João 3.1-17

Auxílio Homilético

12/03/2017

 

Prédica: João 3.1-17
Leituras: Gênesis 12.1-4a e Romanos 4. 1-5,13-17
Autoria: Dietmar Teske
Data Litúrgica: 2º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 12/03/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI

1. Introdução

Na contagem regressiva para os 500 anos da Reforma Luterana vem a per- gunta: Em que esse acontecimento do século XVI nos ajuda a viver uma fé significativa no presente século XXI? Entendo que Martim Lutero nasceu de novo. Foi abraçado pela fé no Deus misericordioso e libertador. E de Luder, o vagabundo, pessoa altamente reprovável, surgiu Lutero, o liberto pelo evangelho de Cristo (cf. Martin N. Dreher em “De Luder a Lutero”, p. 15s). Nascer de novo não significou para Lutero uma experiência única e suficiente para blindá-lo por toda a sua vida. No Catecismo Menor, ele mesmo afirma que batismo é “arrependimento diário, a velha pessoa em nós deve ser afogada e morrer com todos os pecados e maus desejos”. No evangelho deste domingo, do encontro entre Nicodemos e Jesus, não há evidências de que algo semelhante tenha acontecido na vida de Nicodemos.

Na leitura do Antigo Testamento (Gn 12.1-4a), lemos sobre Abraão, o pai da fé. Sem se importar com sua idade avançada, Abraão e Sara vão à terra que Deus mostraria. Eles rompem com o passado e abrem-se a uma nova realidade. Essa fé coloca-os a caminho. Implica risco, aventura, mas também abertura para um novo aprendizado e ir em direção a novos horizontes. Fé tem a ver com mu- dança e necessariamente humildade para o novo.

Na leitura da epístola (Rm 4.1-5,13-17), o apóstolo Paulo apresenta Abraão como o pai espiritual de todos os que creem. Conhecendo a tradição religiosa de Israel, o apóstolo cita Abraão, que, mesmo em idade avançada, creu e pôs-se a caminho. A perícope indicada encerra dizendo que “este é o Deus que ressuscita mortos e faz com que exista o que não existia” (Rm 4.17).

2. Texto

2.1 – Objetivo e origem do evangelho

João, diferentemente dos evangelhos sinóticos, não traz um relato completo da atuação de Jesus, mas isso não compromete nem torna seu evangelho menos expressivo. João diz que o Verbo, por meio do qual o mundo foi criado, graças ao amor de Deus, veio para salvar o mundo. Em todo o evangelho, João descreve a luta de Jesus com o povo e suas lideranças (sacerdotes, fariseus, zelotes). João mostra a profundidade do conflito, e há um crescendo dessa luta até a cruz. João apresenta Jesus não apenas como o Messias de Israel, mas de toda a criação. É por isso que Jesus, sendo o Salvador, está no mundo, mas o mundo não o conhece (Jo 1.10). João Batista vê Jesus como o Cordeiro de Deus, que carrega não somente as transgressões de Israel, mas os pecados do mundo (Jo 1.29). Por isso não ama apenas o povo eleito, mas “ama o mundo” (Jo 3.16). Estamos diante de um Jesus que luta por Israel, sem deixar de focar o mundo todo. No final do evangelho, afirma que não teve como registrar todos os sinais, mas que “esses, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus...” (Jo 20.31). Com origem num ambiente gnóstico da Ásia Menor, onde o início da gnose cristã fala em percepções superiores e métodos especiais de vida espiritual, João não quer ser um escrito antignóstico, mas um evangelho integral, mostrando aos leitores que, movidos pela fé, encontrem em Jesus o caminho, a verdade e a vida. Quanto ao surgimento do evangelho, esse teria sido escrito, o mais tardar, no final do século I, já que João, discípulo de Jesus, teria vivido na Ásia Menor (Éfeso) e publicado ali, depois de Mateus, Marcos e Lucas, um evangelho.

2.2 – Exegese

V. 1 – O encontro entre Nicodemos e Jesus confirma os ânimos acirrados existentes em Jerusalém. Com a dominação romana cresce a expectativa pela vinda de um messias. A atuação de Jesus, porém, preocupa. Ela não atende exatamente as expectativas e o perfil que as autoridades religiosas esperavam. É preciso conhecer Jesus, e Nicodemos vai à noite.

V. 2 – No encontro com Jesus, Nicodemos, apesar de sua liderança e autonomia, traz consigo as interrogações de outras lideranças. Chama o seu interlocu- tor de “mestre”. Não o faz por reconhecer em Jesus um estudioso das Escrituras, mas pela admiração que a atuação de Jesus causa entre o povo. O tom investigativo de Nicodemos evidencia-se na pergunta que lhe dirige.

V. 3 – Jesus não leva em conta o tom amistoso de Nicodemos, porque percebe que o clima não é para tanto. Por isso diz que “ver o reino de Deus” não depende de observância da lei, mas de um “nascer de novo” (do alto). Apesar de uma vida devota, Nicodemos não compartilha do pensamento de Jesus.

V. 4-5 – A reação de Nicodemos evidencia que ele não acolhe o que Jesus diz, caso contrário não diria o que ele mesmo sabe: é impossível que “um homem velho não pode voltar para a barriga da sua mãe e nascer outra vez”. Jesus diz que é preciso mais: “nascer da água e do Espírito”. Nascer não está em nossas mãos. É iniciativa de fora.

V. 6-7 – Sob a palavra “pais humanos” entende-se a natureza do ser humano separado de Deus e, por isso, vivendo na realidade do pecado. O que é nascido do “Espírito” é um presente de Deus e não mérito do ser humano. Com essas palavras Jesus acaba constrangendo Nicodemos, porque ele se vê entre aqueles que são fiéis cumpridores da lei e está entre os justos de Israel.

V. 8 – O ser humano não tem como controlar a ação e a direção do “vento”, a mesma palavra usada nas línguas hebraica e grega para “Espírito”. Aqui se aponta para uma liberdade imprevisível. Uma liberdade que não está sob o controle do ser humano. Mesmo assim, a ação do Espírito é eficaz e perceptível.

V. 9-10 – Se Nicodemos ouviu atentamente o que Jesus diz, mesmo assim não demonstra acolhida. A sua reação “Como pode ser isso?” tem em Jesus uma resposta em tom de indignação: “O senhor é professor (...) e não entende isso?”.

V. 11-13 – Ao responder, Jesus não apela para questões de interpretação da Escritura, mas vê a relação entre Deus e Israel. No passado, Deus já enviara mensageiros (profetas) que falaram da necessidade de renovação através da “água e do Espírito”. Ele, ao dizer “vocês”, não tem dúvida de que Nicodemos está entre os que “não querem aceitar a nossa mensagem”. Há um abismo entre Nicodemos e Jesus quando esse fala das “coisas deste mundo” e das “coisas do céu”. Aqui o evangelho pressupõe o acontecimento pascal e que é preciso acolhê-lo pela fé.

V. 14-15 – Sem os eventos de Sexta-feira Santa e Páscoa, é impossível falar do envio do Espírito Santo. O perdão da culpa e a reconciliação do mundo com Deus, bem como o sacrifício do Filho na cruz e sua ressurreição abrem o caminho para que o Espírito Santo habite na igreja e em cada pessoa que crê. Jesus recorre à história de Israel para que Nicodemos entenda o acontecimento da cruz. Moisés ergue uma estaca e pendura a cobra de bronze: basta a pessoa mordida por uma cobra venenosa, devido à sua desobediência, voltar o seu olhar para a cobra de bronze, que ela será curada e salva. Deus colocou sobre Cristo a culpa de nossos pecados (2Co 5.21) a fim de salvar do pecado. Assim Jesus também terá de ser levantado, e no olhar de quem crê começará, aqui e agora, uma vida renovada. Apesar de não estar livre dos sofrimentos, existe a perspectiva de futuro.

V. 16-17 – O versículo 16 é conhecido como evangelho no evangelho. O amor de Deus é “tanto”, o que caracteriza a sua enorme intensidade. Esse é direcionado ao “mundo”. O evangelista fala do mundo alienado de Deus. Sob a ação desse amor, o mundo não ficará indiferente, mas será contagiado. Nascido na manjedoura, rejeitado, traído, preso, açoitado, cuspido, pregado à cruz e morto, Jesus assume o “tanto” do amor de Deus pelo mundo. É por meio do Filho que Deus quer que o mundo seja salvo e não julgado.

3. Meditação

Vivemos um tempo de mudanças acentuadas e até rápidas demais. Nicodemos percebe que há mudanças no ar e é necessário agir. Ele tem uma posição de destaque no Sinédrio, e Jesus começa a preocupar a classe religiosa. Apesar de seu conhecimento profundo da Escritura e observância rigorosa da lei, ele se dirige a Jesus como “mestre que Deus enviou”. A vinda do Messias estava no horizonte da classe religiosa; a própria Escritura comprova-o. E a presença do Messias garantirá a instalação do reino de Deus com uma interpretação correta da lei de Moisés e seu fiel cumprimento. Porém a atuação do jovem mestre repercute entre a liderança judaica de Jerusalém e cria um nervosismo geral. Nicodemos, ao procurar Jesus, espera encontrar respostas para suas interrogações e das lideranças judaicas.

Jesus, no entanto, não trava nenhum debate teológico. Diz que, para ver o reino de Deus, é preciso “nascer de novo”. Nicodemos fica desconcertado e reage: “Como pode um homem velho nascer de novo?”. Jesus desafia o seu interlocutor a entrar numa nova realidade: “nascer da água e do Espírito”. Para que Nicodemos entenda o que isso significa, Jesus recorre à história de salvação do povo de Deus. Ele lembra Moisés e o povo de Israel no deserto a caminho da terra prometida. A desobediência e revolta contra Deus fizeram muita gente morrer por meio das mordidas de cobras venenosas. O clamor por misericórdia reverteu em cura e salvação. Como? Olhando para o alto, para a cobra de bronze pendurada na estaca por Moisés. Mesmo quem estivesse moribundo, ao olhar com fé para a cobra, experimentaria salvação.

Agora Deus fará com que a ação salvadora seja completa mediante o olhar confiante para o Filho de Deus. Ele será erguido à cruz, porque “Deus amou o mundo tanto”. “Nascer de novo” não é ser salvo “do mundo”, pois o mundo todo está dentro do amor salvador e libertador de Deus através da entrega de seu único Filho. A própria estrutura social e política do tempo de Jesus contribuiu para a prisão, o sofrimento e a morte na cruz do Filho de Deus. O pecado, portanto, não é um mal que acontece somente a nível pessoal, mas também a nível social, político e econômico.

Se “Deus amou o mundo tanto”, a salvação não se limita à vida pessoal, mas surge o desafio de construir, aqui e agora, uma realidade em que se experimenta uma paz duradoura, fruto do amor de Deus. Isso resultará que os mem- bros da igreja cristã em todo o mundo não mais permanecerão com sua fé dentro dos muros da instituição eclesiástica, mas colocarão sinais do reino de Deus no mundo que “Deus ama tanto”. Não podemos garantir que Nicodemos “nasceu de novo”, mas também não é possível afirmar que ele tivesse saído do encontro assim como veio. Ao longo do evangelho, vamos encontrar um Nicodemos, no mínimo, em atitude de respeito em relação a Jesus.

E do nosso encontro com Jesus? O que resulta? Como nascidos da “água e do Espírito” e, conforme Martim Lutero, em “arrependimento diário, a velha pessoa em nós deve ser afogada e morrer com todos os pecados e maus desejos (...) e ressurgir diariamente nova pessoa, que viva em justiça e pureza diante de Deus para sempre”. É isso o que queremos? Caso sim, será um caminho libertador, não sob a tutela da lei que condena ou absolve. O caminho libertador estará acontecendo ao longo de toda a vida, porque o olhar estará focado naquele que salva: Jesus Cristo.

Nas noites escuras em que Lutero esteve debruçado sobre a letra da lei e que lhe tirou o sono durante dias, meses e anos, surgiu a luz de um novo dia. Não mais por conta de seus méritos, mas unicamente porque Deus ama “tanto”. Lutero redescobriu o evangelho, que é boa-nova. Foi necessário “nascer de novo”, um coração e mente humildes, para refletir o que Deus fez por nós e o significado disso para a vida no mundo.

4. Imagens para a prédica

4.1 – Para que serve o horizonte?

Certa vez, alguém chegou ao céu e pediu para falar com Deus. De acordo com seu ponto de vista, havia uma coisa na criação de Deus que não fazia nenhum sentido. Deus atendeu-o imediatamente. O próprio Deus estava curioso para saber qual era a falha que havia na Criação.

“Senhor Deus! Sua criação é muito bonita, muito funcional. Cada coisa tem sua razão de ser... mas, do meu ponto de vista, tem uma coisa que não serve para nada”, disse aquela pessoa a Deus.
“E que coisa é essa que não serve para nada?” , perguntou Deus.
“É o horizonte! Para que serve o horizonte? Se eu caminho um passo em direção ao horizonte, ele se afasta um passo de mim. Se eu caminho dez passos, ele se afasta outros dez passos. Se eu caminho quilômetros em direção ao horizonte, ele se afasta os mesmos quilômetros de mim... Isso não faz sentido! O horizonte não serve para nada.”
Deus olhou para aquela pessoa, sorriu e disse:
“Mas é justamente para isso que serve o horizonte: para fazê-lo caminhar”. Abraão, crendo na promessa de Deus, pôs-se a caminho. Nada o deteve, apesar da idade avançada e do risco de ficar no meio do caminho. Para o apóstolo Paulo, a atitude de Abraão fá-lo ser o pai espiritual de todos os que creem. À luz do evangelho, quem “nasceu de novo”, “nasceu da água e do Espírito”, redescobre o amor de Deus que é “tanto” e caminha na direção de um novo horizonte. E o faz movido pela fé no Deus que ama o “mundo”, que deseja vê-lo salvo.

4.2 – Estou fora do movimento evangélico

No Facebook, onde “curto” e também “compartilho”, deparei-me com a meditação de Ricardo Gondim. Não acompanho todos os seus escritos como teólogo no campo protestante. Lembro que, em outubro de 2013, quando do 2º Encontro Nacional de Ministros e Ministras da IECLB, Gondim foi um dos palestrantes convidados e, recentemente, em sua meditação de 20 de maio de 2016, escreve sob o título: “Estou fora do movimento evangélico” (www.ricardogondim.com.br). Embora cite muitos outros motivos para “estar fora”, chama-me atenção que esse texto surge após a admissibilidade do impedimento da presidente da República e de seu afastamento por até 180 dias a partir de 12 de maio de 2016. Sabe-se que um bom número de políticos e lideranças do “movimento evangélico”, de quem Gondim se considera fora, está na chamada “bancada evangélica” em Brasília. Ouso dizer que, em assuntos de fé, essa bancada se vê como “nascidos da água e do Espírito”. Sua atuação e manifestação pública, no entanto, estão comprometidas com a manutenção de privilégios e com uma democracia em que não há espaço para a diversidade. Na concepção deles, está fora o “mundo” que Deus ama tanto e quer que seja salvo e não julgado.

5. Subsídios litúrgicos

Na saudação formal, proponho a leitura do Salmo 121, indicado para este domingo, bastando ler o primeiro versículo.

Para o anúncio da graça, proponho os dois versículos finais do texto pro- posto do evangelho e mensagem: os versículos 16 e 17 de João, capítulo 3.

Canções que contemplam os textos indicados para o 2º Domingo na Qua- resma ou complementem a mensagem: a) HPD 131, 393 (Salmo 121); b) HPD 154 e 159 (Gênesis 12); c) HPD 203, 209, 195 (João 3.16); d) HPD 380, 432, 450 e destacando nesse item o HPD 459.

Bibliografia

BOOR, Werner de. Evangelho de João 2. ed. Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 2002.


 

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Autor(a): Dietmar Teske
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Quaresma
Perfil do Domingo: 2º Domingo na Quaresma
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 3 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 17
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2016 / Volume: 41
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 45413
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