamos mais uma vez diante do prêmio de consolação : o rico vai para o inferno e o pobre tem o céu por recompensa. E isso seria verdade, se a história fosse ditada pelo ódio dos deserdados da sorte. Isso seria verdade, se Jesus fosse um corrupto, capaz de enganar os desesperados com vagas promessas de que no além tudo vai melhorar. 

Não estamos, porém, diante de uma profecia. No se trata de previsão. A história que Jesus conta, é uma parábola. E essa parábola não se refere, apenas, a coisas que estão por vir ou acontecer. A parábola fala de uma realidade presente, de uma atualidade cotidiana. Tanto assim que está construída em torno de duas cenas: antes da morte e depois da morte. Mas as duas cenas tratam de uma coisa chamada vida. Por isso, como muitas vezes acontece num romance, no cinema ou no teatro, a segunda parte vai esclarecer muita coisa da primeira. 

E então pode acontecer uma surpresa: a gente nota como faz parte de toda a história... 

Quem é o rico? Quem é o pobre ? 

É impressionante observar como inicia a parábola: Era uma vez um homem rico. Quase que só isso descreve essa criatura. Além de alguns detalhes a respeito de roupas e banquetes, o que se fica sabendo é apenas isso: o homem era rico. Viveu, morreu e foi sepultado. E era rico. 

Existe outra coisa que impressiona: à primeira vista, o homem rico nem é criticado. Não se mencionam vícios, defeitos ou atitudes condenáveis. Não se afirma que ele explorasse trabalhadores ou que fosse agiota ou qualquer coisa, de semelhante. Pelo contrário: num primeiro momento, o homem é tão vazio como todas as pessoas diariamente mencionadas nas colunas sociais dos jornais. Ele gostava de vestir-se bem e oferecia constantemente banquetes e festas e recepções esplêndidas. Resumindo: um dos dez mais elegantes, que sabia receber bem... Nem mais nem menos. Era rico. E ponto final. 

Ponto final? Nem de longe! Assim como nos jornais também não se fala só de gente rica, a parábola de Jesus f az uma comparação. Provoca um confronto. Já na introdução, Jesus coloca sua parábola dentro da vida como ela é. E na vida sempre há pobres ao lado de ricos. O homem rico, de quem se sabia tão pouco ( nem mesmo o nome ! ), de repente está colocado ao lado de um pobre miserável , chamado Lázaro. 

Lázaro é uma questão aberta, uma pergunta sem resposta, na vida do rico. Novamente chama a atenção o fato de que Jesus não é demagógico. Jesus não diz nem sugere que o rico deveria ceder um lugar à mesa para Lázaro. Jesus não diz que Lázaro deveria morar na mesma casa do rico. Para começo de conversa, Jesus apenas conta como Lázaro não tinha o que comer, não tinha casa e era perturbado por cães vadios. Só isso. 

Por que Lázaro era pobre? Por que ninguém o ajudava? Que circunstâncias o tinham levado aquela situação? A parábola não responde a essas perguntas. Jesus tem um único interesse: colocar duas pessoas diferentes, lado a lado, e fazer com que o ouvinte da parábola faça bem outra pergunta: Que relação existia entre esses dois? 

Sim, qual a ponte entre o rico e Lázaro ? Existe uma? 

Para os primeiros ouvintes dessa parábola, a introdução nem apresentava surpresa. Os escribas e fariseus tinham ideias e teorias prontas, a esse respeito: Deus é quem reparte a felicidade e a infelicidade, a riqueza e a pobreza, o êxito e o fracasso, o bem-estar e a desgraça (confira o que argumentam os amigos de Jó, no Livro; de Jó, cap. 4, 5, 8, 11, 15, 18, 20, 22). A tranquilidade desse tipo de pessoas ( a quem Jesus conta essa parábola) se reflete no fato de terem elaborado toda uma doutrina a respeito de come dar esmolas. . .

Existirá ainda hoje esse tipo de pessoas? Parece que sim. Em todo caso, Jesus coloca diante dos ouvintes de ontem e de hoje uma pergunta diferente: Qual é a relação que existe entre o rico e Lázaro?

A tentativa de responder a essa pergunta de Jesus mostra que a relação tem muitos aspectos. Antes de mais nada, o rico imagina que pode viver sem Lázaro. Nada lhe falta. Não precisa de ninguém. O rico imagina que pode viver sem o irmão. Que não precisa do irmão. E quem lhe dá essa certeza ? Sua riqueza. 

Mas há outro aspecto. E este aparece com a pergunta: Quem é Lázaro ? 

Parece que Jesus propõe uma resposta simples e imediata: Lázaro é aquele que precisa do homem rico, porque é pobre. Lázaro é aquele que precisa de alguém para viver, para sobreviver. Lázaro não pode viver sem um amigo, um irmão. E donde vem essa certeza? De sua miséria.

Que relação existe entre os dois? Cada um é o que é — por causa do outro. Só existem ricos porque existem pobres. Pode- se dizer também que só existem pobres porque existem ricos? Na segunda cena, em todo caso, acontece uma estranha inversão de papéis. Mais ainda: a segunda cena procura mostrar se existe ou não uma ponte entre ricos e Lázaros. 

Ponte ou abismo? 

Ricos e pobres morrem, neste mundo. Na parábola de Jesus também. E então vem a primeira descoberta: ambos são filhos de Abraão”, são judeus. Ambos esperam pelo juízo, pela ressurreição. Só que essa espera acontece em lugares e condições diferentes. Lázaro pode ficar reclinado à mesa dos justos e patriarcas ( Cf. Mateus 8. 11 ), enquanto que o rico aguarda seu futuro no lugar da punição, no mundo dos mortos ( cf. Salmo 6. 6) . Para que o contraste ainda se torne maior, Jesus descreve uma situação bem especial: o homem rico pode observar a bem-aventurança de Lázaro de modo quase palpável. 

Também a segunda cena está isenta de revoltas e paixões. O rico sabe que só lhe resta assumir e suportar os desígnios de Deus. (Não tinha sido essa a sua fé em vida? ) No entanto, ele procura atenuantes, mesmo que passageiros, para sua situação: uma ponta de dedo, molhada em água...

Mas não há atenuantes. Existe um tempo para que alguém descubra sua relação para com o outro, para com o próximo: hoje. Tempo é oportunidade. E a chance se oferece agora. Quem é você ? Quem é o próximo ? 

Dentro do tempo, hoje, alguém está dizendo uma palavra que nos informa de duas coisas importantes quem é o próximo e quem somos nós. Jesus faz isso. Através dessa parábola, por exemplo.

Cristo, nós e o próximo 

A segunda cena da parábola nos mostra como é critica a relação entre o rico e Lázaro. Através de sua presença, através de sua pobreza, Lázaro põe em questão, destrói, torna impossíveI qualquer tentativa nossa de viver sem ele. A miséria de Lázaro descobre e revela a miséria fundamental do homem rico. A verdade de Lázaro comprova a mentira do homem rico. A distancia entre ricos e Lázaros torna-se a mesma distância, o mesmo abismo entre ri cos e Deus. Existe uma ponte? 

Sim, embora seja uma ponte pouco visível, pouco aparente: a ponte é Lázaro. E Lázaro é quem conta a parábola. Através das palavras dessa história (que não é profecia, mas comparação), aquele que a conta está deitado junto ao portão dos ouvintes. Jesus mesmo é o irmão Lázaro, com quem estamos sendo confrontados. Jesus é aquele que não se envergonha de ser o irmão e companheiro dos Lázaros deste mundo. 

Sempre que alguém descobrir essa relação, terá descoberto a relação o entre o rico e o Lázaro (Mateus 25.31-46). Terá descoberto a ponte. Sem essa relação, porém, desaparece também a ponte. O fim de nosso tempo, o fim de nossa oportunidade, e também o fim da ponte.

Assim é que fazemos parte da parábola. Diante do Cristo, somos lázaros sempre seremos os que tem mais ( mais que gostariam de viver, como homens ricos. Diante dos lázaros deste mundo, bens, mais tempo, mais oportunidade). Resta saber como vemos, como vivemos, como experimentamos essa relação. Resta saber se precisamos de alguém. Resta , saber se temos consciência do próximo. Resta saber se reconhecemos no outro uma pergunta dirigida a nós.

Mas ainda existe um aspecto final de nossa relação com a parábola. Somo s todos personagens desta história, por causa de um Cristo que coloca ricos e pobres sob um critério diferente de julgamento. Não está excluída a hipótese de o pobre se tornar amargurado, descrente e , derrotado, devido a condição de Lázaro, sob a qual padece. Assim sendo, a parábola não se limita à crítica simplificada da riqueza e ao elogio exagerado da pobreza. Pelo contrário: a separação “após” a morte está intimamente ligada à separação antes” da morte. O que está em questão na parábola, é a vida no mundo das discriminações, das “!diferenças”, das separações.

E Jesus aponta, na parábola, para uma possibilidade oposta de vida. Vida em que as pessoas veem uma as outras. Vida em que as pessoas vivem umas com as outras. Basta isso, para percebermos que a parábola representa crítica veemente ao nosso hoje.

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[ Publicado também em: Irreverência, compromisso e liberdade. O testemunho ecumênico do pastor Breno Arno Schumann. Escola Superior de Teologia e Koinonia, 2004, p. 104-109.]


Autor(a): Breno Arno Schumann
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Prédicas e Meditações
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 16 / Versículo Inicial: 19 / Versículo Final: 31
Título da publicação: Cadernos de Divulgação Cultural - Juiz de Fora/MG
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 21951
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