João 13.1-15 - Um gesto que fala

Prédica

24/01/1979

UM GESTO QUE FALA
João 13.1-15 (Leitura: 1 Coríntios 13) 

Você, caro ouvinte, já lavou os pés de alguma pessoa? provável que já o tenha feito. Se for mãe, então não faltou oportunidade para lavar pezinhos sujos, ou para botar de molho, em água de sabão quente, um pé ferido ou inchado. E talvez o marido lavou os pés da esposa grávida — ou a esposa lavou os pés do marido, que voltou cansado e esgotado do trabalho. Ou a filha lavou os pés do pai idoso ou da mãe doente. — Sim, e você já teve os próprios pés lavados por alguém? Certamente, na infância! Mas depois? Já aceitou um tal ato humilde, que deixa a gente passiva, apenas recebendo, aceitando o serviço de uma pessoa que se abaixa diante de nós para nos fazer um bem? Pois se você já experimentou na prática o que é lavar os pés de outra pessoa, ou de ter os próprios pés lavados por uma criatura humana que você ama, então a mensagem do evangelho de João, ouvida há pouco, não vai ser coisa teórica para você. Então a linguagem que Jesus aí fala com as mãos, linguagem de um gesto humano tão concreto e simples, não lhe será estranha. Você apenas precisa ficar bem atento para compreender o que Jesus está falando nesta linguagem, que você entende. 

É durante a ceia, antes da festa da Páscoa, que Jesus lava os pés dos discípulos. É uma coisa que já deixou muitos leitores da Bíblia, inclusive teólogos de renome, bastante confundidos: O evangelho de João não descreve, em detalhes, a última ceia de Jesus com seus discípulos. Afinal de contas, esta última ceia foi a primeira Ceia da cristandade. João fala, mais para o começo do evangelho, de Cristo, o pão da vida, Mas não conta, como os outros três evangelhos, como Jesus partiu o pão e distribuiu o vinho, dizendo; «Isto é meu corpo isto é meu sangue dado, derramado por vós». Os entendidos no assunto não sabem bem, por que João não relata a instituição da Ceia do Senhor. Alguns acham que é para guardar segredo perante os descrentes. Outros acham que no tempo em que João escreveu seu evangelho, a Santa Ceia já era conhecida e praticada por todos os cristãos, o que teria dispensado João de descrever os detalhes da mesma. 

Seja como for: Em todo o caso, o evangelho de João nos prestou um grande serviço, relatando-nos, no lugar em que esperaríamos a descrição da Ceia do Senhor, um acontecimento que os outros evangelistas não descrevem: Conta como Jesus, pouco antes de sua morte, lavou os pés de seus discípulos. Quem sabe -- no entender de João, este ato de Jesus até poderá servir para entendermos melhor a Ceia do Senhor, assim como nos foi transmitida pelos outros evangelistas e por Paulo. — O lava-pés é um ato praticado numa hora de profunda seriedade. Jesus sabe que é chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai, Com palavras humanas, portanto: É hora de despedida. Não de despedida comum; não um simples «até logo», ou «até outra vista». É despedida que se faz frente à morte. A sombra da cruz cai sobre esta reunião de Jesus com os discípulos — pesada e angustiante. E a ameaça do sofrimento e da morte não vem somente de fora. Judas, um dos doze, está sentado com Jesus à mesa. O diabo já pôs no coração dele que traísse o Mestre. Um discípulo que Jesus amou e que ainda ama. O evangelista diz expressamente que Jesus, «tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim». Jesus não exclui Judas nem da ceia, nem do lava-pés, apesar de saber o que está no coração dele. Judas vai sair porque quer. Jesus não o excomunga. Um discípulo nunca é excomungado por Jesus. Ele se excomunga a si mesmo, quando for embora. 

Entendemos que Jesus é possuído por uma certeza e por uma paz que não são deste mundo. Ele sabe o que está acontecendo. Sabe-o melhor do que Judas, Pôncio Pilatos, Caifás e Herodes. Sabe que em meio à trama que o diabo está armando, se realiza a vontade de Deus: a vontade de glorificar o seu Filho, na morte e na ressurreição para a salvação de todo aquele que crê. Assim, Jesus não mostra nenhuma angústia. Não irradia amargura e tristeza, por ter sido rejeitado pelos líderes de seu povo, por ter sido traído até por um de seus discípulos. -- Dizem que o homem é o produto de seu ambiente -- que cada pessoa se torna aquilo que é, em virtude das experiências boas ou más que foi tendo na vida. Se isso é uma verdade relativa na vida dos homens em geral, não foi verdade na vida de Jesus. Jesus não foi o produto de seu ambiente. Ele não reagiu ao ódio com ressentimento. Não respondeu aos corações frios com frieza. Não cortou relações, onde outros se iam retirando: «Tendo amado os seus amou-os até o fim». Este amor é o verdadeiro conteúdo da vida de Jesus. Ele não tem sua fonte neste mundo -- embora Jesus o pratique neste mundo. Tem sua fonte em Deus, na realidade celestial do Pai, ao qual Jesus está unido em comunhão total.

É este amor que impele Jesus a interromper a ceia — coisa estranha mesmo, também para as pessoas de então: Impele-o a levantar-se da mesa coberta e de fazer um serviço de criado, ele, o Mestre, aos seus discípulos. É um ato consciente, uma pregação muda, ao menos no começo, mas uma pregação que cala mais fundo nos corações que palavras bem colocadas. É o gesto, é o ato, que prega: Jesus troca o manto com uma espécie de avental de trabalho, põe água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos e a enxugá-los com o avental. Ele se baixa diante destes homens tão vulgares: Tomé, Mateus, João, Tiago, Pedro -- para não falar em Judas. Ele se baixa — e será que ele não se rebaixa? O mestre, que serve aos seus discípulos? Não vai ser destruída a autoridade do líder, se o primeiro faz o serviço do último? — Aos olhos do mundo, pode ser que seja. Aos olhos de Jesus, não. O seu evangelho muda a ordem das coisas deste mundo. Mandar não é mais dominar. Servir — não é mais ser escravo. Ter autoridade — não é mais fazer os outros servir em nosso lugar. O primeiro é o último, e o último é o primeiro. Não admira que até para os discípulos é uma lição dura a ser aprendida! 

Vejamos o discípulo Pedro: Ele simplesmente se nega a aceitar o serviço de Jesus. Primeiro ele pergunta: «Senhor — tu me lavas os pés a mim?» — E quando Jesus lhe diz que ele vai entender esta prédica muda de seu Mestre mais tarde, Pedro fica «positivo» mesmo: «Nunca me lavarás os pés.» Ele simplesmente não admite aquilo. É coisa que não se faz. Mestre é mestre, e discípulo é discípulo. — Mas Jesus lhe responde de forma bem séria: «Se eu não te lavar, não tens parte comigo.» Se não aceitares este meu serviço de criado, que mostra o meu amor, então não poderás passar adiante este serviço e este amor, Então não vives em comunhão comigo. — E, ao ouvir estas palavras, Pedro demonstra que ele é um verdadeiro discípulo: Ele aprende. Com a luz repentina que se faz em seu coração, ele exclama: «Senhor, não somente os pés, mas também as mãos e a cabeça.» Quer dizer: Eu, Pedro, não tenho só os pés imundos. Eu sou um homem manchado por imundície, da cabeça aos pés. O que eu preciso, é de um banho total para todo o corpo! — Mas Jesus leva o discípulo um passo adiante, na aprendizagem da fé: «Quem já se banhou, não necessita lavar senão os pés; quanto ao mais, está todo limpo.» — Quem passou pelo grande banho do batismo, quem chegou a crer, quem teve a vida regenerada por Jesus, quem deixou que Deus fizesse a grande faxina em sua vida — ele está limpo; mesmo que ele não o saiba e sinta. Precisa lavar só os pés o pó de cada dia, de cada hora, de cada minuto. Precisa que lhe sejam perdoadas as faltas e as falhas do discípulo --. não as do homem descrente. Não precisa mais do grande perdão inicial. Ele foi perdoado, seu passado foi sanado, ele foi aceito totalmente. Que lição para o discípulo Pedro! «Você, Pedro, é mais justo do que pensa. É mais limpo do que se sente. Não olhe para as suas falhas, Pedro. Olhe para mim, seu Senhor! Aceite meu serviço, obedeça! Viva da justiça que recebeu! Viva dela e renove-a, dia a dia! Tu és Pedro, meu primeiro discípulo. O que os outros discípulos, teus irmãos, vão fazer, se tu começares a duvidar da grande purificação, da justiça que recebeste, ao ser lavado por mim?» 

O discípulo Pedro aprende. O discípulo Judas, não. Ele já tinha saído da aprendizagem, porque o diabo entrara em seu coração. Ele já não é limpo, porque abandonou a fé. As palavras de Jesus não o atingem mais. Ele não cai aos pés do Mestre, pedindo o que Pedro tinha pedido pois era isto que ele precisava. Ele fica calado. Não que saísse da fila, Ele participa do lava-pés. Mas só com os pés mesmo. O coração está tomado por outra realidade. Ele, depois, vai sair assim como é. Judas vai sair para a noite. 

«Depois de lhes ter lavado os pés, Jesus tomou as vestes e, voltando à mesa, perguntou-lhes: Compreendeis o que vos fiz? Vós me chamais o Mestre e o Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros. Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também.» 

Por que será que do lava-pés não foi feito sacramento, assim como o Batismo e a Santa Ceia? Faria sentido. Jesus fez; Jesus disse para fazer! Sabemos que o papa costuma lavar os pés de um pobre, de uma pessoa humilde, na Quinta-feira-Santa. No mais, a igreja cristã não celebra um lava-pés cerimonial. Mas penso que nós entendemos que Jesus não quis instituir nenhuma cerimônia, a ser repetida por nós, que nem uma liturgia formal. Lavar os pés uns aos outros — isso, para os discípulos, deverá ser uma coisa profana, algo que acontece no seu dia-a-dia. Será um servir em humildade, que deverá permear a vida toda do discípulo; um servir, que poderá interromper até uma ceia, um almoço, ou, quem sabe, o sono tranquilo ou algum trabalho importante do cristão. Será serviço prestado no amor de Jesus, dentro da comunhão de seu povo, a bem dos seus servidores mais humildes. Será um serviço necessário, que poderá ser material ou espiritual. Não vai haver diferença de categoria, neste lava-pés de Jesus. Uma confissão ouvida, de coração aberto, altas horas da noite, não terá mais valor do que o ato de trocar a roupa de cama de um velhinho doente e solitário que Deus pôs em nosso caminho. O que valerá, é que todo serviço seja feito no amor de Cristo. No amor com que nos amou —. e nos amará até o fim, e para todo o sempre. 

Voltamos a fazer a pergunta inicial; Você já lavou os pés de alguém? E já houve alguém que lhe lavou os pés? Quem foi lavado, não precisa senão lavar os pés. Mas este serviço será preciso que aconteça. Será preciso recebê-lo e será preciso prestá-lo. 

Oremos: Senhor, nosso Mestre: Por teu amor queiras dar com que esta mensagem nos faça olhar para ti. Que sejamos teus aprendizes que seguem o teu exemplo. Faze-nos ter confiança em teu poder salvador: Que creiamos na purificação e no perdão que tu nos deste ao aceitar-nos como teus discípulos. E faze-nos humildemente aceitar o teu serviço de amor. Abre os nossos olhos para que vejamos onde há pés a lavar — e onde nós próprios precisamos do humilde serviço dos irmãos. Obrigado, Senhor, pela bendita comunhão para a qual tu nos chamaste. Amém.

Veja:

Lindolfo Weingärtner 

Lançarei as redes - Sermonário para o lar cristão

Editora Sinodal

São Leopoldo - RS


 


Autor(a): Lindolfo Weingärtner
Âmbito: IECLB
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 13 / Versículo Inicial: 1 / Versículo Final: 15
Título da publicação: Lançarei as redes - Sermonário para o lar cristão / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1979
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Prédica
ID: 19680
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