Justificação por graça e fé - O desafio evangélico

Artigo

01/12/1982

JUSTIFICAÇÃO POR GRAÇA E FÉ - O DESAFIO EVANGÉLICO

P. Dr. Gottfried Brakemeier

I. Deus justifica pecadores

Quanto vale a pessoa humana? Pelo que se observa, muito pouco. Diariamente milhares de pessoas são assassinadas, liquidadas, literalmente jogadas no lixo. Ainda mais morrem de fome em condições subumanas ou sao condenadas a uma existência na miséria. Isto não só longe de nos, na África ou Ásia, também perto de nós, em nosso país e nossa cidade.

Por que o tratamento dado às pessoas não e diferente? Preciosidades costumam ser cuidadas com carinho. Mas, pessoa parece ser mercadoria. Serve enquanto útil, depois está sobrando. Assusta ver o desprezo e ate cinismo com que uns manipulam, exploram, maltratam ou outros, os usam e abusam sem um mínimo de sentimento humano. Fora do pequeno círculo de familiares e amigos (e muitas vezes até mesmo aí) e calculismo frio que prevalece, dispondo das pessoas como se fossem objetos a cada momento substituíveis. Amor entre os homens? Que ilusão! Eis o sentimento de muita gente em nossos dias.

As razoes justificativas, alias, não faltam. O pessoal não merece outra coisa, assim se diz. Por exemplo, qual e o tratamento que merece o criminoso? E culpado de sua desgraça. Outros são tachados de ignorantes, atrasados, preguiçosos, mal intencionados, gente de uma classe ou raça inferior, de elementos perigosos ou então supérfluos. E longa a lista das razões usadas para justificar o mau trato que um povo, um grupo ou um indivíduo da a outro. O pretexto básico, porem, e sempre o mesmo: Eles não merecem! Fracassados, culpados, dissidentes, descrentes, doentes, pessoas sem instrução — o que merecem? A agressividade tão em evidência nos relacionamentos humanos, a violência na polícia, nas ruas, nos programas de televisão, a desconsideração dos pobres, a existência ameaçada dos índios, isto e ainda muito mais mostra tragicamente que vida humana vale pouco ou quase nada.

Na Bíblia é diferente. Quanto valem as pessoas? Ora, para Deus elas valem a vida de seu próprio Filho. Deus não pergunta, se merecem ou não merecem. As pessoas são as suas criaturas, motivo suficiente para amá-las. ... Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. (Rm 5.8) A cruz de Jesus Cristo e o sinal do amor de Deus aos que não o merecem.

Este amor, Jesus o ilustrou em algumas de suas parábolas: Por acaso, o filho pródigo merecia ser acolhido novamente em sua casa paterna (Lc 15.11 ss)? Por acaso, a ovelha perdida tem o direito de ser procurada pelo pastor (Lc 15.1 ss)? Claro que não! Se Deus age como aquele pai e aquele pastor nas parábolas de Jesus, e porque não faz depender o seu amor de méritos. Deus justifica pecadores (Rm 4.5), ou seja, ele aceita pessoas imperfeitas, ama gente culpada. Justificação por graça e fé significa antes de mais nada que Deus vem não para castigar, mas para perdoar. Ele não destrói vida humana, antes sacrifica seu Filho para a salvação de seus inimigos (Rm 5.10). Ele renova, protege, declara santa a vida das pessoas, acolhendo-as em sua comunhão — ainda que não mereçam.

Este é o primeiro grande escândalo da justificação por graça e fé: Deus justifica pecadores, gente in-digna de seu amor. Para todos os que se consideram justos, sempre certos, melhores e mais importantes que os outros, isto dói e tem provocado o protesto já no tempo de Jesus. Exemplifica-o a indignação do irmão mais velho na parábola do filho pródigo. Mas e este o evangeIho: Deus, antes de condenar, perdoa e da razão de ser mesmo a mais miserável de suas criaturas. Para os justos e escândalo. Contudo, para quem se descobriu a si mesmo como pecador e a pura mensagem da salvação. Deus nos valoriza apesar dos nossos erros e dos nossos fracassos. Lutero, no mosteiro, lutava com esta pergunta: Que, afinal de contas, mereço? Muito mais honesto do que a maioria das pessoas o e, ele viu que não conseguia livrar-se dos pecados. Descobriu então que Deus justifica o pecador e não o justo. Ele tinha redescoberto o evangelho.

Este evangelho compromete. Vai, ajuda a teu irmão — o não perguntes, se ele o merece. Vai, busca o pecador, desistindo da vingança e oferecendo-lhe o perdão! Não aproves o pecado, isto não! Deus não justifica o pecado, justifica o pecador! É necessário distinguir. Procura convencer (!) o pecador, ganhá-lo para Deus e a causa do evangelho — mas não o excluas. Nem o busques com os ares do justo. Como justo jamais vais convencer o pecador nem conduzi-lo ao arrependimento. Cristãos não são justos, são pecadores justificados, por isto gratos a Deus pelo que receberam. Eles mesmos vivem da mensagem que Deus ama seus inimigos — todos, sem exceção.

II. Deus justifica por graça

Mais uma vez, porém, volto a perguntar pelo valor da pessoa humana. Pois posso imaginar-me que muitos vão dizer: A pessoa vale pelo que produz. Assim e, em toda a parte. Começa cedo na vida. Aluno com rendimento escolar bom ganha nota alta, passa nos exames, recebe elogios. Empregado de firma que produz, garante os seus proventos e costuma ser candidate a promoção. Conhecimentos, formação, forca, habilidade, empenho, enfim a capacidade produtiva decide sobre reputação, salários e posição social. Do fato — assim acontece. É o normal. Desgraçados, porém, os improdutivos. Os velhos, por exemplo, e os excepcionais (além de muitos outros), eles terão vez numa sociedade quase! que possessa pelo fetiche da produtividade? Que mundo mais desumano é este em que a gente permanentemente sofre a pressão de produzir!! Que mundo frio em que as estatísticas, os índices, os números prevalecem por sobre a felicidade das pessoas! Em tal mundo vai reinar o medo - o medo de não mais poder produzir, respectivamente de não produzir o suficiente.

Novamente constatamos: Na Bíblia e diferente. Deus aceita as pessoas incondicionalmente, independente da sua produção ou de suas obras — independente também do grau de instrução, da quantidade das posses ou da religiosidade. Deus justifica por graça (Rm 3.24; Gl 2.16 ss; Ef 2.5; etc.). E o outro grande escândalo no agir de Deus: Ele não se deixa impressionar por nossas realizações nem comprar por nossos méritos. Justifica o publicano (Lc 18.9 ss) que nem os olhos ousa Ievantar e só sabe balbuciar: Ó Deus, sê propício a mim, pecador! Enquanto isso, o fariseu, aquele homem piedoso, esforçado no cumprimento da vontade de Deus, e despachado com mãos vazias. Deus justifica por graça, ou ele não justifica.

Significa isto que Deus não prestigia o nosso esforço por obedecer-Ihe os mandamentos? É realmente assim que nossas obras não têm nenhum valor? E indiferente para Deus, se somos ladrão ou gente honesta? Absolutamente, não!! Também Deus quer obras, ele quer ver a sua gente produtiva (cf Mt 5,16; Rm 12,1 ss; etc.). E não obstante, Deus justifica por graça e não por obras da lei, pois:

1. Deus ama mais as pessoas do que as obras que elas fazem. 

Este é o pecado de um mundo escravizado pela produção: Ele ama mais o produto, enquanto a sorte do produtor Ihe é indiferente. Deus, porém, ama a pessoa — e isto já muito antes de ela começar a produzir. Ele também a ama depois que deixou de produzir, pois não é a obra que faz a pessoa. Deus a fez.

2. Por isto, por obras ninguém pode conquistar nada junto a Deus.

Ou queres conquistar o que Deus em Jesus Cristo já te deu? Não sejas tolo. Alem disto, não sabes que amor jamais se conquista? Amor só se pode receber como presente, como graça. As tuas obras são necessárias, sim. Mas não como meio para conquistar ou comprar os favores do Deus, mas sim como expressão da gratidão por tudo que Ihe deves.

3. Por ver a pessoa, por isto Deus e misericordioso.

Interessa-o não tanto o que a pessoa tem, mas muito mais o que Ihe falta. Deus enxerga necessidades. Na referida parábola de Lc 18,9 ss, o fariseu não mais tinha necessidades, nem mesmo necessidade de Deus. Como Deus vai justificar os que dele não precisam? 0 publicano, este sim, precisava de Deus. Ele foi justificado, por graça. Quem não pertence aos necessitados diante de Deus, nada dele tem a esperar.

A graça de Deus compromete. Ela certamente não significa que devemos abolir o critério da produtividade para substituí-lo pelo da graça. A graça como lei? Isto não vai funcionar e destrói a própria graça. Nossa indústria, por exemplo, não pode desconsiderar cifras, rentabilidade e nem mesmo a capacidade produtiva das pessoas. E, todavia, as coisas não devem ficar como estão. Somos chamados a colocar a pessoa e o seu bem-estar acima do produto, ter olhos para necessidades humanas, aprender a dar algo gratuitamente. Isto nos mais diversos setores da nossa vida: Na família, na escola, na indústria, na sociedade. Não apenas cobrar produção! Ser misericordioso, saber perdoar, não supervalorizar as obras, nem os sucessos nem os fracassos. Não é por bondade e graça que todos, no fundo, anseiam?

III. Deus justifica por fé

A graça de Deus — podemos acreditar nela? Quem garante que não seja mera ilusão? Como já dissemos acima, neste mundo outras coisas estão em bem maior evidencia: A brutal luta por sobrevivência, a lei do mais forte, o culto a produção e ao consumo. Consequentemente, o pai de um aluno, numa reunião de pais e mestres, achou que e isto mesmo o que as crianças devem aprender, ou seja, impor-se, lutar para sobreviver, jogar no time dos vencedores. Só que, sob tais condições, o amor não tem a mínima chance. Graça e amor não são propriamente freqüentes entre os homens.

A Bíblia também o sabe. Ainda assim convida a crer. Pois em Jesus Cristo, sua vida e morte, o amor de Deus era muito real. Na palavra de Jesus, em seus gestos, em sua entrega à própria morte temos a prova da misericórdia divina, turnos a justificação do pecador por graça. Jesus amou o pecador, ele o amou em nome de Deus, ficando validado este amor, uma vez para sempre, mediante a sua ressurreição dos mortos. No dizer de Paulo: Jesus foi entregue por causa das nossas transgressões, e ressuscitou por causa da nossa justificação (Rm 4.25). O Crucificado e Ressurreto é a encarnação do amor que Deus tem ao mundo (cf Rm 8.39; 2 Co 5.14.19; etc.).

Neste amor de Deus, pois, podemos crer. Deus espera da nossa parte nada mais do que a fé. Que e isto? Eu vou resumir em três teses:

1. Fé é, em primeiro lugar, a simples aceitação da graça de Deus. Crer é abrir a mão para o que Deus nos dá, e levar a sério o que ele diz, e receber a justificação. Descrentes são aqueles que acham não ter necessidade da graça e antes querem conquistar a sua vida do que recebê-la. Deus justifica por fé, quer dizer, ele quer a nossa resposta a sua oferta. A ninguém impõe o seu amor. Espera que o aceitemos. Por esta razão fé necessariamente se exterioriza  em gratidão. Quem não agradece a Deus, não crê.

2. Fé é confiança no poder da graça de Deus, mesmo contra todas as evidencias. A realidade do pecado, da morte, do desamor e forte em nosso mundo. Sob seu peso so-mos como que esmagados, levados a acompanhar o que a maioria faz: Viver do jeito que dá, aproveitar as chances mesmo às custas dos outros, impor-se da melhor maneira possível. A fé não se sujeita a esta realidade. Resiste a ela, convicta de o amor de Deus ser mais forte do que o desamor dos homens (Rm 8.38 s). Se Deus nos justificou por graça, não permitirá que a morte nos trague e o mal triunfe. Cristãos, crendo em Deus e Jesus Cristo, crêem contra pecado e morte (cf Rm 4.18ss).

3. Fé é a prática da graça. Quem foi justificado por graça, deveria saber que é isto o que ele deve aos outros: A misericórdia com que Deus dele se compadeceu, o amor com que Deus o amou, o perdão com que Deus Ihe perdoou (cf Mt 18.23 ss). Ele deve passar adiante o que de Deus recebeu. Fé escondida no fundo do coração, ainda não é fé. Fé busca a ação (Gl 5.6). Tu, como pecador, foste justificado por graça. Agora vai e faze da mesma forma como Deus fez em ti.

A justificação do pecador por graça está aí. Ela esta em Jesus Cristo. 0 que nos falta é a fé, ou seja, a aceitação da justificação, a confiança no poder do amor e a prática do mesmo no dia-a-dia. Por que, afinal??

P. Dr. Gottfried Brakemeier - São Leopoldo, RS


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Autor(a): Gottfried Brakemeier
Âmbito: IECLB
Área: Confessionalidade / Nível: Confessionalidade - Luteranos em Contexto
Título da publicação: Anuário Evangélico - 1983 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1982
Natureza do Texto: Artigo
ID: 29479
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