Prédica: Lucas 13.22-30
Leituras: Isaías 66.18-23 e Hebreus 12.18-24
Autor: Rolf Schünemann
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/09/1992
Proclamar Libertação - Volume: XVII
A caminho do Reino de Deus, mas sem moleza.
1. Introdução
A salvação abrange uma amplitude universal. Os novos céus e a nova terra abarcam a todos e a tudo. A novidade de Jesus suplanta a tradição, conferindo às minorias uma missão árdua, mas compensadora. Os pressupostos para a salvação trazida por Jesus são tema de Lc 13.22-30. Na subida a Jerusalém ele orienta os seus discípulos e indica as linhas mestras do seguimento. Neste sentido as comunidades cristãs, que estão na caminhada em direção ao Reino de Deus, recebem ao longo do caminho consolo, alimento, admoestação e encorajamento.
2. O texto
Consciente ou inconscientemente, a questão da salvação sempre aparece na vida das pessoas. A razão da existência, o sentido da vida são parte da agenda dos homens e das mulheres. As respostas ou são buscadas, ou são escamoteadas.
A pregação de Jesus e a vivência de sua mensagem atraem pessoas e inquietam ouvintes e interlocutores. Aos poucos as pessoas começam a se dar conta de que a sua proposta não é nada fácil de ser colocada em prática. Deduzem que a radicalização da tradição, operada por Jesus, leva a um afunilamento. Pelo visto poucos vão ter vez. Poucos conseguirão seguir as pegadas de Jesus. Será a fé em Jesus Cristo minoritária? E as grandes massas, ficarão elas para trás? Estas são questões subjacentes na pergunta: Senhor, são poucos os que são salvos? (V. 23.)
Jesus balançara com as seguranças dos que já se consideravam eleitos. Acreditava-se que Israel, enquanto povo eleito, tinha garantida a sua salvação. As massas, assim, adentrariam tranquilamente o reino. Agora, sendo poucos (alguns), o quadro muda de figura. À pergunta formulada no presente (são salvos), Jesus responde com a noção de salvação como processo. Evidentemente a preocupação em torno do número reflete a busca de segurança. Jesus mexe com a automaticidade da eleição, a salvação judaica. A automaticidade leva à superficialidade e à acomodação. Por isso, Jesus decepciona com a sua resposta: Lutem por entrar pela porta estreita. (V. 24.) Torna-se até evasivo e nem entra no mérito do número dos eleitos. Pelo contrário, aprofunda o assunto e aponta algumas diretrizes para aqueles que colocam o problema. Indica pressupostos norteadores para qualquer um que queira ser discí¬pulo. (Todo o bloco Lc 9.51-19.27 tem este objetivo.)
Deste modo a ênfase não cai sobre o número, a quantidade, mas sobre a vivência qualitativa. Sublinha o empenho, a determinação, a luta. O Reino não permite relaxamento, lassidão, negligência, indolência, descuido, desleixo, indecisão, indiferença. A luta é constante e os esforços não podem ser poupados. A salvação exige passagem pela porta estreita. A resposta à mensagem de Jesus requer ação. Ação não por mera obrigação, mas resultado de urna opção de vida; uma orientação e resumo que se dá à vida. Quando se fala em esforço, empenho, luta, pressupõem-se obstáculos, contrariedades, oposições e conflitos (Lc 14.27). O sofrimento está presente. O martírio da testemunha está colocado. Ò seguidor põe-se sob o sinal da cruz.
... pois eu vos digo que muitos procurarão entrar e não poderão (v. 24). Este muitos indica o caráter minoritário da fé cristã. As maiorias, as massas acionarão o velho esquema do jeitinho que Jesus conhece bem. Dirão: Você não se lembra de mim? Não lembra aquela festa, quando comemos aquele churrasco e tomamos aquele chopinho juntos? Trata-se da influência da amizade para furar a fila.
Jesus conhece este mecanismo e sabe que ele é terrivelmente injusto. Para ele a causa do Reino de Deus supera uma simples amizade passageira. A companhia ou o ser um bom companheiro não bastam. A mera convivência entre Mestre e discípulo torna-se insuficiente. A pro-posta de Jesus exige resposta. A aceitação contém entrega vivencial. A vida, a palavra colocada em prática, o ouvir e agir são o movimento que transpõe os limites da porta. Para tanto muitos apetrechos pesados e volumosos atrapalham. O discípulo carece de despojamento para caminhar com mais desenvoltura.
O juízo não olhará amizades momentâneas, sins efusivos e comoventes, tapinhas nos ombros, boa-vontade e boas intenções. No juízo olhar-se-á a prática (v. 27). Os direitos adquiridos, herdados pela tradição religiosa, são nulos. A prática da injustiça (adikia) auto-exclui. Ela impede a passagem. São as malas e os pacotes que atrapalham a passagem pela porta estreita.
Em virtude disso tem-se dor e desespero. São resultado de uma ilusão, de um cálculo malfeito. O choro e o ranger de dentes de quem está desolado porque fez uma opção errônea na vida. E a decepção será maior ainda quando os religiosos tradicionais virem pessoas, homens e mulheres, jovens e crianças, dos quatro quadrantes adentrando e congraçando no reino. Pessoas que, assumindo um compromisso em palavra e ação, passaram pela porta estreita e souberam vir de mãos vazias, porém calejadas pelo serviço da prática da justiça.
O texto termina com a inquietante e perturbadora mensagem de Jesus: Contudo, há últimos que virão a ser primeiros e primeiros que serão últimos (30). Os privilégios étnico-religiosos caem por terra. Os novos céus e a nova 'terra ultrapassam os limites da tradição judaica (Is 66.18-23). A inversão das relações em vigor dá-se pela nova proposta de Jesus a que todos têm acesso. A relação que se mantém para com ele, enquanto seguidores, é decisiva. A novidade evangélica contrasta com a tradição (Hb 12.18-24). Deus possibilita em Jesus a salvação a todos, mas ninguém pode reivindicar de antemão o direito a ela.
3. Reflexões com vistas à prédica
Recomenda-se a não-moralização do texto segundo aquele quadro clássico do caminho largo e estreito e da porta larga e estreita. Antes sugere-se que se aponte o grande afunilamento que se dá nos dias de hoje em torno da mensagem de Jesus no que concerne à prática da justiça como critério básico para a passagem pela porta estreita. A confiança desmesurada de nossos contemporâneos na tradição ocidental e cristã como garantia do Reino de Deus esvazia-se diante do critério colocado por Jesus. A mera incorporação formal das pessoas nas comunidades cristãs pela via do batismo não lhes confere a automaticidade da entrada no Reino de Deus.
A vivência do batismo, o discipulado, exige obediência. Percebe-se que, muitas vezes, a vivência comunitária e o testemunho concreto do amor na sociedade não ocorrem. O fechamento em torno de eleitos torna-se fator impeditivo de uma maior transparência da fé cristã no mundo. Os direitos adquiridos e os privilégios herdados pela tradição iludem e acomodam as pessoas. Comunidades com grande movimentação, com grande companheirismo e amizade, ignoram o seu mandato evangélico de serem sinal de vida transformadora. A lei do menor esforço, que vige na natureza, também está presente nas relações humanas. A acomodação das massas pode ser presenciada em toda parte. Jesus, ao conclamar ao esforço, à luta, quer operar um salto qualitativo em que o status quo seja revertido. O congraçamento de todos no Reino de Deus não pode ter como pressuposto o jeitinho que, além de injusto, é altamente a-ético.
Pensando na edificação comunitária e a capacitação do cristão para sua atuação na sociedade, a prédica poderia apontar para o significado do seguimento de Jesus Cristo e sublinhar que o Reino de Deus nega privilégios e jeitinhos. Pelo contrário, traz consigo compromisso com a justiça e vivência diuturna do amor fraternal a todas as pessoas.