Prédica: João 14.8-17(25-27)
Leituras: Salmo 104.24-34,35b e Romanos 8.14-17
Autoria: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 9 de junho de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Consolo na despedida
1. Introdução
Três mundos se encontram no texto de João 14.8-17, a saber: o dia de Pentecostes; o Evangelho de João; e os versículos do capítulo 14 do evangelho. Pregar sobre o Evangelho de João, especialmente sobre o capítulo 14, já é um desafio. Esse desafio se torna ainda mais emblemático ao considerar o dia da pregação no calendário litúrgico. O assunto do Domingo de Pentecostes é o Espírito Santo, mais precisamente, sua vinda.
O presente auxílio não quer passar à margem do desafio da pregação. Vale lembrar que sobre o mesmo texto já há um auxílio homilético, publicado no Proclamar Libertação 34. Para esta edição estão previstas as leituras do texto de Romanos 8.14-17 e do Salmo 104.24-34. Desta vez, não está prevista a leitura de Gênesis 11.1-9. O Salmo 104 exalta a natureza criadora e provedora de Deus. O texto de Romanos destaca a relação de filiação operada pelo Espírito de Deus.
2. Exegese
O evangelho – O quarto evangelho tem sido reconhecido por seu valor teológico. A autoria do evangelho e a relação com a comunidade joanina têm causado controvérsias. O livro costuma ser dividido em quatro partes maiores, a saber: prólogo (1.1-18); livro dos sinais (1.19 – 12.50); livro da glória (13.1 – 20.31); e epílogo (21.1-25) (Brown, 2012, p. 462s).
A estrutura do evangelho é eminentemente teológica. Diferente da estrutura geográfica dos sinóticos, em João predomina uma estrutura biográfica, uma interpretação da pessoa e obra de Jesus. Trata-se do evangelho mais “espiritual” e mais “carnal”, ao mesmo tempo (Konings, 2000, p. 192).
João se distingue dos sinóticos na estrutura geral do evangelho e nos conteúdos comunicados. Enquanto os sinóticos acentuam a atuação de Jesus na Galileia, o quarto evangelho trata deliberadamente de acontecimentos situados na Judeia. Ainda assim, João não menciona acontecimentos importantes, como o batismo, a transfiguração e a cena do Getsêmani. Também não menciona as parábolas presentes nos sinóticos. Em João são narrados apenas sete milagres, embora nesse evangelho não recebam a definição de milagres, mas de sinais. As curas e os exorcismos dos sinóticos também estão ausentes nesse evangelho.
Por outro lado, João narra as bodas de Caná, a visita a Sicar, a cura do filho do oficial do rei, a alimentação da multidão e o sermão sobre o pão da vida. João também se ocupa em detalhar situações que envolvem os líderes da nação judaica. No evangelho também encontramos longos discursos proferidos no templo. Em diferentes passagens que tratam de momentos anteriores à crucificação, Jesus se dirige aos discípulos com advertências e conselhos.
Há nítidas diferenças e intencionalidades naquilo que os sinóticos destacam e João omite (parábolas, transfiguração, instituição da ceia), e naquilo que os sinóticos omitem (Jo 1 – 5: as visitas de Jesus a Jerusalém, ressurreição de Lázaro, declarações do “eu sou”) e João destaca.
A cronologia de João exige em torno de dois anos e meio de atividade pública de Jesus. Na cronologia dos sinóticos, o tempo de ministério de Jesus tem duração pouco superior a um ano. Na escatologia de João, o fim do mundo já irrompeu: Vem a hora e já chegou (4.23). Nos sinóticos, ele é anunciado para o futuro. De alguma maneira, João antecipa o juízo final e a vida eterna para o tempo presente (Beutler, 2016, p. 15).
O texto – O texto de João 14.8-17(25-27) está situado no contexto do livro da glória. A perícope sugerida coloca entre parênteses os versículos 25-27. Embora entre os versículos 18-24 o texto esteja tratando de outro assunto, a negação da orfandade dos discípulos e a relação entre amar e guardar a palavra, não há necessariamente uma continuação do versículo 17 no versículo 25.
Para efeito do presente subsídio, optou-se em delimitar o texto. Aqui será abordado o texto de João 14.8-17. Nessa passagem, iniciada com a pergunta de Felipe, Jesus aproveita a ocasião para falar da oração e guarda dos mandamentos decorrentes da relação de amor desencadeada pela fé. Essa unidade apresenta duas partes. A primeira, dos versículos 8-14, onde Jesus encerra o discurso provocado pela pergunta de Felipe; a segunda, com os versículos 15-17, que introduzem o tema do parakleto, como João denomina o Espírito Santo.
Na perícope podem ser identificadas algumas ideias centrais. A primeira diz respeito à unidade entre Deus Pai e Deus Filho. A revelação do Pai se dá na revelação da pessoa do Filho, Jesus. Para conhecer o Pai é preciso conhecer o Filho. Jesus e o Pai comungam do mesmo projeto de vida e fé. O lugar dos crentes nesse projeto é o mesmo lugar de Jesus. A oração é o elo entre Deus, Jesus e quem crê.
No decorrer dos primeiros versículos do capítulo 14 é chamada a atenção dos discípulos para a importância do crer em Deus e em Jesus. A palavra de Jesus nos versículos 6-7 ilustra essa intencionalidade. A pergunta de Filipe, no versículo 8, abre uma nova perspectiva, a do Pai. Embora Felipe, assim como Tomé havia demonstrado anteriormente, revela a parcialidade de sua compreensão, ele deseja confirmar a fé pela experiência. Para Felipe, a revelação do Pai seria a consumação da revelação. Já não haveria nada mais a ser mostrado. Possivelmente também Felipe estivesse ávido por uma confirmação física, alguma teofania.
Contudo, Jesus lhe mostra o que já era de seu conhecimento. Jesus dá a entender que não houve teofania maior, nem no Antigo Testamento, do que conhecer o Pai na pessoa do Filho. Ver o Pai é mais do que uma experiência visual. É um reconhecimento de seu senhorio. Porém essa experiência de Deus passa pela experiência com Jesus: Quem vê a mim, vê o Pai.
Felipe, assim como Pedro e André, que depois se mudam para Cafarnaum, era natural de Betsaida, pequena cidade pertencente à região governada por Herodes Felipe, localizada onde o rio Jordão deságua no lago da Galileia.
Nos evangelhos sinóticos, Felipe aparece apenas como um dos apóstolos. No Evangelho de João (1.43,46,48; 6.5; 12.21; 14.8), ele aparece como responsável pela conversão de Natanael, pela condução de alguns gregos curiosos até Jesus, e como alguém incapaz de dizer a Jesus como alimentar cinco mil pessoas numa refeição (Champlin, 1982, p. 525).
A pergunta de Jesus no versículo 10 demonstra toda a intimidade entre ele e aquele em nome de quem se manifesta. Possivelmente, o alvo de João tenha sido os judeus incrédulos, que não reconhecem a messianidade de Jesus, muito menos sua divindade. Ainda assim, o recado do texto também alcança todas as pessoas que demonstram alguma dificuldade em compreender o ministério de Jesus.
Jesus explica que as obras e palavras que nele podem ser encontradas são uma consequência de sua relação com o Pai. A união e a unidade de Jesus com o Pai explicam as obras que faz. Palavras e realização são parte do projeto do Reino. O que avaliza a pertença da prática de Jesus ao projeto de Deus são as obras, testemunhadas pelos discípulos (v. 11).
O versículo 12 é introduzido pela expressão solene “em verdade, em verdade vos digo”. Essa expressão destaca a autoridade e chancela a certeza do que está sendo dito. Aqui novamente as obras são destacadas. Depois da intervenção de Jesus, no versículo 9, essa é a terceira vez que Jesus fala de obras (ta erga). Agora, para dizer que quem está na mesma comunhão com Deus fará as obras que Jesus faz e até maiores.
A expressão “porque vou para junto do Pai” parece indicar a tarefa reservada aos discípulos. Justamente por não estar mais entre os discípulos, estes precisam abraçar a causa de Deus revelada em Jesus e avançar para além do próprio mestre. É como se Jesus estivesse passando a bola para seus seguidores.
No versículo 13 é dito: E tudo quanto pedirdes em meu nome eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Aqui duas ideias são comunicadas. A primeira diz respeito à oração e seu atendimento. A segunda diz respeito à glorificação do Pai no Filho. O verbo doxato (glorificar) é empregado por João para se referir à glorificação do Pai por Jesus e para se referir à glorificação de Jesus pelo Pai. Nos dois sentidos, o verbo visa expressar a honra e a exaltação.
A ausência de alguma condição para que o pedido seja atendido mostra o caráter incondicional do pedido. O versículo 14 praticamente repete o que havia sido dito no versículo anterior: Se pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei. Além de reforçar a necessidade de pedir, o texto destaca o atendimento ao pedido. Todo pedido feito em nome de Jesus será atendido. O egō poiēsō (eu farei) é uma declaração explícita de que o pedido feito em nome de Jesus será atendido.
No versículo 15 é retomada a ideia acerca das obras que são realizadas em nome de Jesus. Quem ama guarda os mandamentos. Para João, o amor não consiste num sentimento, mas no resultado da ação do Espírito Santo. Por isso é também fruto do Espírito (Gl 5.22).
O versículo 16 anuncia a presença constante do paracleto. No uso grego do vocábulo, significa advogado. Deriva dos termos gregos para (ao lado de) e kaleō (chamar). O sentido literal do termo é “alguém chamado para ajudar ao lado de outro”, ou seja, o Espírito Santo é outro ajudador (Champlin, 1982, p. 529). O termo também pode ser traduzido por defensor, consolador e conselheiro. Com esse termo, presente somente na literatura joanina (Jo 14.16,26; 15.26; 16.7; 1Jo 2.1), expressa-se o ofício do Espírito Santo. O que o texto diz é que, embora Jesus venha se ausentar da presença dos discípulos, estes não ficarão sozinhos nem desamparados. Pelo contrário, o parakleto/consolador permanecerá com eles e para sempre.
O versículo 17 descreve a natureza desse Espírito. Trata-se do Espírito da verdade (15.26; 16.13) que o mundo não pode receber, ver e conhecer. Ele é Espírito da verdade por ser o Espírito do Pai e do Filho. Espírito de vida (Rm 8.10), santificação (Rm 1.4) e consolo (At 9.31).
3. Meditação
A ocasião – A Páscoa e o Pentecostes estão entre as principais festas do povo judeu. Páscoa era originalmente uma festa dos pastores, que na primavera pediam a bênção das divindades sobre os animais e pastagens. Pentecostes, também denominada de festa da colheita (Êx 23.16) ou festa das semanas (Êx 34.22; Dt 16.9), originalmente era uma festa agrícola celebrada sete semanas depois do início da colheita. “Com o tempo as festas judaicas foram associadas a acontecimentos marcantes da história de Israel. A festa da Páscoa passou a lembrar a saída da escravidão do Egito (Dt 16.1-8). A festa da colheita se tornou a festa da renovação da aliança de Deus com o povo (Dt 16.9-12)” (Nakanose; Marques, 2001, p. 13).
No segundo século antes de Cristo, em ambientes sacerdotais saduceus, a festa de Pentecostes recebeu um novo significado, passando a ser a festa para celebrar o recebimento da Lei no Sinai. Uma prática familiar passa a ser celebrada num ritual no templo, intermediado por um sacerdote. Além disso, somente os judeus puros podiam participar (Dunn, 2000, p. 1.639).
Por intermédio do livro de Atos (2.9-11), sabemos que havia gente de várias nações em Jerusalém no dia de Pentecostes. Todos se preparavam para a festa da Lei, inclusive os seguidores de Jesus. Atos menciona doze povos e três regiões. Um grupo constituído por 120 pessoas (At 1.15). É diante dessa gente que o Espírito se manifesta numa casa, e não no templo. Homens e mulheres da Galileia recebem o Espírito.
Na festa aconteceu algo extraordinário: De repente, veio do céu um barulho como o sopro de um forte vendaval, e encheu a casa onde eles se encontravam. Apareceram então umas como línguas de fogo, que se espalharam e foram pousar sobre cada um deles (At 2.2-3).
Como havia acontecido na aliança de Deus no Sinai (Êx 19.16-25; Dt 4.10-12), o fenômeno se repete. Também aqui vento e fogo são símbolos para falar da manifestação de Deus. “No Antigo Testamento, a presença do Espírito de Deus tem a função de criar, animar, organizar, discernir, profetizar, ressuscitar, libertar e recriar. E essas também são as funções do Espírito no Novo Testamento. O Espírito continua vivo e atuante na vida de Jesus e das comunidades” (Nakanose; Marques, 2001, p. 15).
O mesmo Espírito, presente na vida e missão de Jesus (Mc 1.10; Lc 4.14), se faz presente na vida daqueles que o seguem guiados pelo Espírito. É na vida das comunidades que se manifesta a ação do Espírito Santo. A comunidade movida pelo Espírito Santo se abre para a missão.
E a pregação... – O texto de João está ambientado num contexto de despedida. Jesus prepara seus discípulos. Quer que estejam preparados para lidar com sua ausência. O momento é de despedida. Despedidas vêm acompanhadas de tristeza, dor e separação. É diante desse cenário que Jesus consola seus discípulos. “É provável que nenhuma outra porção literária do mundo inteiro tenha sido tão largamente usada, e com tanta eficácia, para consolar os desanimados e moribundos, os aflitos e os destituídos de seus entes queridos, como essa passagem, eivada como está de tristeza e tragédia levadas ao ponto de crise” (Champlin, 1982, p. 519).
A pregação pode explorar justamente o que o texto tem em comum com o dia de Pentecostes. No texto é prometido o parakletos. Dependendo do contexto da comunidade, a pregação poderá dar ênfase à unidade e comunhão entre Espírito do Pai e do Filho, ao Espírito de Deus (empoderamento), ao Espírito de Jesus (aquele que se faz próximo de nós – Emanuel, solidário), o Espírito consolador (situação de luto), o Espírito advogado (luta, militância) ou o Espírito conselheiro (que orienta, aconselha etc.).
4. Subsídios litúrgicos
Hino
Vem, Espírito de Deus (HPD 2, 318) ou Envia teu Espírito, Senhor (HPD 2, 367 / Livro de Canto da IECLB, 250).
Saudação
Todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são Filhos de Deus (Rm 8.14); ou: Não por força nem por poder, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos (Zc 4.5).
Leitura
Salmo 104 (Conforme proposta no PL 34: Hagsma, 2009, p. 222).
Oração
Espírito Santo, Espírito da Verdade! Concede a esta tua comunidade uma inteligência que te conheça; uma angústia que te procure; uma sabedoria que te encontre; uma vida que te agrade; uma perseverança que, enfim, te possua. Amém. (Adaptado para a terceira pessoa do singular da oração de Tomás de Aquino) (cf. Schmitt, 1994, p. 182).
Assuntos para a oração geral
Pedir pela presença do Espírito de Jesus na vida de cada pessoa, nas famílias e comunidade.
Pedir pela iluminação do Espírito nas decisões tomadas pelas lideranças na comunidade.
Pedir pela orientação do Espírito no testemunho diário de cada pessoa batizada.
Pedir pelo discernimento do Espírito diante de tanta falta de clareza.
Pedir pela força do Espírito diante de tantos poderes de morte.
Pedir pela unidade do Espírito, não obstante as diversas confessionalidades e igrejas.
Pedir pela comunhão do Espírito, Pai e Filho.
Bibliografia
BEUTLER, Johannes. Evangelho segundo João: comentário. São Paulo: Loyola, 2016.
BROWN, Raymond Edward. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2012.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Millennium, 1982. v. 2.
DUNN, J. D. G. “Festa de Pentecostes”. In: COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000.
HAGSMA, Alfredo Jorge. João 14.8-17(25-27). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2009. v. 34, p. 219-223. Disponível em:
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000.
NAKANOSE, Shigeyuki; MARQUES, Maria Antônia Marques. Pentecostes: festa das comunidades, Espírito e missão (at 2,1-13). Vida Pastoral, (p. 11-17), maio-junho de 2001. Disponível em:
SCHMITT, Flávio. 1º Domingo após Pentecostes (Santíssima Trindade). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1994. v. 20, p. 177-182.
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