Prédica: João 4.46-54
Autor: Edson Edilio Streck
Data Litúrgica: 3º.Domingo após Epifania
Data da Pregação: 25/01/1987
Proclamar Libertação - Volume: XII
l - A cura, segundo João
Mateus (8.5-13) e Lucas (7.1-10) relatam, sem que sejam unânimes em todos os detalhes, a cura do servo de um centurião. E altamente provável que Jo 4.46-54 e estes relatos tenham como pano de fundo o mesmo acontecimento. Não é este o momento apropriado para enumerar todos os aspectos que uma comparação mais acurada destes três textos exigiria. Convém lembrar, porém, que os relatos dos sinóticos apresentam certas diferenças em relação ao de João, que devem ser observadas quando da pregação deste texto ou daqueles. Há uma série de aspectos que, mesmo sendo secundários, merecem consideração: os sinóticos falam de um centurião, João apresenta um funcionário do rei Herodes Antipas; para os sinóticos o doente é um criado, João fala em um filho; a reação de Jesus é oferecer-se para ir à casa do centurião, ao passo que, em João, o pedido do funcionário - para que Jesus vá à sua casa - não é aceito. Estas são algumas das diferenças entre os textos. A maior, provavelmente, está na fé demonstrada pelos dois homens que pedem ajuda a Jesus: o centurião está firme em sua fé, a tal ponto de Jesus apontá-lo como exemplo para Israel. O mesmo não pode ser dito do funcionário do rei: sua fé mostra diversos momentos - ela cresce no contato com Jesus. João tem o cuidado de não colocar no centro da perícope a fé do funcionário do rei. Esta é uma parte importante do relato, mas não ocupa o centro. Determinante é a ação, é o sinal, de Jesus.
II - O texto
O texto é colocado a seguir de tal modo que possa ser apresentado em forma de teatro ou jogral por membros da comunidade.
JOÃO: Eu sou João, um dos discípulos de Jesus. Quero descrever para vocês um encontro que houve entre Jesus e um funcionário do rei, quando retornamos a Cana da Galiléia. Estão lembrados desta cidade? Nela Jesus havia transformado água em vinho, durante uma festa de casamento.
FUNCIONÁRIO: Jesus, eu moro em Cafarnaum, a 21 quilômetros daqui. Sou um dos funcionários do rei. Tenho em casa um filho que está muito doente. Ouvi dizer: Jesus saiu da Judéia e voltou para a Galiléia. Então eu vim procurá-lo, Jesus, para lhe pedir: desça até Cafarnaum para curar o meu filho, porque ele está bem perto da morte.
JESUS: Se vocês não virem sinais e milagres, não chegarão a crer!
FUNCIONÁRIO: Senhor, desce depressa, antes que meu filho morra!
JESUS: Vai, o teu filho vive!
JOÃO: O homem creu na palavra que Jesus lhe disse. E partiu. Quando ele estava a caminho, os empregados vieram ao seu encontro.
EMPREGADOS: O teu filho vive!
FUNCIONÁRIO: A que horas ele começou a melhorar?
EMPREGADOS: Ontem, à uma hora da tarde, a febre o deixou.
FUNCIONÁRIO: Foi justamente esta a hora em que Jesus me disse: O teu filho vive[
JOÃO: Então este pai creu, ele e toda a sua família. Este foi o segundo sinal que Jesus fez quando retornou da Judéia para a Galiléia.
1. Vem curar meu filho! - Um funcionário do rei procura Jesus, não por força da função. Procura-o como pai que tem em casa um filho à morte. Cafarnaum, lugar de sua residência, fica situada a 27 quilômetros de Cana, geograficamente em localização mais baixa (daí a expressão descer).
Ter um filho em estado grave certamente é experiência de grande parte dos que estiveram na igreja quando da pregação deste texto - pregadores e ouvintes. A situação deste pai nos une através dos séculos e permite que compreendamos sua aflição.
Este pai ouviu comentários a respeito de Jesus. Sabe que está acessível em tempo e espaço. Põe-se a caminho. Não o procura como a um médico, mas vai ao encontro dele na esperança de que possa salvar a vida de seu filho. Conhecimentos vagos a respeito de Jesus podem ser suficientes - como aqui - para desencadear a fé. Jesus demonstra ter uma força de atração para aqueles que andam pelo vale da sombra da morte (SI 23.4).
A partir destas colocações estamos desautorizados a permitir que de Jesus somente se aproximem pessoas estáveis na fé. Somos impedidos, além disso, de criticar pessoas que o procuram na hora do desespero. O acesso a ele não é privilégio de poucos fortes na fé, mas aberto a todos que vão ao seu encontro. Jesus não mede o muito ou pouco conhecimento que as pessoas têm a respeito dele, não as culpa por procurá-lo na hora da dor em que impera o medo da morte.
2. Sinais! - A palavra dita por Jesus no v. 48 parece não caber nesta situação. Caso estivesse dirigindo-se única e pessoalmente ao pai que busca li¬vrar seu filho da morte, Jesus estaria exercitando uma poimênica muito estranha. Trata-se, evidentemente, de uma palavra de Jesus. É provável, porém, que sua inclusão nesta perícope seja uma opção do redator do evangelho. Ao fazê-lo, João tem suas intenções. Quer conduzir pessoas à fé, não pretende apenas testemunhar que um milagre de Jesus é fato histórico.
Jesus dirige-se, aqui, a todos que dele se aproximam mais para ver milagres e sinais do que para crer. Há pessoas que desejam presenciar um milagre pela sensação de ver algo extraordinário, por curiosidade. Quando isto acontece, o milagre passa a ser o centro das atenções, seu autor cai para um plano secundário. O milagre não traz maiores consequências além do assombro e do aplauso momentâneos, seu autor é deixado de lado assim que a curiosidade passa. Há outras pessoas que querem presenciar um milagre para, só então, passarem à fé.
Que sinal fazes para que o vejamos e creiamos em ti? Quais são os teus feitos? (Jo 6.30) Com tais perguntas alguns se aproximam de Jesus. Não querem conhecê-lo melhor, não lhes interessa a missão dele: querem provas, desejam sinais, que abram a possibilidade para um eventual acesso à fé.
O v. 48 é uma evidente crítica à ânsia por milagres, dirigida àqueles que, antes de estarem dispostos a crer, necessitam de sinais e de provas que atestem o poder de Jesus. Uma fé baseada apenas em milagres reduz Jesus a um pronto-socorro, a alguém a quem se recorre na emergência, para deixá-lo logo que o pedido for atendido. Sinais não são garantia de que despertarão a fé: a Bíblia está repleta de exemplos de pessoas que viram milagres e mesmo assim não creram. Uma fé construída apenas sobre o espetacular, na euforia (na glória) não está disposta a correr riscos, a reconhecer Deus no aparentemente insignificante, na dor (na cruz).
A partir do contexto em que esta palavra de Jesus se encontra, deve-se compreendê-la como uma maneira de colocar à prova a fé deste pai. Não se trata de colocar esta fé no centro do texto, pois a cura do filho não é consequência única da postura do pai. Se o fosse, seria válida a afirmação de que jamais perderemos os que nos são caros - se tivermos fé! A cura deve-se à ação de Jesus. Este texto não pode levar a uma interpretação como esta: porque Jesus cura, é Senhor. João afirma: por ser Senhor sobre a vida, Jesus cura. Esta cura é um sinal a mais, entre tantos deixados por Jesus. Todos assinalam que Jesus é Senhor, que ele tem poder.
Se esta palavra não é dirigida única e exclusivamente ao pai, mas a todos que o evangelho alcança, também este sinal quer valer para todos. Ao ter este pai à sua frente, Jesus dirige-se a todas as pessoas que lhe pedem sinais para que venham a crer. Somos levados, desta forma, a refletir sobre nosso modo e sobre nossas intenções quando nos aproximamos dele.
3. Depressa, antes que meu filho morra! - Poderíamos compreender este pai, caso ele se retirasse, cabisbaixo e decepcionado, após ouvir estas palavras. Ele não o faz, porque não procura Jesus para demonstrar o tamanho e o vigor de sua fé. Ele quer que seu filho seja salvo da morte. Insiste no convite a Jesus: não há tempo a perder, o filho está realmente à morte. Ao passar por esta prova, sua fé torna-se visível. Ele já não luta apenas contra a morte que ronda seu filho, mas luta também contra Jesus, para que este o ajude. Ele quer este milagre - não para eventualmente vir a crer. Mas insiste, porque sabe que através de Jesus este milagre é possível. Ele tem fé: por isso procurou Jesus; por isso não se deixa abalar pela dura crítica feita por Jesus; por isso insiste em que Jesus o acompanhe.
4. Jesus: O teu filho vive! - Jesus não o repele. Pela primeira vez ouve-se a afirmação: o teu filho vive! É dita por Jesus, acompanhada da ordem Vai!. O pai é mandado de volta para casa. Jesus não vai com ele. Acompanha-o apenas a promessa. O pai volta com as mãos vazias, sem a presença física de Jesus. Caminha sozinho. Mesmo assim, o retorno é totalmente diferente da vinda. Não mudam apenas as árvores e casas que do lado direito do caminhante passam ao esquerdo, e vice-versa. O rumo é o oposto, não porque o Sul está no Norte, e vice-versa. Tudo é diferente, porque ele caminha noutra perspectiva. A vinda foi marcada pela perspectiva iminente da morte do filho, pela possibilidade de encontrar Jesus, pela incerteza, pela dor e pelo medo. O retorno está marcado pela esperança de encontrar vida, a partir do encontro com Jesus. O pai caminha para casa, movido pela ordem de Jesus: Vai! O teu filho vive! Esta fé é dádiva de Deus, ninguém a consegue por esforço próprio. Ele parte sem garantias, provas, atestados ou compromissos. Ele confia no que ainda não vê, no que ainda não sabe. Confia naquilo que espera ver, no que lhe foi prometido. Confia na palavra. Os passos, antes apressados por estarem movidos pelo medo da morte, agora se apressam movidos pela esperança na palavra de Jesus e pela promessa que ela encerra.
5. Empregados: O teu filho vive! - Por confiar de tal modo na palavra de Jesus, este pai vê cristalizar-se o milagre. Pela segunda vez ele ouve, agora sendo dita pelos empregados que vem ao seu encontro: O teu filho vive!
6. Jesus - Empregados: O teu filho vive! - Fundamental na atitude do pai é conseguir fazer a ligação entre estas duas afirmações idênticas. Ao obter a confirmação da cura do filho, ele a liga - não só pelos detalhes do dia e da hora -ao seu encontro com Jesus. A ligação é feita sobretudo pelas palavras (que retornam pela terceira vez no texto): O teu filho vive!
O pai tira consequências desta descoberta: ele e toda a sua família confessam publicamente sua fé em Jesus. Eles não param na festa pela alegre notícia da cura do filho, o que é prova de que o pai não procurou Jesus como a um médico. O médico pode considerar seu trabalho pronto e exitoso quando, após ocupar-se com um paciente, seu serviço se torna supérfluo. É sinal de que o paciente passa bem. Aqui, pelo contrário, surge um contato duradouro entre esta família e Jesus. Bem mais do que um pronto-socorro em horas de crise, Jesus é visto como um companheiro que cria comunhão.
O pai não faz separação entre a ajuda que recebeu e aquele que o ajudou. Reconhece o auxílio e quer manter duradouro o vínculo com Jesus. Não coloca por terra tudo o que afirmou na hora da precisão. Não teve fé apenas na hora do aperto. Ele procurou alguém que salvasse temporariamente seu filho da morte. E encontrou, além disso, um Deus confiável, que se preocupa com a dor das pes-soas. Neste Deus ele quer continuar confiando. Quer viver, junto aos seus, nesta nova atmosfera.
Esta é, segundo João, a fé em seu estado pleno (usa o verbo PIS-TEUEIN = crer, no aoristo absoluto).
Ill - Alguns reflexos deste texto sobre nós
Esta perícope quer alcançar doentes e sãos. Fala aos que caminham entre Cafarnaum e Cana - seja na ida, atormentados pela mão da morte, seja no retorno, movidos pela palavra de Jesus. João não quer trazer apenas uma história sobre Jesus, mas torna clara a confissão de que em Jesus a vida impera sobre a morte. A fé que se baseia em Jesus e sua palavra leva à vida.
Sintamos, ou não, os sinais de vida e do poder divino sentidos por este pai, tal confissão quer valer para nós. Podemos verificar, a partir deste texto, que a doença e a sombra da morte sobre nosso caminho não são sinônimo de que Deus está ausente e nos abandona. Podemos chegar a ele, em nossa oração, com nossos pedidos e gritos por socorro. Não temos motivo e força para cobrar que seu auxílio seja tal qual o formulamos. Basta-nos saber que ele não nos julga pelo tamanho de nossa fé; que o milagre que pedimos não depende de méritos nossos, mas reside totalmente na sua vontade. Nãç temos a promessa de que nos sucederá o mesmo que se deu com o pai aflito. É nos feito, contudo, o pedido de que tenhamos a mesma confiança que ele teve: para ir ao encontro de Jesus; para jogar nas mãos dele todo o desespero; para insistir junto a ele; para confiar na sua palavra; para reconhecer a presença dele, mesmo que fisicamente não esteja visível.
Uma sugestão quanto à prédica: caso o texto for apresentado em forma de teatro ou jogral, pode-se fazê-lo em partes que são comentadas uma a uma. É possível, mas não necessário, seguir a divisão feita acima.
IV - Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Chegamos a ti, Senhor, porque sentimos que sem ti estamos perdidos. Não queremos viver sozinhos, mas nossas ações nos separam de outras pessoas. Não queremos viver afastados de ti, mas nossas atitudes nos levam para longe da obediência à tua vontade. Acolhe-nos, apesar de toda a nossa culpa. Orienta-nos em direção ao teu Reino, põe-nos a caminho de nosso próximo e ao lado dele. Dá que vivamos deste perdão pelo qual agora pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Revela-te a nós, Senhor, em tua palavra. Mostra-nos quem tu és. Dize-nos quem nós somos, como tu nos queres, o que esperas de nós. Fortalece-nos em nossa fé, por meio de Jesus Cristo e com a força do teu Espírito Santo. Amém.
3. Sugestões para a oração final: Agradecer a Deus por ter enviado Jesus ao nosso meio; sem ele estaríamos mergulhados num mundo de medo, de dor e escuridão. Agradecer pela esperança que podemos ter a partir da ressurreição de Jesus. Pedir que o Espírito Santo nos alimente, anime e guie, nos faça sentir a presença de Deus a cada passo que damos - mesmo sem vê-lo. Interceder para que a igreja cristã consiga colocar sinais de que deseja ardentemente um mundo mais fraterno e luta por ele, para que sinais de violência, de dor e morte não prevaleçam. Interceder por todas as pessoas/famílias que passam por momentos de dor e aflição: que consigam chegar a Deus, expor sua preocupação, confiar na ajuda dele e encontrar forças para continuar. Pedir que cada pessoa consiga perceber diariamente a presença de Deus a seu lado, com a vida se renovando.
V - Bibliografia
- BARIÉ, H. Meditação sobre João 4.46-54. In: Neue Calwer Predigthilfen, v. 3A, Stuttgart, 1980.
- DEHN, G. Meditação sobre João 4.47-54. In: Eichholtz, G. ed. Herr, tue meine Lippen auf, v. 1, Wuppertal-Barmen, 1959.
- SCHMIDT, L. Prédica sobre João 4.46-54. In:___. ed. Kleine Predigt-Typologie/Die Gemeinde-praxis, Stuttgart, 1964.
- VOIGT, G. Meditação sobre João 4.46-54. In:___. Dio geliebte Welt, Göttingen, 1980.