João 10.12-16
Martim Lutero
O mercenário, que não é pastor, a quem não pertencem as ovelhas, vê vir o lobo, abandona as ovelhas e foge; então o lobo as arrebata e dispersa. O mercenário foge, porque é mercenário, e não tem cuidado com as ovelhas. Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a mim e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. Ainda tenho outras ovelhas, que não são deste aprisco; a mim me convém conduzi-las; elas ouvirão a minha voz; então haverá um rebanho e um pastor.
Poderemos discorrer sobre este evangelho, em semelhança a outras obras de Cristo, de duas maneiras: primeiro, dentro da perspectiva da fé; depois, dentro da perspectiva do amor. Na perspectiva da fé chegaremos à conclusão de que Cristo é o único homem, o único Pastor que morre por suas ovelhinhas - ele, mais ninguém. Pois este feito - Cristo ter morrido por nós - nenhum homem, nenhum santo, nenhum anjo foi capaz de realizar, pois isso implicaria que tivessem sido aptos a livrar o primeiro homem, junto com os seus descendentes, homem trucidado no Paraíso pelo diabo, por causa de seus pecados. Assim, pois, tal feito é próprio a este Pastor, feito que pessoa alguma lhe poderá imitar e que ele realizou para que houvesse propiciação por nosso pecado.
Bem como ninguém é capaz de igualar o sofrimento de Cristo, assim também não há quem possa pronunciar as palavras que Cristo vai pronunciando aqui, ao dizer: ¨Eu sou o bom Pastor. Dou a minha vida pelas ovelhas¨. Pois com essas palavras ele puxa tudo para si, ensinando-nos a crer que o sofrimento de todos os santos nada é em comparação com o seu próprio sofrimento. É como se quisesse dizer. Vocês tiveram Moisés e os profetas; eles pregaram e ensinaram corretamente a respeito daquilo que é preciso fazer. Mas em relação à tarefa de morrer pelas ovelhas e ter as ovelhas como propriedade, eles não passam de mercenários, incapazes de salvar do lobo as ovelhas. Depois de Moisés ter pregado e ensinado a seu devido tempo a morte permanece, e Moisés acaba fugindo. E mesmo que os profetas tenham feito o melhor possível, eles são incapazes de ajudar a uma ovelha sequer, protegendo-a do lobo, do diabo e da morte. Quem quiser subsistir em tal perigo e quem quiser escapar de ser trucidado pelo lobo, tome cuidado de não se fiar na lei ou em boas obras. Pois o mercenário foge, a lei sucumbe e não aguenta; sim, o que é mais sério, ela, por cima, ainda se coloca contra vocês e os condena. As boas obras igualmente não aguentam a carga e desaparecem. Sou eu (e quero sê-lo com exclusividade) quem ajuda contra o lobo, a morte e o diabo.
Portanto abandonemos qualquer confiança em vida santa própria e aprendamos que só por uma fé verdadeira chegaremos àquele que em nosso texto diz: ¨Eu sou o bom Pastor, e dou a minha vida pelas minhas ovelhas¨. Pois este não foge do lobo. Antes de deixar uma ()velhinha à mercê dele, ele se deixa dilacerar pelo lobo. Por essa razão, em tal perigo deveremos olhar unicamente para ele e ficar ligados a ele. Essa parte é preciso conceber pela fé. Nada poderemos contribuir de nossa parte. Mas ele, o bom Pastor, nosso Senhor Jesus Cristo, tudo fez e tudo consumou, ordenando que o aceitássemos e que nele nos agarrássemos com fé inabalável.
Por outro lado, poderemos discorrer sobre este evangelho no tocante à doutrina, colocando-nos na perspectiva do amor. Aí as coisas resultam em que tudo o que nosso amado Senhor Jesus Cristo fez, foi posto como exemplo também para nós, assim como Pedro vai ensinando na epístola de hoje (1 Pedro 2.24 e seguintes): ¨Cristo carregou ele mesmo em seu corpo, sobre o madeiro, os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça; por suas chagas fostes sarados. Porque estáveis desgarrados como ovelhas; agora, porém, vos convertestes ao Pastor e Bispo das vossas almas.
Tal é a doutrina referente à fé; Pedro também a aplica ao amor, dizendo (v.21): ¨Cristo sofreu em vosso lugar, deixando-vos exemplo para seguirdes seus passos¨. Cristo morreu por nós, salvando-nos de pecados e da morte eterna por sua obra pessoal, realizada sem nossa contribuição. Do mesmo modo, deveremos transformar pela fé seu feito em exemplo, dizendo: Meu Pastor Jesus Cristo me salvou de pecados e da morte, independentemente de todas as minhas obras. Aí nem devo nem posso contribuir nada; o que devo, é crê-lo - nada mais. Contudo pela fé deverei seguir o seu exemplo, servindo a meu próximo, sem olhar para o que me possa acontecer de mal.
Assim, todo cristão também é feito bom pastor. De acordo com a doutrina referente à fé, só Cristo, nosso Senhor, é bom Pastor. E exclusivamente ele que dá sua vida pelas ovelhas; todos os demais são mercenários. Mas segundo a doutrina referente ao amor, também os pregadores e os cristãos são bons pastores. Pois mesmo que sejam incapazes de salvar a outros de morte e pecados (já que essa é obra exclusiva do único verdadeiro Pastor Jesus Cristo, como já dissemos), mesmo assim são capazes de dar a sua vida a fim de que outros sejam atraídos à palavra e sejam levados à compreensão de Cristo, através do seu exemplo.
Pois o mundo e o diabo são inimigos da palavra, matam os servidores e empenham o seu poder para abafarem a palavra com violência. Com isso os pastores piedosos precisam conformar-se, havendo casos em que se veem obrigados a darem a própria vida. Por tal razão é preciso que haja pregadores piedosos e fiéis. Ao crerem que foram salvos por obra da morte de Cristo, eles seguem logo o exemplo de Cristo, chegando a morrer por amor às ovelhas e a dar a vida por amor à palavra. Tal morrer não salva os demais, pois a salvação só vem através da morte de Cristo. Mas mesmo assim vai fortalecendo os outros, assim que Deus vai sendo glorificado através de nosso sangue e de nossa morte, bem como o outro vai sendo fortalecido na fé, mesmo que não seja salvo da morte pelo que sofremos. Pois a salvação aconteceu antes, através do sangue e da morte do único e verdadeiro Pastor Jesus Cristo, como já foi dito várias vezes.
Aqui, por sua vez, encontram-se mercenários e lobos. Antes, na doutrina referente à fé, o diabo e a morte são chamados de ¨lobos¨; mercenários são Moisés, a lei e todos os homens, sejam piedosos quanto quiserem. Pois nenhum deles é capaz de proteger-se a si mesmo do lobo, do diabo e do pecado - muito menos a outros. Mas aqui, na doutrina do amor, vão sendo chamados de lobos os hereges, os falsos mestres e os tiranos que perseguem e condenam a doutrina; mercenários são chamados os pregadores e cristãos inconstantes, os que voltam atrás e que se apavoram. Mas quem for pregador e cristão piedoso não se deixa intimidar ao ver o lobo. Antes de permitir que seu próximo seja privado da palavra verdadeira e do conhecimento de Cristo, ele entrega seu corpo e sua vida, assim como fizeram os santos apóstolos e os queridos mártires. Eles não fugiram; correram para dentro da boca do lobo.
Assim deverá ser ainda hoje. Quem quiser ser pregador, que o queira de todo o coração, buscando exclusivamente a glória de Deus e o melhoramento de seu próximo. Se, porém, não buscar somente a graça de Deus e a salvação de seu próximo, pesando em seu cargo vantagens e desvantagens, não pense você que ele vai ficar assim firme. Ou ele vai fugir vergonhosamente, abandonando as ()velhinhas, ou vai calar-se, deixando-as sem pasto, isto é, sem palavra. São estes os mercenários, que pregam em proveito de si mesmos. São cobiçosos e não se contentam com o fato de Deus diariamente lhes dar o seu alimento, feito esmola dada. Pois nós, os pregadores, nada mais deveremos usufruir de nosso cargo a não ser aquilo de que necessitamos para a nossa vida. Os que querem ter mais, estes são mercenários, que não têm cuidado do rebanho, enquanto que um pregador reto entrega tudo, mesmo o seu corpo e a sua vida.
Esse é o outro ensinamento referente ao exemplo. Este não só se aplica àqueles que na igreja ocupam cargos, mas a todos os cristãos. Pois eles foram chamados a confessar e a preferir deixar corpo e vida antes de permitirem ser forçados a cometer idolatria e a abandonar a palavra. Pois sabem que têm um pastor que por tal razão deu a sua vida, e mesmo que sejam obrigados a deixarem a sua vida também, através dele a receberão de volta, para jamais tornarem a perdê-la, por toda a eternidade.
Agora o Senhor prossegue, pregando de suas ovelhas e distinguindo-as de todas as demais. Com isso ele também quer separar e distinguir seu ensino de toda heresia e de todos os demais ensinos, dizendo: ¨Eu sou o bom Pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim, assim como o Pai me conhece a mim e eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas¨. Isso é como se quisesse dizer. Se quiserem ser minhas ovelhas, o que resolve é que vocês conheçam a mim, seu Pastor, e não conheçam nenhum outro; se assim for, não haverá nenhum perigo para vocês.
Aí está escrito: Cristo conhece suas ovelhas, e, por seu lado, as ovelhas conhecem a Cristo. Disso resulta que às ovelhas de Cristo, em questões de fé, nada deve ser pregado a não ser Cristo: que ele deu sua vida pelas ovelhas, bem como o exemplo e o seguir a Cristo através das obras do amor. Por tal motivo, um bom pregador não deverá anunciar às pessoas nada mais que Cristo, a fim de que ele venha a ser conhecido, que se aprenda o que ele é e o que ele dá, para que ninguém abandone sua palavra, que pronuncia: ¨eu sou o bom Pastor, e dou a minha vida pelas ovelhas¨, e para que ele só, pela fé, seja tido como único Pastor e Bispo de nossas almas. Isso é que deverá ser pregado às pessoas, assim que cheguem a conhecer o seu Pastor.
Em seguida também se deverá gravar nas mentes seu exemplo, a fim de que, como Cristo por nossa causa tudo sofreu e tudo fez, por amor à palavra nós também façamos e soframos tudo. Assim como ele carregou a cruz, que também nós a carreguemos. Estas duas partes deverão ser pregadas na cristandade. Quem o ouvir, compreender, crer, e quem lhe seguir se chama ovelha de Cristo. Ele diz: Ouço e conheço a voz de meu Pastor Jesus Cristo, que diz o seguinte: Eu morri por vocês, salvando-os do lobo por meu sangue e por minha morte. Assim fala Jesus: nisso é que creio, e já não sei de nenhum outro pastor. Em seguida, porém, vou indo e faço o bem a meu próximo assim como Cristo o fez a mim, e, se for preciso, também passo a sofrer por amor dele. Se eu for golpeado, vou lembrar-me de que ele também o foi, pela mesma razão. Essa é a voz que eu ouço, e com ela permaneço.
Se, porém, vier um lobo, diabo e falso mestre, afirmando: Não adianta você crer em Cristo e praticar obras comuns, dentro de sua profissão e de sua função na sociedade, mas você precisa ser monge, etc., aí a ovelhinha diz: Essa voz eu não conheço, aí estou ouvindo um lobo, um demônio e falso mestre; ele quer arrancar-me das mãos de meu Pastor Jesus Cristo para devorar-me. Deste eu fujo, e a sua voz não escuto.
Por isso Cristo vai dizendo: ¨Eles ouvirão a minha voz¨; e, pouco antes (João 10.5) diz: ¨De modo nenhum seguirão o estranho, antes fugirão dele, porque não conhecem a voz dos estranhos¨: Pois não é possível que uma ovelha, tendo chegado a crer, e tendo ouvido e compreendido a voz do seu Pastor com seriedade, ouça e aceite qualquer pregação contrária à voz de Cristo. Ela ouve o que mandam as autoridades públicas, competentes exclusivamente para esta vida temporal, mas mesmo assim sabe muito bem que elas não levam à salvação. Pois não se chega à vida eterna por obedecer-se a tais leis externas. Se, porém, aparecer um pregador que não traz a lei do imperador ou do príncipe mas que, para enganar, faz uso do nome de Deus, dizendo que se quiser ser salvo você deverá prestar contas por seus pecados, celebrar missa, etc., aí a ovelha não escuta, mas diz: Não conheço a sua voz. Essa não é a voz do Pastor, é voz de lobo, assim fala o diabo, assim não fala Cristo.
É por tal razão que Cristo diz: Conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem a mim. Pois elas ouvem a minha voz de forma tão precisa e correta que não seguem a nenhum estranho. É assim que acontece com as ovelhas: quando o pastor assobia, elas se aproximam em massa, correndo; e a mãe conhece o cordeirinho, bem como o cordeirinho conhece a mãe; assim também as minhas ovelhas correm para mim. Elas me conhecem, e eu as conheço.
Portanto as coisas se resumem no seguinte: Deveremos aprender que toda esta parábola do pastor e das ovelhas visa o evangelho, querendo figurar Cristo e seu reino, anunciando em primeiro lugar que tudo depende totalmente do ouvir. Se a ovelhinha ouvir a voz do seu Pastor, ela é salva; se ouvir um estranho, ela não liga, mas vai andando até que se depare com a voz de seu Pastor. Toda sua índole e natureza se resumem no ouvir. Se também nós quisermos ser e permanecer cristãos, deverá acontecer por ouvirmos a palavra e através da fé. Uma ovelha conhece a voz de seu pastor, e o pastor conhece as suas ovelhas. Qual o sinal por que as conhece? Por ouvirem a sua voz! Conhecemos a Cristo através da voz de seu evangelho, e Cristo nos conhece ao ver que ouvimos seu evangelho que nos anuncia sua morte por nossos pecados. Com isso as ovelhas de Cristo vão sendo distinguidas de todas as demais ovelhas. E onde soar a voz de Cristo, aí se encontra o aprisco da vida eterna, no qual os homens são salvos de pecado e morte. E isso que se deverá pregar e ensinar.
Além disso, que se fuja e evite tudo que vai sendo ensinado como levando à salvação, fora de Cristo; e que se saiba que só foi ele quem o realizou, e mais ninguém. E por isso que Cristo diz: ¨Eu sou o bom Pastor, e dou a minha vida pelas ovelhas¨, assim como se quisesse dizer. Conheçam-me primeiro a mim, depois sejam piedosos, e cada qual morra pelo outro. Não com o fim de alcançarem a vida eterna, pois esta vocês já possuem antes, por mim; mas em honra a mim e a meu Pai celeste, e para melhoramento da santa igreja cristã. Permaneçam nessa confissão, essa é a voz. Quem gosta de ouvir isso, este é ovelhinha minha. E quem assim me conhecer, a este eu conheço de minha parte, e ele jamais será arrebatado de mim. Para tal nos valha Deus, por Cristo, nosso único Pastor.
Amém.
10 Sermões sobre o Credo - Martim Lutero
Prefácio de Lindolfo Weingärtner
O Primeiro Artigo do Credo Apostólico
O Segundo Artigo do Credo Apostólico
Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13
O Terceiro Artigo do Credo Apostólico
Atos 2.1-13
João 10.12-16