João 20.1-18

Auxílio Homilético

12/04/2020

 

Prédica: João 20.1-18
Leituras: Atos 10.34-43 e Colossenses 3.1-4
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 12/04/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV

Páscoa – uma mulher anuncia: Vi o Senhor!

1. Introdução

Este auxílio servirá para celebrar e pregar no Domingo da Páscoa. Grande dia, que, em muitas comunidades cristãs, começa já de madrugada com a vigília pascal, com caminhadas de reflexão, canto, oração, expressando o louvor e a alegria do significado da ressurreição para nós pessoas cristãs, para todas as igrejas que creem em Jesus, vivem na fé e a partir da fé no evangelho, e o colocam em prática de muitas e inusitadas formas. Este domingo precisa ser marcante para as pessoas da comunidade. Ele pode se constituir num momento de renovação pessoal, de voltar-se para o principal da vida de fé, de tal modo que o seu anúncio se torne sinal de conversão das pessoas e da comunidade, de nova caminhada, de renovação da fé batismal e do amor que recebemos e aprendemos a vivenciar a cada dia de nossas atribuladas existências.

Examinando a coleção Proclamar libertação, percebi que essa perícope reaparece seguidamente no Lecionário Ecumênico de textos para pregação e, por isso, é uma das mais presentes, estudadas e meditadas. Portanto quem estiver se preparando para prédica deste domingo terá muitos recursos à mão para buscar informações e ênfases de conteúdo (Textos do Novo Testamento). Se me permitem, eu destacaria dois textos que podem ajudar: a) o primeiro vem do professor e pastor Gottfried Brakemeier (PL VIII, 1982), com observações breves e importantes sobre o Evangelho de João, com ênfase na teologia do apóstolo; b) o segundo é o auxílio elaborado pelo colega professor e pastor René Krüger, da IERP – Iglesia Evangélica del Río de la Plata (PL 34, 2009), com observações exegéticas precisas e pertinentes para a meditação que segue. Além desses subsídios, a perícope reaparece com estudos nos volumes XVI, XVIII, 24, 26, 38, 43. Por essa razão, aqui não vou me deter em questões exegéticas mais detalhadas, apenas retomar algumas informações que a meu ver poderão ajudar a trabalhar o foco que me parece central nesse anúncio da ressurreição de Jesus conforme a tradição da comunidade de João.

2. Observações exegéticas

Relendo a perícope com atenção, percebe-se que ela é composta de pelo menos duas narrativas que, originalmente, estiveram separadas e foram  então reunidas pelo evangelista João. Isso se pode ver nas ligações que ele estabelece entre os versículos 1-10 e depois 11-18. No v. 1, lemos sobre a ida de Maria Madalena ao sepulcro onde o corpo de Jesus fora depositado após ser baixado da cruz por José de Arimateia, auxiliado por Nicodemos. Ela e outras mulheres, mais o discípulo amado, já haviam estado junto à cruz até o desfecho da vida de Jesus. Maria foi ao sepulcro de madrugada no primeiro dia da semana e viu que a pedra estava revolvida. Correu depressa para avisar Pedro e outro discípulo, e ambos foram conferir. O texto diz que o discípulo a quem Jesus amava correu mais e chegou antes ao sepulcro, mas foi Pedro quem entrou nele e viu os lençóis e, à parte, enrolado, o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus. Mas o corpo não estava mais ali. Só então o outro discípulo entrou, viu e creu, diz o texto (v. 8). Essa parte termina afirmando que ninguém ainda havia compreendido a Escritura, que era necessário ele ressuscitar dentre os mortos. Laconicamente, essa parte termina dizendo que os dois discípulos então voltaram outra vez para casa. Emilio Voigt (PL 43, p. 161) escreve algo importante sobre essa parte do texto: se os discípulos começam a crer que Jesus ressuscitou, essa fé ainda não convence, pois ela fica “sem consequência. Não há manifestação de alegria nem de testemunho da ressurreição. Aliás, os dois [...] não falam uma palavra sequer em toda a cena”. Fé que não se traduz em consequências palpáveis fica inerte, não gera o seguimento para o qual o ressuscitado nos chama na Páscoa. Ainda não chegou a ser completa. Precisa ser transformada por um encontro que mexe com a alma, o coração, a mente, mãos e pés.

A segunda parte do texto, a meu ver, guarda o centro e foco da perícope. E essa luz recai sobre Maria Madalena (cf. PL 24, texto de Claudete Beise Ulrich e Carlos L. Ulrich). Singularmente, todos os relatos da paixão, crucificação e ressurreição de Jesus mencionam a teimosa presença das mulheres junto ao mestre amado. Algumas delas já o acompanhavam desde a Galileia. Num tempo em que as mulheres eram desqualificadas e consideradas impuras muitas vezes, é impressionante registrar sua presença e a importância que essa fidelidade representou nas primeiras comunidades. Na perícope em estudo, Maria Madalena, que fora curada por Jesus e de quem saíram sete demônios, o que significa que ela foi curada integralmente, é personagem central. A prédica deveria acompanhá-la com atenção e carinho. Ela tem muito a nos ensinar ainda hoje. Sobretudo num tempo carregado de tantas sombras, injustiças e violências desmedidas em todos os âmbitos da vida pessoal, social e ambiental. Cada dia nós encontramos exemplos nos noticiários, muito embora em muitos deles a mídia tente suavizar o que é apenas a ponta do horror que se espalha qual erva daninha.

Maria Madalena chora junto ao sepulcro. Vem em busca do corpo de Jesus. Mesmo num gesto desesperado, não pode admitir que ele fique abandonado. Seu gesto parece louco e sem sentido. É um gesto de amor gratuito, para o qual não existe recompensa. É uma entrega da presença solidária que nem na morte se acaba. Ou talvez precisamente por causa da morte, se prova de uma forma extrema. Vítor Westhelle oferece algumas páginas memoráveis sobre esse gesto das mulheres em seu livro O Deus escandaloso (p. 127ss), quando retoma a teologia da cruz e aponta para a “prática da ressurreição”: “Para aquelas mulheres, aquela cruz não era ainda o fim de tudo; ainda havia um trabalho a fazer”. E essas ações começam com uma mulher chorando. A dor do luto, da perda, da tristeza precisa ser externada, vivida desde a mais profunda solidão. Mas é nesse momento que, ao olhar para dentro do sepulcro aberto, Maria vê dois anjos. Eles lhe perguntam: Mulher, por que choras? Ela responde da forma mais direta possível: Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram (v. 13). Ao voltar-se, viu Jesus em pé, mas não o reconheceu. Então foi Jesus que lhe perguntou: Mulher, por que choras? A quem procuras? O texto continua no conhecido estilo de João, aquele dos mal-entendidos: Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Ela pensa que é o jardineiro. E mais, imagina poder realizar algo sem sentido, pois não tem forças para isso nem saberia para onde levar o corpo. Parece que aqui está implícito todo o problema da pureza e impureza em relação à lida com mortos segunda a tradição cultural-religiosa judaica. Maria Madalena não leva isso em consideração. Seu sofrimento quase a deixa cega. Então vem a palavra que abre a vida e o coração dessa mulher extraordinária. Jesus a chama pelo nome: Maria! Só então ela como que desperta do seu pesadelo e responde na sua língua: Rabbouni (em aramaico, língua de Jesus também, quer dizer meu mestre). Sua resposta remete à palavra de Jesus em João 10.3: As ovelhas ouvem a sua voz, ele chama pelo nome as suas próprias ovelhas. E elas então respondem: Meu mestre! Nosso mestre! Segundo René Krüger, o uso do termo arameu esclarece de forma convincente que estamos diante de material redacional muito antigo, que vem da tradição das primeiras comunidades, embora esse evangelho tenha sido escrito por volta do final do século 1. Há uma relação familiar popular e reverente nessa resposta de Maria.

Nos versículos 17 e 18, temos então algo que desconcerta. Jesus parece não aceitar a aproximação de sua fiel discípula: Não me detenhas, diz Jesus. Sua presença é diferente agora, não mais como antes da crucificação. Ele está ali, mas o sentido de sua presença é outro. Sem cair em especulações, basta perceber que o Ressuscitado não chama a reverência para si, mas aponta, instiga para o testemunho aos meus irmãos. Essa é a urgência que se apresenta. Quer dizer, de agora em diante a relação pessoal com o mestre se dá em comunhão com os irmãos e irmãs. É com eles e elas que o Ressuscitado aparece, se reúne, abençoa e envia. E isso fica patente com as palavras de Jesus que Maria deve transmitir: Vai ter com meus irmãos e dize-lhes: Subo para meu Pai e o Pai de vocês, para o meu Deus e o Deus de vocês (v. 17). No v. 18, afinal, reencontramos aquela mulher que chora, que busca, que está afundada na tristeza e na dor, completamente mudada. Agraciada com a presença de Jesus, que a chama pelo nome, Maria se transforma ou é transformada. Ela fica tomada de uma grande alegria (eu-angelion) e se torna a primeira testemunha pública do Ressuscitado. Mesmo que seu nome ou de outras mulheres não sejam mencionados por Paulo em 1 Coríntios 15.5ss, não é possível ignorar na mensagem cristã este fato atestado aqui: Maria Madalena foi a primeira pessoa que anunciou, que proclamou: Vi o Senhor! Cristo vive! Essa tradição é tão ou mais importante justamente num tempo em que as mulheres não tinham nenhum valor. Ocorre que – por causa de Jesus Ressuscitado – as mulheres são finalmente reconhecidas. Elas testemunham, elas proclamam. Modernamente, creio poder afirmar: elas fazem teologia.

3. Meditação

A pregação da Páscoa adquire a maior relevância em qualquer tempo, mas nos dias em que vivemos, ela se torna ainda mais urgente e relevante. Pois falar que a vida vence a morte, que Deus está ali junto aos crucificados para levantá-los e chamá-los para uma nova vida é crucial para a comunidade cristã, para o mundo.

Essa narrativa, recontada na prédica, pode suscitar muita emoção. Penso especialmente nas mulheres de nossas comunidades, muitas vezes não suficientemente valorizadas, desde as mais jovens até as mais idosas. Aqui está bem nítido o papel central das mulheres como discípulas do Mestre Jesus. Nossa colega Wanda Deifelt chega a afirmar que a partir desse relato podemos dizer que Maria Madalena foi a “apóstola dos apóstolos”, uma vez que o verbo grego significa “enviar”, de onde temos “envio”. O Jesus Ressuscitado – ao falar com Maria pelo nome – não permite que ela fique enlevada adorando-o de forma estática (como me parece que sucedeu da mesma forma com os discípulos no monte de transfiguração cf. Mateus 17.2ss). Ele a envia para dar notícia aos irmãos. E ela vai e fala. Há uma dinâmica clara e desafiadora no encontro com o Ressuscitado, que é precisamente a dinâmica missionária. Aí temos um dos pontos centrais da mensagem da Páscoa. Ela não apenas nos causa emoção por nos encontrarmos com o Senhor vivo no meio de nós. A Páscoa – como no êxodo – é travessia, é envio, é testemunho, é chamado para viver a fé no caminho, na caminhada, na comunhão, na busca dos outros, da comunidade e para além dela.

Vi o Senhor! afirma Maria e conta adiante o que se passou com ela e como venceu a dor, a tristeza e o luto, passando a proclamar com ousadia que Cristo vive, que Jesus não nos deixa órfãos, que segue adiante e nos chama a segui-lo pelos caminhos do mundo, especialmente lá onde pescadores, prostitutas, doentes mentais, pessoas sem rumo e sem teto, vulneráveis em todos os sentidos nos aguardam para escutar uma palavra que salva, para segurar a mão estendida, para acompanhar a luta pela vida que não tem limite ou fronteira. Páscoa é mensagem transformadora, e se me permitem dizer, revolucionária. Ontem, hoje e amanhã.

Concluindo a meditação, segue um poema que escrevi faz tempo (Flor de maio, p. 53):

Páscoa, travessia ...
Páscoa, travessia da morte para a vida.
A vida recobrada – nova –
como o voo esplêndido da garça branca
sob o céu azul da compaixão de Deus.

Páscoa da saudade e da ternura
da beleza e da esperança
da novidade faceira
ao canto do galo madrugador.
Jesus conosco para sempre.
Espírito de Cristo, a liberdade aqui e inteira
a dignidade plena desta vida redimida
abrindo em flores e cheiros.
Páscoa – assumir os riscos todos.
Viver ressurreição cada dia com a certeza:
Eis que estou com vocês
todos os dias até o fim dos tempos
”.
 

4. Subsídios litúrgicos

Como essa perícope é a escolhida para o Domingo da Páscoa, um bom auxílio litúrgico – especialmente em comunidades que celebram a vigília pascal na madrugada – pode ser encontrado PL XVI, com um roteiro da vigília elaborado pelo pastor Ronald Baesler, a partir de sua experiência comunitária e pastoral. Ele traz um roteiro completo com os passos de uma vigília, diálogos com a comunidade e orações. De minha experiência pessoal, posso testemunhar sobre o impacto que tais vigílias causam em quem delas participa, especialmente em pessoas afastadas da comunidade ou até mesmo pessoas que nem conhecem uma comunidade cristã. Na Faculdades EST, há anos se celebra essa vigília dentro do Tríduo Pascal, que começa na quinta-feira com o lava-pés, passando pelo culto das trevas da Sexta-Feira da Paixão, para chegar na vigília, que termina com a alegria da celebração da ressurreição no alvorecer do domingo. Esse culto – celebrado com a Santa Ceia – normalmente termina com um ágape, em torno de uma farta mesa comunitária para a qual cada pessoa ou família leva algo a compartilhar. Onde quer que essa celebração venha sendo realizada, os testemunhos de quem dela participa sempre são efusivos, gratos, gerando uma nova visão sobre o sentido da Páscoa e a missão que dela recebemos, isto é, de anunciar adiante que Cristo vive, está entre nós e nos envia para viver neste mundo a fé e o amor que salva, redime e liberta de todas as formas de escravidão, do passado e do presente.

O poema citado por Nélio Schneider (PL XVIII) pode ser inserido na liturgia:

Assim como a árvore está oculta na semente,
assim como o pássaro está oculto no ovo,
assim como a criança está oculta no útero materno,
assim está oculto neste mundo o reino de Deus.
Um dia se romperá a casca da semente,
se partirá a casca do ovo,
gritará a mãe nas dores de parto:
vida nova está nascendo!
Será a dor do mundo,
a dor da mãe que está dando à luz?
(Johnson Gnanabaranam, cristão indiano)

Bibliografia

BRAKEMEIER, Gottfried. Observações introdutórias referentes ao Evangelho de João. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. VIII, p. 7-15.
KRÜGER, René. Domingo da Páscoa: João 20.1-18. In: Proclamar libertação. São Leopoldo: Sinodal, 2009. v. 34, p. 162-168.
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso. O uso e abuso da cruz. Trad. Geraldo Korndörfer. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008.
ZWETSCH, Roberto. Flor de maio. Poemas. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2014.


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Autor(a): Roberto Ervino Zwetsch
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 20 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 18
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2019 / Volume: 44
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 54654
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