João 19.13-30
Martim Lutero
Ouvindo Pilatos estas palavras, trouxe Jesus para fora e sentou-se no tribunal, no lugar chamado Pavimento, no hebraico Gábata. E era a véspera pascal, cerca da hora sexta; e disse aos judeus: Eis aqui o vosso rei. Eles, porém, clamavam: Fora! Fora! Crucifica-o! Disse-lhes Pilatos: Hei de crucificar o vosso rei? Responderam os principais sacerdotes: Não temos rei, senão César! Então Pilatos o entregou para ser crucificado.
Tomaram, eles, pois, a Jesus; e ele próprio, carregando a sua cruz, saiu para o lugar chamado Calvário, Gólgota em hebraico, onde o crucificaram, e com ele outros dois, um de cada lado, e Jesus no meio. Pilatos escreveu também um Nulo e o colocou no cimo da cruz; o que estava escrito era: JESUS NAZARENO, O REI DOS JUDEUS. Muitos judeus leram este título, porque o lugar em que Jesus fora crucificado era perto da cidade; e estava escrito em hebraico, latim e grego. Os principais sacerdotes diziam a Pilatos: Não escrevas: Rei dos judeus, e, sim, que ele disse: Sou o rei dos judeus. Respondeu Pilatos: O que escrevi, escrevi.
Os soldados, pois, quando crucificaram a Jesus, tomaram-lhe as vestes e fizeram quatro partes, para cada soldado uma parte; e a túnica. A túnica, porém, era sem costura, toda tecida de alto a baixo. Disseram, pois, uns aos outros: Não a rasguemos, mas lancemos sortes sobre ela para ver a quem caberá - para se cumprir a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes. - Assim, pois, fizeram os soldados.
E junto à cruz estavam a mãe de Jesus, a irmã dela, e Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena. Vendo Jesus sua mãe, e junto a ela o discípulo amado, disse: Mulher, eis aí o teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. Dessa hora em diante o discípulo a tomou para casa.
Depois, vendo Jesus que tudo já estava consumado, para se cumprir a Escritura, disse: Tenho sede! Estava ali um vaso cheio de vinagre. Embeberam de vinagre uma esponja e, fixando-a num caniço de hissopo, lha chegaram à boca. Quando, pois, Jesus tomou o vinagre, disse: está consumado! E inclinando a cabeça, rendeu o espírito.
Hoje se comemora o evento da paixão e da morte de nosso Senhor Jesus Cristo, assim como o confessamos em nosso Credo, ao dizermos: ¨Creio em Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nosso Senhor...padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado¨. Pois contanto que os cristãos constantemente devem pregar, rememorar e meditar a paixão e a morte de Cristo, este dia foi destinado à proclamação da paixão de Cristo, de modo especial, visto que tudo o que Cristo sofreu no jardim, na casa do sumo sacerdote Caifás, perante o governador Pilatos, perante o tribunal e na própria cruz - aconteceu neste dia.
Eis o que os evangelistas escrevem, com unanimidade, ao relatarem a paixão de Cristo: Tais coisas aconteceram para que se cumprissem as Escrituras dos profetas. Pois tudo o que Cristo sofreu, aconteceu por causa da Sagrada Escritura. Assim os evangelistas não descrevem apenas como foi a paixão do Senhor, mas repetem seguidamente estas palavras: ¨Isso aconteceu para que se cumprisse a Escritura¨, assim como se quisessem dizer-nos: Consultem os profetas acerca de tudo isso, eles lhes dirão por que Cristo sofreu. Grande e grave é a sua paixão, seu martírio, sua cruz; mas grande é também seu amor e carinho, sim, sua mais sublime graça para conosco, já que o justo Senhor e Salvador, através de sua paixão e de sua morte, cumpriu a Sagrada Escritura por nossa causa.
Assim está escrito em Gênesis 3.15: ¨Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar¨. Esta palavra, Cristo teve de ouvir ao tempo de sua paixão; ela lhe tocou o coração, foi uma prédica para ele. Pois ele havia chegado à hora em que deveria de ferir a cabeça da serpente - não daquela que rasteja pelo capim e que come sapos, mas da antiga serpente, o diabo. E deveria fazê-lo, não com o pé, nem por meio de espada ou arma, mas através de seu corpo e de sua vida, deixando que o diabo o pisasse com os pés e que sobre ele derramasse toda a sua ira e todo o seu furor. Com isso ele pisa e esmaga o diabo, para que nós tivéssemos sossego e paz da parte dele.
Ao ser pisada e esmagada a cabeça da serpente, acabou-se a vida dela, é o seu fim. E visto Cristo ter pisado a cabeça da antiga serpente, a saber, do diabo, este perdeu sua força e seu poder. Em relação a nós, o diabo permanece diabo, e o mundo permanece mundo. Mesmo assim, porém, o diabo teve a cabeça esmagada, e Cristo lhe destruiu o reino da morte, do pecado e do inferno, tirando-lhe o poder.
Digo-lhes: foi esta palavra que Cristo fitou, ao sofrer, dizendo: Essa é a hora na qual deverei pisar a cabeça do diabo e na qual ele me deverá ferir o calcanhar. Isso eu devo e quero sofrer. Tais coisas ele suportou no dia de páscoa dos judeus, comemorando, assim, a páscoa de modo correto, e destruindo, por seu sofrimento, o reino do diabo, de modo que agora passou a ter poder sobre o diabo. Ao pronunciar uma única palavra, Cristo faz desaparecer o diabo com seu reino de morte, pecado e inferno. Quem crer em Cristo, deverá ter a certeza de que nem pecado nem morte nem diabo nem inferno lhe poderão fazer mal algum.
Esta, por sua vez, é a parte mais elevada e sublime na Paixão: Cristo sofreu por amor a seu Pai celeste, a nosso serviço e em nosso benefício - para que se cumprisse a Escritura. Será bom refletirmos sobre a natureza da redenção com a qual Cristo nos redimiu, a saber, que não foi redenção do Egito, nem foi redenção eterna, mas que foi redenção eterna de pecado, morte e inferno. Igualmente será bom olharmos e refletirmos qual seja o pagamento efetuado por nosso pecado, a saber, que Cristo por nós não deu nem ouro nem prata, mas sim, seu corpo e sua vida. Assim como Paulo seguidamente enaltece o fato de Cristo se ter dado a si mesmo por nossos pecados (Gálatas 1.4; Efésios 5.2; Tito 2.14), devemos tomar em consideração a profundidade do sofrimento que Cristo assumiu por nós, lembrando como foi duro para ele verter suor sangrento, ser coroado, ludibriado, cuspido, chicoteado, pregado à cruz e ferido à espada - tudo por nossa causa.
Mas essa é a parte mais alta e sublime: Cristo teve de sofrer para que por ele a Escritura fosse cumprida. Devemos olhar e considerar diligentemente este fato a fim de não só reconhecermos a grandeza da redenção, do resgate e da paixão, mas para que reconheçamos o coração de Cristo, o Senhor, bem como sua amorosa vontade em relação a nós. Que reconheçamos como seu coração foi bem intencionado para conosco, como foi grande o amor e o carinho que levaram a dar-se a si mesmo por nós. Por tal motivo também de nossa parte devemos amar a ambos - a Cristo, que passou tal sofrimento por nós, e ao Pai celeste, que lho impôs e que lho ordenou. Tal amor deverá produzir o conhecimento de sua intenção para conosco, pela qual ele assume tal sofrimento, padecendo por nós. E o coração de uma pessoa que não se deixar mover e enternecer por isso, deve ser mais duro do que pedra, sim, mais duro do que ferro e aço.
Apesar disso o caro e nobre mundo segue seu caminho sem tomar estas coisas a sério, continua sendo lerdo, frio, ingrato, e despreza tal tesouro sublime. E por tal motivo que o Senhor nosso Deus os vai entregando, sendo que assim mais e mais se afastam dele. E o Senhor nosso Deus faz o que é justo, dizendo ao mundo ingrato: Se não quiser aceitar o grande amor revelado pelo fato de eu o ter visitado de forma paternal e cordial, tendo submetido meu Filho amado a tão grande sofrimento por sua causa - pois bem; da mesma forma também ou não o quero aceitar. Se não lhe importa o que eu fiz, tampouco eu me importo de você. Se não quiser meu Filho Jesus Cristo, tome em seu lugar Barrabás, sim, tome o próprio diabo. E ele realmente entrega o mundo - aos sectários, aos falsos mestres, à altivez, etc.
E tais coisas não nos deverão admirar. Quem o poderá levar a mal ao Senhor nossa Deus? Ele lhe dá seu Filho, este empata seu corpo e seu sangue por você para o salvar da morte e do inferno. E você não só quer deixar de valorizar aquilo, mas até intenciona difamá-lo, em retribuição a tal graça e tal amor. Aí ele trata a você como merece, dizendo-lhe: Se você quiser isso mesmo, nobre criatura que é, então vá por seu caminho, vá mesmo ao carrasco. Considerando como os homens são ingratos, como deixam de alegrar-se em Cristo, não admira Deus ficar irado e entregar o mundo ao seu destino. Pois quem não puder nem quiser aceitar o amor e a amizade de Cristo, este bem que se encaminhe ao diabo e se transforme em diabo. Quem é capaz de conter o mundo?
Mas não se prega a Paixão com a finalidade de que as pessoas se tornem ingratas, mas antes com a intenção de fazê-las reconhecer o grande amor do Pai celeste, e de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, amor demonstrado a nós, os homens, e cuja finalidade é a de fazer-nos amar o Pai e o Filho. Pois quem crer de coração no quanto Cristo padeceu por ele, este não será um velhaco ingrato, mas ele haverá de amar a Cristo de coração. Se alguém me socorresse em perigo mortal, sendo eu angustiado por incêndio ou por enchente, se arriscasse corpo e vida por amor a mim, aí eu realmente seria velhaco, se não passasse a amá-lo. Acontece que por pouco dinheiro amamos uma pessoa que nos dá ou empresta uma importância. Que faremos quando nos é dado o Filho de Deus, que por nossa causa entrou no domínio do pecado, da morte e do inferno? Sendo assim, não deveríamos nós agir da mesma forma, dizendo: O meu Senhor Jesus Cristo sofreu estas coisas por mim. Por essa razão eu também quero amá-lo; de boa vontade quero pregar, ouvir e crer a sua palavra, seguindo-lhe obediência.
Se não fizermos isso seremos mil vezes mais malvados do que os filhos do mundo. Pois estes nada sabem desta graça: nós, porém, sabemos, e contudo somos ingratos, não nos lembrando de que fomos remidos por Crista de pecado e morte. Ele nos diz: Nem pecado nem morte vai prejudicá-los, porque por minha morte conquistei eterna redenção para vocês.
Portanto deveremos aprender a Paixão de Cristo de tal forma que saibamos que ela aconteceu em nosso favor, que não tenhamos este sofrimento por outra coisa a não ser por ajuda eternamente válida. Seu suor sangrento, sua angústia que o assaltou de noite, e sua cruz - deverei interpretá-los desta forma, dizendo: Esse é meu auxílio, minha força, minha vida, minha alegria. Pois tudo isso aconteceu para que dele tenhamos fruto e proveito e para que creiamos que tenha acontecido em nosso favor, e a fim de que lhe agradeçamos de coração. Quem praticar isso, fazendo uso da Paixão de Cristo, esse é cristão.
Cristo nos demonstrou tão grande benefício para que jamais nos esqueçamos dele, mas que constantemente lhe agradeçamos, consolando-nos por ele e dizendo: Sua dor é meu conforto, suas chagas são minha salvação, seu castigo é minha redenção, sua morte é minha vida. Ninguém o poderá pregar suficientemente, ninguém poderá admirar-se que chega do fato de uma pessoa tão elevada ter descido do céu, ter tomado o nosso lugar e ter sofrido a morte por nós. Fomos visitados de forma assaz benigna, fomos comprados por preço suficientemente elevado. Se nos acontecer algum mal - se, por exemplo, vamos sendo seduzidos ou atormentados de outra forma, então culpemos nossa ingratidão: A todos acontece o que merecem, quando Deus os entrega daquela forma. Pois ao rejeitarem tal consolo rico e eterno, cedendo ao seu capricho malvado, merecidamente lhes acontece o que lhes está destinado, e assim eles vão sendo levados. Nós, porém, deveremos agarrar-nos ao fiel Salvador e ao justo Senhor Jesus Cristo, que foi crucificado e que morreu por nossos pecados. Para isso nos valha o gracioso Deus.
Amém.
10 Sermões sobre o Credo - Martim Lutero
Prefácio de Lindolfo Weingärtner
O Primeiro Artigo do Credo Apostólico
O Segundo Artigo do Credo Apostólico
Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13