João 19.16-30

Auxílio Homilético

05/04/1985

Prédica: João 19.16-30
Autor: Luís Marcos Sander
Data Litúrgica: Sexta-feira Santa
Data da Pregação: 05/04/1985
Proclamar Libertação - Volume: X

I

Para elaborar qualquer discurso teológico, também uma prédica, é preciso construir o que eu chamaria de espiral hermenêutica, o que, trocando em miúdos, significa o seguinte: É preciso relacionar texto e contexto de tal forma, que o contexto em que vivemos (mais precisamente: uma determinada vivência e interpretação do mesmo) tenha vez e voz na análise e exposição do significado do texto bíblico, e, ao mesmo tempo, de tal forma, que o texto possa dizer a sua própria palavra, a palavra normativa em relação a nosso contexto, que nos permita vivenciar e interpretar este último de uma forma que mereça o qualificativo de cristã. (Se um dos dois elementos for suprimido, ou o texto não falará adequadamente para dentro de nosso contexto ou este ditará as normas de leitura daquele, de modo que não teremos uma espiral hermenêutica, mas sim um círculo fechado, em que já sabemos de antemão e de outras fontes o que queremos tirar do texto.) No caso da perícope que nos é proposta como texto de prédica, sugerimos que a espiral hermenêutica seja construída em torno da problemática da relação entre a paixão de Cristo, que constitui o assunto da perícope, e a paixão do mundo, em suas diversas formas, que constitui uma questão decisiva do contexto maior e menor em que vivemos. O sofrimento não só possui diversos níveis (pessoal, social, econômico, etc.), mas também incontáveis formas, sendo um problema que, de uma forma ou outra, atinge a todos e podendo, por isto, contar de saída com um certo interesse por parte dos ouvintes.

Por falar em ouvintes, talvez não seja inútil lembrar que nos cultos de Sexta-feira Santa ou de Paixão não só podemos contar com casa cheia, mas também com a presença de uma porção de gente que vem ao culto especialmente ou mesmo exclusivamente nesta época do ano. Como pregadores, isto representa para nós, entre outras coisas, uma oportunidade única de confrontar a comunidade com o cerne do Evangelho a partir da teologia da cruz, tão cara à nossa tradição luterana.

Para relacionar texto e contexto da maneira sugerida, precisamos levar em consideração o seguinte:

Precisamos, em primeiro lugar, nos dar conta de que o sofrimento humano, que é o nosso contexto de referência, é pluriforma, não podendo ser reduzido exclusivística e/ou arbitrariamente a uma determinada forma de sofrimento. Inúmeras são as formas de sofrimento a que podemos nos referir: Existe o sofrimento que se suporta em consequência do engajamento em prol de uma causa; neste caso, o sofrimento é causado por outros; o sofredor é vítima de re-pressão. Aliás, é sobre o sofrimento decorrente do discipulado, sofrido no seguimento de Jesus, que o NT parece colocar a maior ênfase. O próprio evangelho de João (em 17.14, p.ex.) faz referência a esse tipo de sofrimento quando fala do ódio de que os discípulos de Jesus são ví-tima por parte do mundo (que, em João, é representado pelos judeus). Porém existem também outras formas de sofrimento: Existe o sofrimento maciço decorrente de carência material: da fome, da subnutrição, do desemprego, do subemprego, do trabalho mal remunerado; este é um aspecto do sofrimento mais amplo decorrente de causas objetivas, incluindo a violação ou o não cumprimento ocasionais ou sistemáticos dos direitos humanos mais elementares, principalmente nos países do Terceiro Mundo; este é o sofrimento decorrente de carência, de exploração, dominação e opressão. Existe também o sofrimento (talvez não menos maciço que o anterior) decorrente de carência afetiva, de distúrbios no relacionamento com os outros; este é o sofrimento decorrente de insatisfação, frustação ou ruptura em relacionamentos com pessoas que nos são significativas e dão sentido à nossa existência. Existe o sofrimento daqueles que são vítimas da imprudência, da agressividade ou da estupidez humanas, sejam eles vítimas de guerras, de acidentes de trânsito ou de assaltos. Existe o sofrimento, não raro inconsciente e inarticulado, daqueles que não vêem sentido em sua vida. Além do sofrimento decorrente de catástrofes naturais, existe o sofrimento dos doentes, especialmente em casos de doença crónica, incurável e fatal. Existe o sofrimento decorrente da discriminação ou marginalização de determinados grupos ou tipos de pessoas por outros. Existem incontáveis e angustiantes casos e formas de sofrimento e morte aparentemente sem sentido, inúteis ou absurdos. E é bom lembrar que existe também o sofrimento do qual não somos apenas vítimas, mas, direta ou indiretamente, autores; existe o sofrimento de que somos autores porque, por ação ou omissão, o criamos ou ajudamos a criar e manter, porque compactuamos ou nos conformamos com este nosso mundo cheio de sofrimento. Neste sentido, existe também sofrimento que tem sua causa na consciência de sermos autores de sofrimento alheio e, num sentido mais amplo, de somos culpados de sermos pecadores.

Para relacionar texto e contexto da maneira que sugerimos, precisamos não só nos dar conta da realidade maciça e da pluriformidade do sofrimento, mas precisamos também assumir uma perspectiva determinada, a perspectiva dos sofredores. Neste sentido, é bom lembrar que não existe simplesmente o sofrimento em si; só existe sofrimento experimentado e interpretado por pessoas. Em outras palavras: No sofrimento existe sempre um componente subjetivo, importaste (em certos casos, decisivo até) porque determina a maneira como lidamos com o sofrimento próprio ou alheio. Em última análise, o que importa são os sofredores, não o sofrimento. De qualquer forma, precisamos assumir a perspectiva dos sofredores, precisamos aprender a ver a vida, a sociedade e a história humanas de baixo para cima, para construir a espiral hermenêutica que propomos para nosso texto de prédica.

Com a pluriformidade do sofrimento e com a perspectiva dos sofredores em mente, aproximemo-nos agora do texto. Ao fazermos isto, tropeçamos de imediato numa dificuldade aparentemente insuperável: Nosso texto de prédica, cujo assunto é a paixão de Cristo, não vê no Jesus sofredor uma mera vítima do sofrimento que lhe é infligido por outros, nem contém algo assim como uma perspectiva do sofredores. Nossa perícope não parece ver o sofrimento de Jesus e, por implicação, o sofrimento humano, de baixo para cima. Pelo contrário. Já a primeira leitura do texto dá justamente a impressão de que João vê as coisas de cima para baixo. Por quê? Para responder esta pergunta, precisamos olhar o texto mais de perto, sempre em estreita conexão com a teologia do evangelista:

II

João é, por assim dizer, o evangelho do Natal. Também a história da Paixão se subordina a este aspecto. Diversamente dos sinóticos, paixão e morte de Jesus não são o caminho da humilhação, mas o da sua vitória. Por isso, ele morre com as palavras: Está consumado (19.30). A missão de Jesus chegou a seu termo; ele volta para de onde veio. A morte de Jesus é o ponto final e culminante da encarnação, pois ela a encerra e ao mesmo tempo a confirma (Brakemeier, p. 14; para a compreensão específica da cruz de Jesus em João cf. Schulz, pp. 236-238; Lohse, p. 131; Roloff, pp. 180-182; Track, pp. 244-248). O evangelho de João pouco parece se prestar à elaboração de uma theologia crucis compassiva com o sofrimento de Jesus e solidária com os sofredores de hoje. A maneira como João descreve a paixão de Jesus é bastante sóbria. O sofrimento e a humilhação pelos quais Jesus passou não são simplesmente suprimidos, mas não estão no centro das atenções do evangelista. A palavra-chave bem como o ápice de toda a nossa perícope é o está consumado do v. 30. Submetendo-se obedientemente à morte de cruz, Jesus, consuma sua obra, a missão que lhe fora confiada pelo Pai: a revelação, em palavra e ação (longos discursos e milagres, estes com caráter de sinal), do amor de Deus. Neste sentido, uma conhecida passagem de João tem significado programático: Porque Deus amou ao mundo de tal maneira que deu (isto é, enviou, não entregou, como «m outros relatos da paixão ou em outras definições soteriológicas da obra da Jesus em voga no cristianismo primitivo) o seu Filho unigénito... (3.16).

No relato joanino da paixão de Jesus, não há qualquer referência explícita ao significado salvífico da cruz. Este certamente não é negado (cf. Jo 1.29, p.ex.), mas não está em primeiro plano, ou melhor, está presente na medida em que a cruz é parte integrante do caminho percorrido pela Filho de Deus no cumprimento de sua missão. João - e isto deve ser levado a sério também na prédica — não privilegia interpretações da morte de Jesus que articulam seu caráter vicário, expiatório ou reconciliador para elaborar seu relato da paixão e sua cristologia em geral. Para ele (neste sentido o prólogo de seu evangelho tem caráter programático), o cerne do Evangelho reside na encarnação, na vinda do Filho a este mundo, na autorevelação de sua glória, de sua graça e de sua verdade (programáticos são, neste sentido, os diversos eu sou... de Jesus) através do cumprimento de sua missão e, por meio dela, da revelação do amor de Deus. A abscondidade da revelação de Deus na cruz de Jesus, característica da versão marquina, praticamente desaparece em João: A crucificação (voluntária — cf. 10.17s) de Jesus é não só a consumação de sua missão, mas também, ao mesmo tempo, a epifania de sua unidade com Deus (10. 30: Eu e o Pai somos um) que o enviara ao mundo e para quem Jesus agora retorna (cf. 13.1, p.ex.), cumprindo fielmente a missão que lhe fora confiada. Ela é também a elevação (cf. 3.14s, p.ex.), exaltação e glorificação de Jesus. Neste sentido, a cruz de Jesus, para João, não é apenas partida ou passagem deste mundo para a glória, mas também a irrupção desta glória (Lohse, p. 131). A morte de Jesus não é apenas o fim de seu caminho, mas sua culminância, a hora (cf. 12.23; 13.1; 17.1) para a qual se encaminha e na qual desemboca sua trajetória terrena. É claro que João só pode afirmar tudo isso porque pressupõe, em sua interpretação da cruz, a ressureição respectivamente o querigma pascal da vitória de Jesus sobre a morte.

As seguintes perguntas retóricas resumem a especificidade da visão joanina da paixão de Jesus, apontando já, ao mesmo tempo, para o dificuldade de relacionar uma tal visão com a paixão do mundo conforme a descrevemos acima: Não está no centro do evangelho de João a figura de Jesus como o revelador divino, que explica o Pai aos homens através de si mesmo, de sua pessoa, de sua palavra e obra, que lhes dá luz e vida e que, desta forma, mediatiza a salvação? Não constitui, a partir disso, a morte de Jesus, na melhor das hipóteses, um fenómeno marginal, o ponto final do processo de revelação, ao qual, enquanto tal, cabe um significado um tanto quanto casual? Não devemos nós nos precaver, no sentido de não introjetar precipitadamente a teologia da cruz de Paulo no quarto evangelho? Não possui este evangelho... uma estrutura encarnatória, que vê a salvação fundamentada justamente na aparição do Filho de Deus e não em sua morte e ressurreição? (J. Beutler, citado em Koch, p. 181). Pressuposto isto, salta aos olhos a aparente dificuldade de construir a espiral hermenêutica que temos em mente. O Jesus do evangelho de Marcos, que morre dolorosamente consciente de que foi abandonado pelo Pai (cf. Mc 15.34), ou mesmo o Jesus do evangelho de Lucas, que, na hora da morte, se entrega confiantemente às mãos do Pai (cf. Lc 23.46), nos parecem mais próximos dos sofredores e mais solidário com eles do que o Jesus de João, que morre com uma expressão quase que de triunfo nos lábios: Está consumado. Como é que Jesus pode ver tudo consumado (cf. 19.28) se o sofrimento continua sobre esta terra, se nosso mundo, nossa sociedade e nossa própria existência continuam com as veias abertas, clamando por libertação?

Está na hora de vermos o outro lado da moeda:

Precisamos reconhecer que João não espiritualiza nem transforma numa mera variante do mito gnóstico da paixão de Jesus ou sua pessoa e obra de um modo geral. João também nâb utiliza a história como um cabide para pendurar arbitrariamente sua concepção estaurológica e cristológica. É certo que João sublinha de um modo especial a divindade de Jesus em seu evangelho (Brakemeier, p. 13) e, em seu relato da paixão, a iniciativa (cf. 19.17): Jesus mesmo carrega sua cruz, ao contrário de Mc 15.21) e a soberania (cf. 19.11a) de Jesus. Porém não cremos que João seja vítima de um docetismo ingênuo (ou autor de um docetismo deliberado), vendo em Jesus exclusivamente o Chrístus victor ou, pior ainda, uma espécie de Deus que, quase que a contragosto, é obrigado a se tornar homem (ou a se fantasiar de homem) para se comunicar conosco. Neste sentido, o v. 14 do prólogo tem significado programático: O Verbo se fez carne, com todas as implicâncias e consequências aí contidas.

Para João, a encarnação significa que Deus... chegou próximo das pessoas, assumindo a carne, ou seja, a condição humana. Jesus assume inclusive a necessidade de morrer (Brakemeier, p. 14). E para João, a morte de Jesus não vem como um meteorito caído acidentalmente do céu ou por uma decisão voluntarística da parte de Jesus. João mesmo nos diz porque Jesus foi crucificado: por causa da transgressão do mandamento referente ao sábado e, com isto, da lei mosaica, bem como por causa da acusação dos judeus de que Jesus se fazia igual a Deus (cf. 5.16ss). A morte de Jesus resultou também de um plano tramado contra ele pelos líderes judeus (cf. 11.53, p.ex.), os representantes do mundo, que não aceita a revelação de Deus em Jesus.

A facticidade do sofrimento, da humilhação (cf. a cena da repartição das vestes pelos soldados, vv. 23ss, (que, se por um lado mostra que Jesus está à mercê de seus executores, por outro lado, frisa João, acontece para que se cumpra a Escritura) e da morte de Jesus de modo algum é suprimida ou bagatelizada por João. Pelo contrário: Característico para o relato joanino da paixão é o fato de o acontecimento ser apresentado em forma de contraste: Jesus é aquele que foi entregue à sua sorte, mas é também o agente de seu destino (Jesus ist der Ausgelieferte und doch der Handelnde). Ele, que com razão é chamado de rei (sc. por Pilatos, através da fixação do título na cruz, mesmo querendo, com isto, transformá-lo num rei de paródia), morreu nu. Seu trono é a cruz. É só a fé que pode falar aqui do vitória, que pode ver aqui a consumação, porém uma fé que não enfeita a realidade, mas que aprende a vê-!a de uma forma nova a partir de Deus e de Jesus. É para isto que o evangelista quer encorajar sua comunidade (Track, p. 233; o acréscimo explicativo entre parênteses é meu). É através desse contraste que João consegue mostrar que a paixão é, em última análise, ação (se. de Jesus; Roloff, p. 182). Também na cena narrada nos vv. 25-27, envolvendo as mulheres ao pé da cruz e a figura um tanto enigmática do discípulo amado, transparece a iniciativa de Jesus: Qualquer que seja o significado mais profundo ou alegórico dessa cena (há comentadores que afirmam que a mãe de Jesus corporifica os cristãos provindos do judaísmo e o discípulo amado, os do paganismo — assim, p.ex., Schulz, p. 235), certo é que aí Jesus assume responsabilidade e toma providências para que haja comunhão entre seus seguidores após sua partida (Roloff, p. 182; Track, p. 246; cf. tb. Lutz, pp. 154s). Também nos vv. 28ss transparece claramente a iniciativa de Jesus em meio à passividade: Jesus diz que tem sede somente para que se cumpra a Escritura, para que se cumpra a última das condições previstas para a consumação de sua obra.

Porém esse outro lado da moeda, indubitavelmente presente nas linhas e entrelinhas do relato joanino, não nos deve fazer perder do vista a especificidade de sua compreensão da paixão: Para João, a morte da cruz de Jesus é a vitória sobre o mundo e, com isto, sua elevação para o céu! Não se trata, porém, de uma espiritualização (Verflüchtingung) gnóstica, pois em nenhum outro evangelho a história da Páscoa é narrada de modo tão realista como em João, mas justamente os acontecimentos da paixão em Jerusalém são... interpretados na linguagem do triunfo: A morte de cruz como partir (14.3, p. ex) transforma-se na revelação do Deus que caminha sobre a terra em figura humana (Schulz, p. 237s). Não cremos, contudo, que se possa acusar a cristologia de João de ser simplesmente uma forma de theologia gloriae. A especificidade da estaurologia joanina, isto é, de sua doutrina da cruz, consiste em sua íntima vinculação com a ressurreição de Jesus, por um lado, e com o evento da encarnação do Verbo, por outro. Sua contribuição para a interpretação da cruz consiste na radicalidade com a qual ele a vê em conjunto com a missão e a atuação de Jesus. Para ele (se. João), a cruz não é um acontecimento salvífico autónomo, mas sim o ponto da história em que se manifestou definitivamente quem era Jesus — a saber, o homem que se manteve inabalavelmente fiel à vontade de Deus até o fim, e, ao mesmo tempo, a cruz é o acontecimento através do qual o fruto de sua obra entrou em vigor para todos os tempos, a saber, o amor com o qual ele amou os seus que estavam no mundo até o fim (13.1) (Roloff, p. 183).

Escopo: Jesus é vencedor — também e justamente em sua paixão. Ela, também e justamente ela, faz parte da revelação do triunfo do amor de Deus em meio a um mundo irredento. Este traço específico da compreensão joanina da crucificação de Jesus não deve ser abandonado, mas sim relacionado com a paixão do mundo em suas diversas formas e tornado frutífero para ajudar a determinar a maneira como lidamos com o sofrimento. É o que tentaremos esboçar no próximo pronto.

Ill

Se Jesus é vencedor também e justamente em sua paixão, o que quer dizer isto para os sofredores? É claro que o pregador não poderá pretender abordar o significado libertador da cruz de Jesus, à luz do relato joanino, para todas as formas de sofrimento mencionadas acima ou para outras ainda. Ou ele opta por concentrar-se em uma ou em algumas formas de sofrimento que lhe pareçam mais relevantes com vistas à situação específica de sua comunidade e de nos-sa sociedade, ou ele tenta, sem deixar de referir-se ao contexto maior e menor em que vivemos, descrever e ilustrar algo assim como uma atitude fundamental em relação ao sofrimento em sua pluriformidade.

Qual é o cerne da mensagem de nosso texto para os sofredores?

João mesmo dá uma resposta sucinta ao fazer Jesus dizer aos seus: No mundo passais por aflições; mas tende bom ânimo, eu venci o mundo (16.33). Em outras palavras: Se o crucificado é o vencedor também e justamente em sua paixão, então abre-se, para todos os que sofrem no mundo, a possibilidade de comunhão com Deus através de Jesus, também e justamente em meio aos seus sofrimentos, por mais diversos que sejam em sua forma e grau. Em outras palavras ainda: Quem reconhece em Jesus o enviado do Pai já passou da morte para a vida (cf. 5.24), apesar dos pesares.

Jesus venceu o mundo (isto é, tudo aquilo que se opõe a Deus, ao amor e à plenitude de vida que ele quer dar aos homens e que ele quer que reine entre os homens) através de sua fidelidade consequente para com o Pai e a missão revelatória que este lhe dera. Para quem reconhece no Jesus crucificado o Verbo feito carne, que assumiu nossa condição humana com todas as suas vicissitudes e a transformou em meio de revelação da glória de Deus em meio à paixão do mundo, abre-se a possibilidade de uma atitude fundamental, na qual ou através da qual — em meio ao sofrimento, apesar dele e também contra ele — se pode crer contra a descrença, amar contra a alienação e esperar contra a esperança (cf. para isto J. Moltmann, Perspektiven der Theologie, p. 49ss). Para quem reconhece no Jesus crucificado o enviado do Pai, isto é, para quem aceita o Evangelho, a oferta e a promessa de vida que ele contém (cf. Jo 20.30s), abre-se a possibilidade de entrar ou de permanecer em comunhão com o Deus mediatizado por Jesus também e justamente em meio às aflições (isto é, ao sofrimento em suas diversas formas) por que passamos no mundo, também e justamente quando experimentamos aquilo que o Salmo 23 chama de andar pelo vale da sombra da morte. Porque Jesus é vencedor também e justamente por meio de sua paixão, por causa do está consumado de Jo 19.30, podemos crer, esperar e amar em meio à paixão do mundo com a certeza de que, assim, já estamos participando (escatologia presente, outro traço característico da teologia de João), ainda que de forma fragmentária e sujeita a toda sorte de tribulações, e de que participaremos definitivamente da vitória de Jesus.

Essa certeza, na medida em que é autêntica, se traduzirá numa atitude de combate às causas (erradicáveis ou, pelo menos, atenuáveis) do sofrimento humano e de solidariedade ativa para com os sofredores. Participar da vitória de Jesus sobre o mundo (está consumado) por meio da fé e da esperança significa, ao mesmo tempo, aceitar seu mandamento do amor (cf. Jo 15.12, p.ex), significa participar do testemunho do amor de Deus ao mundo, revelado no envio e na cruz/exaltação de Jesus, significa contribuir para que a missão de Jesus atinja seu alvo de proporcionar vida em abundância (cf. Jo 10.10).

Que significa a paixão de Cristo para a paixão do mundo, para o sofrimento que continua apesar do está consumado de Jo 19. 30?

Reconhecer na cruz de Jesus o triunfo do amor de Deus significa ser chamado a crer, esperar e amar em meio ao sofrimento ainda persistente. Jesus — também o Jesus tão divino da versão de João — não foi simplesmente, um santo milagreiro, não curou todos os doentes de sua época nem erradicou o sofrimento de seu mundo, Jesus não transformou o mundo e resolveu seus problemas por um toque de mágica ou através da violência. Jesus também não veio para apoiar os poderosos e confirmar os piedosos, mas sim para comunicar o amor de Deus a todos, preferencialmente aos pecadores, pobres e sofredores, aos marginalizados pela religião e pela sociedade de sua época. Jesus não veio para implantar o reino de Deus (= vida em abundância) pela mágica ou pela violência, mas sim para transformar as pessoas e, ao mesmo tempo, as relações entre as pessoas e, por este mesmo fato, os modelos de convivência e as estruturas da sociedade. Neste sentido, o documento Nossa responsabilidade social diz com acerto e com fidelidade criativa em relação à teologia da cruz tão cara à nossa tradição confessional: Em sua cruz confessamos a ação de Deus... Por isso também hoje não conseguimos ver Deus no progresso, mas sim naqueles que são por ele triturados, não no poder, mas naqueles que são por ele abatidos, não no dinheiro, mas naqueles que não têm como comprar o elementar para suas vidas... Somos chamados a tomar partido: Queremos subir na vida ou descer à cruz de nosso semelhante? Queremos nos unir ao círculo dos interessados em si mesmos ou dar as mãos para viver o amor de Cristo? (in: G. Burger ed., Quem assume esta tarefa?, p. 44s).

Para João, a assunção da cruz por Jesus significa sua elevação, sua exaltação, sua glorificação. Para nós, testemunhar essa glória de Deus significa, a partir da cruz de Jesus e de seu significado libertador para a paixão do mundo, descer, de alguma maneira (a prédica poderia mencionar exemplos concretos), à cruz de nosso semelhante, também à cruz da maioria de nosso povo, sujeito a toda sorte de carências decorrentes do modo de convivência e do modelo de sociedade imperantes entre nós. Esta é uma das formas de corresponder ao significado da paixão de Cristo em meio à multiforme e maciça paixão de nosso mundo, uma forma que o próprio Evangelho nos exige e que o contexto em que vivemos nos sugere como prioritária.

IV

Quanto aos subsídios litúrgicos. tomo a liberdade de remeter o leitor às sugestões feitas por Milton Schwantes no vol. IX de Proclamar Libertação (p. 206). O fato de elas continuarem válidas também para este ano é um indício evidente de que nem tudo está consumado neste nosso mundo irredento.

Bibliografia

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- CONZELMANN, H./LINDEMANN, A. Arbeitsbuch zum Neuen Testament. 6. ed. Tübingen, 1982.
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- HOFFMANN, A. Meditação sobre João 19.16-30. In: Proclamar Libertação, v. 4, São Leopoldo, 1978.
- HOWALD, M./NEIDHART, W. Meditação sobre João 19.16-30. In: Predigtsduin für das Kirchenjahr 1972/73, v. 1, tomo 1. Stuttgart, 1972.
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- LUTZ, P. Meditação sobre João 19.16-30. In: Für Arbeit und Besinnung. v. 8 cad. 7. Stuttgart, 1954.
- ROLOFF, J. Meditação sobre João 19.16-30. In: Calwer Predigthilfen.M. 11. Stuttgart, 1972.
- SCHULZ, S. Das Evangelium nach Johannes.ln: Das Neue Testament Deutsch. V. 4. Goettingen, 1972.
- TRACK, J J. Meditação sobre João 19.16-30. In: Neue Calwer Predighilfen. v. 1A Stuttgart 1978.


 


Autor(a): Luís Marcos Sander
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Sexta da Paixão

Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 19 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 30
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1984 / Volume: 10
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13268
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Senhor, tu és bom e compassivo, abundante em benignidade para com todos os que te invocam.
Salmo 86.5
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