João 19.16-30

Auxílio Homilético

13/04/1979

Prédica: João 19.16-30
Autor: Arzemiro Hoffmann
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 13/04/1979
Proclamar Libertação - Volume: IV


I — A situação contextual

A presente perícope situa-se no contexto mais amplo dos acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Jesus.

Desde Jo 11. 53 ele já estava sob a sentença de morte. Por isso. Jesus planejou de tal maneira as suas atividades que a maldade do homem tivesse maior oportunidade de se manifestar. Ele tem consciência de que é o Filho de Deus e do seu envio a fim de cumprir um plano estabelecido pelo Pai. Possui consciência de tudo o que a seu respeito está escrito e deve ser cumprido, pois ele e o Pai são um. Assim também pode exclamar em Jo 17.1: Pai, é chegada a minha hora de passar deste mundo para a eternidade.

Do outro lado, encontramos igualmente um plano bem elaborado para tirar a vida de Cristo. Este plano previa algumas medidas criteriosamente planejadas pelas autoridades religiosas, certamente lideradas pelo grupo dos saduceus colaboracionistas.

A primeira medida previa a condenação de Jesus perante o tribunal religioso. Os argumentos para lograr esse êxito constavam de violência, fraude e uso de sua própria palavra contra ele. A conclusão baseada em Lv 24.16 era clara: Crime de blasfémia deve ser castigado com pena máxima, qual seja, apedrejamento fora do arraial.

Essa sentença não foi consumada porque os romanos tinham cassado ao Sinédrio o direito sobre vida e morte. Por isso necessitavam levar o caso perante o tribunal civil. Perante esse tribunal, as medidas previstas para obter a condenação de Jesus constavam de acusações de atividades de subversão política, perturbação da ordem e dos costumes do povo e oposição aberta a César porque a si mesmo se declarava rei Jo 18.28-37 par.).

Pilatos após a análise do caso declarou reiteradas vezes que não achava nele crime algum passivo de morte, dispondo-se inclusive a falar em favor de sua libertação e inocência. No entanto, o entregou para ser crucificado. Como se explica tamanha incoerência?

O povo judeu apelou para os sentimentos e o status político de Pilatos, começando a pressioná-lo: Se soltas este não és amigo de César! Todo aquele que se faz rei opõe-se a César (Jo 19.12). Tal é a manifestação irracional dos judeus que negam uma de suas mais pertinentes convicções de fé - Javé é Rei - em favor de sua submissão a César - Não temos Rei senão César!.

Todo esse comportamento cheio de malícias e injustiças chega ao desfecho com o v.16, que resume esse doloroso desenlace carregado de injustiça, ódio, traição, violência, entrando, sem grandes descrições, no processo que se inicia com a peregrinação ao Calvário, rumo à crucifixão e morte de Jesus.

A perícope seguinte traz a continuação natural dos acontecimentos com respeito ao sepultamento e à ressurreição de Cristo.

Portanto, estamos tratando de uma porção das Escrituras integrada num grande contexto e que não pode ser vista como algo isolado.

II — Considerações exegéticas

A tradução do presente texto não oferece problemas especiais que afetam a essência da mensagem, razão porque não apresento aqui uma tradução alternativa. A tradução da Bíblia de Jerusalém me parece ser um pouco mais explicita que a de Almeida.

Os eventos da paixão e morte de Jesus são aqui relatados com ioda a realidade e crueza João concentra toda sua atenção na pessoa de Jesus, o Cordeiro de Deus. deixando de fazer qualquer alusão aos dois outros condenados que são apresentados laconicamente como outros dois, um de cada lado (v. 18). Os sinóticos relatam todo escárnio dos soldados para com o Rei dos Judeus. No entanto os relatos dos evangelhos deixam clara que os acontecimentos finais, como todos os outros, referentes a vida de Jesus, estão seguindo passo a passo a preordenação, de Deus, detalhada nas profecias messiânicas.

V.16: Este versículo apresenta a conclusão do julgamento injusto. Ao último apelo de Pilatos, as autoridades religiosas respon¬dem negativamente. Cristo foi julgado e executado imediatamente após a sua condenação, contrariando os próprios princípios do Sinédrio que reservam a condenação somente para um dia após o pronunciamento da sentença sobre alguém. Nota-se a ausência do povo humilde que seguia Jesus. Talvez nem tinham tomado conheci¬mento do processo de sua execução, dado a rapidez com que a iniquidade se manifestou.

Vv. 17-22: Deus havia entregue o seu Filho Unigênito (Jo 3.16) ao seu povo, mas os seus não o receberam (Jo 1.12) e o entregaram a Pilatos. Pilatos o entrega às autoridades judaicas e eles, nesse vaivém infernal, o entregam aos soldados romanos para procederem a sua execução.

Jesus carregou a sua própria cruz, assim como havia ensinado. Ele não ofereceu resistência, mas entregou-se aos mais humilhantes degraus do desprezo e do escárnio (Fp 2.7-8). Seguiu sem que a sua voz se fizesse ouvir, cumprindo cabalmente o que a seu respeito constava, como servo sofredor (Is 53.7). Ele sabe-se Cordeiro de Deus que tem o seu sacrifício preordenado para tirar o pecado do mundo. Ele assume o salário do pecado, para que possa conceder o dom da vida eterna (Rm 6.23). Os seus sofrimentos na cruz aqui não recebem grandes descrições, certamente por serem conhecidos de todos na época. João não fala da reação dos crucificados frente a Jesus. No alto da cruz Pilatos manda colocar uma inscrição, que é uma verdadeira agressão aos judeus, cujas autoridades querem que este título seja removido. Pilatos não cede ao pedido. Quanto ao título colocado por Pilatos, há pequenas divergências entre João e os sinóticos. Uma coisa central é apontada, no entanto, unanimemente: Jesus foi crucificado como Rei dos Judeus. O fato de a inscrição constar nos três idiomas mais usados da época, caracteriza o sentido messiânico do reino de Cristo.

Vv. 23-24: Aos pés da cruz, como que indiferentes a tudo o que se passa nesse lugar da Caveira, os soldados repartem entre si a única propriedade do peregrino de Nazaré: suas vestes. Repartin¬do e sorteando os despojos de maneira tão natural, os soldados agem fielmente conforme a profecia messiânica do Sl 22,18.

Vv. 25-27: A pouca distância da cruz, como testemunhas, se encontram apenas algumas mulheres ligadas a família de Jesus e o discípulo amado. Jesus ressalta a presença de sua mãe. Era viúva, com todas as dificuldades que isto acarretava. Ele não tem testamento a fazer, pois a única propriedade já não mais lhe pertencia. À sua mãe só resta uma realidade: Mulher, eis aí o teu filho. Possivelmente estas palavras foram a espada que atravessou o coração de Maria (Lc 2.35). Ele a confia aos cuidados do discípulo amado.

Vv. 28-30: Aquele que oferecera a água da vida em abundância, agora nos instantes finais de sua vida terrena e humana sente sede. E nesta sede fatal do abandono de Deus exclama: Tenho sede!. É a sede de Deus que o vinagre não apaga. Ela recebe a sua coroação, por ser expressão não de sofrimentos físicos, embora horríveis, nem de sua rejeição pelos homens, mas de sua rejeição por Deus. Não podemos imaginar o que isso significou para Jesus.

A seguir expressa a palavra que marca o cumprimento perfeito de sua missão: Está consumado!. Ele cumpriu em detalhes o que a seu respeito estava escrito, não assumindo apenas a nossa condição humana, mas também a nossa iniquidade. O castigo que nos traz a paz recaiu sobre ele. A palavra TELOS, do grego, significa tanto ter chegado ao fim, como ter alcançado o alvo.

Ele escolhe o instante final para entregar o seu espírito ao Pai, de quem procedem todas as boas cousas (Jo 3.27). Nisto o final de sua vida se distingue dos homens. Ninguém lhe tirou a vida; ele a entregou voluntariamente ao Pai. Este grito de entrega do espírito é igualmente o grito do triunfo. Ele tinha realizado a missão pela qual veio a este mundo. Tinha conseguido a vida eterna para todos que nele cressem.

Creio que não é um exagero dizer que a figura central da Bíblia é Jesus Cristo, e que o aspecto central de sua carreira, tal como é mostrado, foi sua morte. A cruz, por assim dizer, é o acontecimento pivô em toda história (Stott).

III — Meditação e mensagem

A mensagem da cruz e do Calvário envolve também muito sentimento. Devemos cuidar para não cair em um de dois extremos: a racionalização e o sentimentalismo. As Escrituras nos apresentam o cenário com toda realidade mostrando um quadro cheio de sarcasmo e injustiças, como de sentimento, dor e sofrimento diante do assassinato cruel de um homem de meia idade, cujo crime foi declarar-se abertamente Filho de Deus.
Alguns aspectos me parecem importantes para a compreensão da cruz de Cristo:

1. Jesus vai, como a seu respeito estava escrito nos profetas. Sua morte não era algo acidental, mas enquadrava-se no plano universal traçado por Deus para expiar o pecado do mundo definitivamente, mediante o seu oferecimento como Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Jesus estava muito consciente desse plano, mesmo que a obediência lhe custasse até suor de sangue.

Cabem duas observações quanto ao seu comportamento:

a) Jesus crucificado morreu como exemplo. Ele encarnou e exemplificou coerentemente o Sermão da Montanha. Não era pecador nem possuía malícia. Quando insultado não se vingou; quando sofreu não pronunciou nenhuma ameaça. Simplesmente entregou-se nas mãos do Justo Juiz. Nas palavras de Pedro que o acompanhou de perto: pois que também Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes os seus passos (1 Pe 2.21).

b) Cristo morreu para carregar os nossos pecados. A sua obra no plano de Deus é única e constitui o centro da mensagem cristã. Não bastava um exemplo, era necessário um Salvador. O Filho de Deus identificou-se a si mesmo com os pecados dos homens. Não somente se fez carne no ventre de Maria; também foi feito pecado na cruz do Calvário. Ele foi oferecido uma vez para sempre para tirar os pecados de muitos (Hb 9.27). Carregando ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados (1 Pe 2.24).

Pode-se dizer que ele morreu a nossa morte a fim de que nós possamos viver a sua vida, quando em arrependimento e fé aceitarmos pessoalmente este fato.

2. Sem a compreensão da seriedade das consequências do pecado é impossível achar o sentido salvífico da cruz. O homem que se revolta contra o criador, individual ou coletivamente, está entregue a si mesmo e todo produto de sua ação é caracterizado pela injustiça, loucura e degeneração (Rm 1.8-32). O resultado disso é uma desarmonia que faz todo cosmos e as criaturas em particular gemerem (Rm 8.18-25).

A obra de Cristo no Calvário é um triunfo que inicia o processo da reconciliação de todas as coisas (2 Co 5.18ss), restabelecendo a ordem da criação, que está destinada a se cumprir a partir de sua Igreja, primícias da era vindoura. A Igreja não é o Reino de Deus, mas é o setor da humanidade onde se experimentam as bênçãos da nova era, incluindo a salvação dos poderes de destruição (Padilha). Portanto, a salvação que o Evangelho proclama não se limita à reconciliação do homem com Deus: abrange a reconstrução total do homem em todas as dimensões do seu ser; tem que ver com a recuperação de todo homem ao propósito original de Deus para sua criação (Padilla).

3. Os acontecimentos da paixão, morte e ressurreição de Cristo devem constantemente questionar o nosso estilo de vida. Pessoalmente quero me referir a alguns desses aspectos, que julgo essenciais para a compreensão do Evangelho.

O ministério de Jesus caracteriza-se peia sua solidariedade com os pecadores, desde os acontecimentos do batismo até a sua crucificação e morte. Aos sedentos pela vida eterna ele era a resposta. No final de sua vida terrena exclama Tenho sede, para que ninguém mais precise gritar a angústia da sede de Deus: As portas da eternidade se abriram definitivamente.

Você já se deteve em pensar alguma vez, por que a justiça de Deus foi tão severa em Cristo? Já superou o dilema da justiça e do amor de Deus, ou ainda persiste um conflito?

Uma consideração pastoral: A vida que levo como pastor ou mensageiro de Cristo faz jus à sua obra na Cruz? Pela maneira como prego e vivo, e pela maneira como vive a comunidade, teria havido necessidade de Jesus se sacrificar na Cruz? Em última análise, honramos a justiça e a graça de Deus?

Enfim, de Cristo o que restou foi a sua cruz. Só a cruz dá sentido à esperança, ao amor, à justiça, à vida.

Cremos realmente que a história de Deus perpassa as injustiças deste mundo, mesmo que os seus seguidores sejam afastados, por muitos motivos, do centro de influência que dirige a era presente? Eis a loucura da cruz! Será verdade que os fatos relacionados com as injustiças do mundo atual são tão decisivos para o reinado messiânico que irromperá, como os que se sucede¬ram na Jerusalém de então? Cremos realmente que Deus faz a sua história e que o seu Cristo será entronizado como Rei dos Reis que receberá as nações por herança (Sl 2), apesar da perseguição sistemática que os seus eleitos sofrem, numa revolta irracional e internacional?

IV — Bibliografia

- DE BOOR, W. Das Evangelium des Johannes. Wuppertal. 1975
- PADILLA, C. R. El Evangelio hoy. Buenos Aires. 1975
- SIEMENS. R Jesus, o revolucionário permanente. São Paulo. 1972.
- RYLE. J. C. Evangelho Segundo João. São Paulo, 1957
- STOTT, .1 R W. Cristianismo Básico. São Paulo, 1964.


 


Autor(a): Arzemiro Hoffmann
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Sexta da Paixão

Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 19 / Versículo Inicial: 16 / Versículo Final: 30
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1979 / Volume: 4
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 13259
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