João 9.13-17, 34-39

Auxílio Homilético

10/03/1996

Prédica: João 9.13-17, 34-39
Leituras: Isaías 42.14-21 e Efésios 5.8-14
Autor: Antônio R. M. de Oliveira
Data Litúrgica: 3º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 10/03/1996
Proclamar Libertação - Volume XXI


1. Delimitação, Contexto, Redação e Lugar

A delimitação do texto proposta pela série ecumênica adotada (ABC) é problemática. Combina a polêmica de Jesus com os fariseus em torno do fato de a cura do cego de nascença ter se dado em um sábado, e o consequente questionamento de sua procedência divina e o reconhecimento de Jesus como profeta por parte do ex-cego (vv. 13-17), com o confronto na sinagoga entre o cego e os fariseus (v. 34), o encontro pessoal de Jesus com o ex-cego, sua decisão de crer e o anúncio de juízo profético pela cegueira das autoridades religiosas. O resultado é uma sobrecarga difícil de digerir para o ouvinte. Da mesma forma, ao omitir os vv. 18-33, omitem-se informações importantes sobre a política da sinagoga quanto aos discípulos de Cristo (v. 21) e o consequente medo dos pais do ex-cego e de outros israelitas. Sugiro, portanto, adotar como texto-base da prédica os vv. 35-41, por serem mais coerentes e concisos em torno da temática principal do texto, que é o anúncio profético de Jesus que exige a decisão de crer ou não.

O texto enquadra-se na primeira parte principal, a dos caps. 2-12, que descreve a manifestação da glória de Jesus perante o mundo (E. Lohse, p. 175), e, mais especificamente, na macrosseqüência que vai de 7.1 a 10.21 (H. Zorilla) e insere a atuação de Jesus na festa das tendas, que evocava no povo as memórias libertárias do êxodo. A cura do cego de nascença, diferentemente dos relatos semelhantes dos sinóticos, quer fundamentar a afirmação básica do Evangelho e o principal ponto de discórdia com as autoridades judaicas, ou seja, que Jesus é o Cristo (vv. 21, 35). Mais importante do que a cura são as suas consequências na vida dos implicados e na sociedade, as reações que ela provoca. Assim, o cap. 9, que constitui parte do material exclusivo de João e faria parte da assim chamada fonte dos semeia, isto é, fonte dos sinais, quer ser mais um sinal que evidencia a glória de Jesus e aponta para sua prédica.

Para o narrador do Evangelho de João é fundamental, além de situar Jesus na festa das lendas (H. Zorilla, p. 186s.) e identificá-lo como a luz do mundo, desdobrar o prodígio em um cego de nascença, a quem Jesus dá a visão. O narrador laia com certa distância dos personagens e eventos. São necessários alguns acréscimos explicativos (vv. l, 6, 7) para o milagre. Todo o resto trata do resultado do milagre na vida dos personagens. O narrador procura fazer com que seus destinatários se apercebam da ação de abrir os olhos (vv. 10, 14, 17, 21, 26, 30, 32). Assim, o cap. 9 se estrutura em torno do milagre e da identidade de Jesus, com vários diálogos dos personagens mesclados com acréscimos explicativos do narrador. Tudo acontece dentro da atmosfera libertadora da festa e da aberta repressão dos judeus.

No diálogo de Jesus com o ex-cego o acento está claramente na pergunta: Crês tu no Filho do homem? A consequência da confissão do ex-cego vem nos vv. 39-41, quando Jesus condena a cegueira dos fariseus. Ressaltar este fato é a intenção do narrador. Fica evidente a confrontação com a sinagoga.

No âmbito espacial, a narração situa-se em Jerusalém, com certos deslocamentos importantes. Em um primeiro momento Jesus sai do templo, encontra o cego, manda que ele vá ao tanque de Siloé, e ele regressa vendo. Com a confrontação do cego com os fariseus, surge outro centro religioso: o cego é expulso da sinagoga, e é encontrado por Jesus. O sagrado desloca-se do centro para a periferia. Jesus toma a iniciativa e corre ao encontro daquele que fora expulso por não se aliar à ortodoxia geradora de injustiça e antivida (H. Zorilla, p. 191). Mais do que somente identificar-se com o expulso, Jesus se faz expulso junto com o expulso e a partir de lá anuncia seu juízo contra as autoridades judaicas.

Quanto à cronologia, as ações dos personagens se dão em uma sequência linear. O milagre, além de acontecer no contexto da festa das tendas, ocorre em um sábado, o dia de descanso, que rotineiramente é observado. A este tempo comum contrasta-se o tempo escatológico de Jesus. Ele quer aproveitar enquanto é dia (9.4), antes que a noite venha. O dia de descanso torna-se o dia do Senhor, quando Jesus tem que trabalhar.

Quanto aos personagens, o cego é o alienado que é libertado, enquanto que os fariseus, os representantes mais zelosos do judaísmo, são os opositores à libertação e à vida. São os antagonistas da ação de Jesus. O narrador revela-se como antifarisaico e favorável à luta de Jesus em favor dos desumanizados. Por isso, temos que tentar entender a comunidade joanina e seu lugar social e momento histórico.

Parto da pressuposição de que nosso texto provém da primeira fase da vida da comunidade, quando os cristãos joaninos foram expulsos das sinagogas (9.22; 16.2) porque reconheciam a Jesus como o Cristo (R. Brown, p. 20s.). Esta expulsão reflete a situação posterior ao ano de 75, quando o judaísmo tenta refazer-se do duro golpe da destruição de Jerusalém em 70 A.D., em Jâmnia, com predominância dos fariseus. À expulsão pode estar relacionada com a reformulação de uma das 18 bênçãos (Shemoneh Esreh), já que a décima segunda envolvia uma maldição contra os minim, isto é, os desviados, que incluíam os judeu-cristãos. A expulsão da sinagoga foi bastante prejudicial para os cristãos, pois enquanto freqüentavam a sinagoga eram considerados judeus pelas autoridades romanas. O judaísmo era uma religião tolerada, os judeus eram dispensados do culto estatal. Caracterizada a expulsão dos cristãos, eles passaram a enfrentar problemas com os romanos.

2. Palavra

V. 35: Com a expulsão do ex-cego, curado por Jesus, fica claro que no círculo dos discípulos de Moisés (v. 28) não há lugar para discípulos de Jesus (v. 22). A expulsão equivale à excomunhão. O ex-cego, antes marginalizado devido à sua condição física e social, agora é excluído do culto, da comunhão do povo de Deus, e assim torna-se um marginal, um fora-da-lei. Sob esta condenação é que Jesus vai ao seu encontro. A iniciativa é de Jesus, de ir ao encontro do excomungado, excluído, do fora-da-lei. Ele não quer deixar a sua obra inconclusa, o homem precisa receber mais do que somente a cura, precisa de salvação. É significativa a pergunta de Jesus: Crês tu no Filho do homem? (V. 35.) O excomungado o considerava como um profeta (v. 17), pois desde que o mundo é mundo, jamais se ouviu que alguém tenha aberto os olhos a um cego de nascença (v. 32). Porém Jesus quer uma decisão e reconhecimento mais radicais. O Filho do homem, que fora anunciado pelos profetas como o juiz do final dos tempos, o enviado de Deus, é mais do que um profeta, um mensageiro que anuncia a palavra de Deus. Ele profere a palavra com a autoridade de Deus. Sua palavra exige fé. Fé é uma decisão de vida. E como tal traz inúmeras consequências para a vida.

V. 36: O ex-cego de nascença sabe que sua cura vem de Deus, mas ainda não conhece o enviado de Deus, ainda não sabe quem é o mediador de sua graça para que nele creia. Aqueles que até então apresentavam-se como os mediadores da graça de Deus e autoridades com poder de credenciar ou desacreditar o enviado de Deus o haviam confundido até então, tentando fazê-lo crer que o homem que o curara era um pecador (v. 24). Ameaçado e pressionado pelas autoridades religiosas, ele não conseguia ver com clareza.

V. 37: Jesus se apresenta ao excluído como o Filho do homem, o juiz escatológico. Já o tens visto e é o que fala contigo! O juiz se deixa ver, fala com as pessoas. Não julga à revelia, dá oportunidade ao pecador de defender-se, de crer.

V. 38: O excluído dá o passo da fé: Creio, Senhor! Além do título de dignidade religiosa profeta, Filho do homem, o marginal chama Jesus pelo título de autoridade política: Senhor, que era reivindicado com exclusividade pelo imperador. Por darem a Jesus este título de Senhor, muitos cristãos foram perseguidos e martirizados. A primeira consequência da confissão de Jesus como Senhor por parte do ex-cego é que ele o adorou. Rendeu-lhe culto, que somente se rende a Deus. Não obstante, aquele que ele tinha visto depois de uma vida inteira de escuridão e que falara com ele, apresentava-se como uma pessoa humilde. Somente na fé lhe era possível identificar como o Filho do homem, o Senhor, aquele que as autoridades religiosas consideravam como pecador.

V. 39: Já no presente Jesus realiza tanto a salvação como o juízo escatológico. No Filho do homem tudo se decide (Hellenschmidt, p. 173). Jesus assume o papel profético de Is 6.1-13 e do homem libertador de Is 32.2-5. A uns, aqueles que julgam ver, saber, conhecer tudo, ele cega e confunde; a outros, os alienados, ele abre os olhos, faz com que os cegos vejam. A cegueira física torna-se figura para a cegueira espiritual, i. é, a falta de conhecimento de Deus.

V. 40: Mais uma vez a polêmica com os fariseus passa para o primeiro plano. Eles, que se julgavam os sábios conhecedores da lei, sentem-se provocados e chamados de cegos, ignorantes. A pergunta feita a Jesus: Acaso também nós somos cegos? é como um pedido para que ele confirme a provocação e sofra as consequências.

V. 41: A resposta de Jesus é ainda mais arrasadora. Ele, que fora conside¬rado como pecador, agora desmascara a hipocrisia dos fariseus. Se fossem cegos, não teriam pecado. Não seriam responsáveis pelo que fazem. Mas como dizem: Nós vemos!, seu pecado subsiste. Quer dizer, conscientemente expulsam, exploram, matam em nome de Deus, o que torna seus crimes ainda mais cruéis. Eles conscientemente rejeitaram o Filho do homem, o Senhor, e assim entraram na esfera do juízo de Deus.

3. Meditação

Todos são confrontados pelo Filho do homem: o ex-cego, os fariseus e nós também. A Igreja de Jesus hoje é confrontada pelo Filho do homem, ele exige de seus membros e participantes a confissão, o seu reconhecimento como o juiz divino, o Senhor. Exige de toda a sociedade esse reconhecimento e confissão. Contudo, a responsabilidade dos que vêem é maior. Rejeitar o Filho do homem significa colocar-se sob o campo de força do pecado, colocar-se sob o juízo de Deus. Rejeitar o Filho do homem tem a ver com rejeitar os homens, rejeitar as pessoas. Será que a Igreja, considerando a si mesma como mediadora da graça de Deus, não acaba agindo como os fariseus quando exclui de seu convívio pessoas por questões raciais, sociais, morais, etc.? Até que ponto preservar a unidade, a família, a moral e os bons costumes justifica a prática da exclusão de pessoas? Jesus vai ao encontro dos excluídos, dos anatematizados, dos malditos de nosso sistema. Não os deixa de lado. Quer curar mais do que somente o corpo. Quer que todos tenham vida e a tenham em abundância. E nós, Somos Igreja, mas Que Igreja Somos? Que consequências tem a confissão de Jesus como o Filho do homem, como o Senhor, além da adoração, do culto regular, que é o centro da vida da comunidade? Como é possível acolher os excluídos hoje, sem aprovar os seus pecados?

Penso nos portadores do vírus HIV, que, se identificados, não conseguem trabalho, nem mesmo alugar uma casa; penso nos/as que foram ou são presidiários/as, nos meninos e meninas de rua, nas pessoas que vivem no submundo da prostituição, das drogas. Quem temos feito para ser luz para eles/as?

É bom que reconheçamos a nossa miopia espiritual. Nem nós mesmos/as, que conhecemos o evangelho de Jesus, vemos plenamente a verdade. Mesmo dentro daquele pouco que vemos, podemos ter olhos para as pessoas excluídas, as marginalizadas. Somente indo ao encontro delas é que Cristo virá ao nosso encontro com sua oferta de graça e salvação.

4. Na Celebração da Vida

Recomendo abrir um espaço maior para a integração, para a apresentação dos presentes, especialmente dos visitantes. Oportunizar o abraço, o aperto de mão, a comunhão fraterna.

Reelaborar a confissão de fé, procurando pelas consequências de confessar a Jesus como o Filho do homem e o Senhor, em meio a um mundo onde os fracos são excluídos.

5. Bibliografia

BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado. Trad. Euclides Carneiro da Silva. São Paulo, Paulinas, 1983. 212 p.
HELLENSCHMIDT, Hansfrieder. Joh 9.35-41. In: Neue Calwer Predigthilfen; fünfter Jahrgang, Band B: Exaudi bis Ende des Kirchenjahres. Stuttgart, Calwer, 1983. p. 172-180.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, 1972.
ZORILLA, Hugo C. La Festa de Liberación de los Oprimidos; Relectura de Jn 7.1-10.21. San José, Seminário Bíblico Latino-Americano, 1981. 318 p.


 


Autor(a): Antônio Roberto Monteiro de Oliveira
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 3º Domingo na Quaresma
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 9 / Versículo Inicial: 13 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1995 / Volume: 21
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14243
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