Prédica sobre João 19.16ss,
proferida pelo Bispo Regional Michael Grabow, por ocasião da
apresentação do oratório “Paixão segundo João”, de Heinrich Schütz,
no 3º Domingo da Quaresma, 27 de março de 2011,
na Igreja São Ulrico, Augsburgo, Alemanha
Prezada comunidade,
já hoje, uma prédica de Sexta-Feira Santa, quatro semanas antes da Páscoa? mas como, já hoje uma prédica de Sexta-Feira Santa – isso tem cabimento?
Talvez vocês pensem: isso não combina com o domingo de hoje. Pois assim se antecipa algo que não cabe no meio, mas deve ter seu lugar no fim do tempo da Paixão. E isso é uma pena, porque assim se antecipa o auge deste período.
Por outro lado, minha comunidade, não teríamos sempre tempo de Paixão? Não seria sempre Paixão nesta terra insana, tão violenta e, ao mesmo tempo, tão maltratada? Por ocaso, Jesus não morre a cada dia de novo para esta terra insana, tão violenta e maltratada? Não morre Jesus, a cada dia de novo, em cada pessoa batida, judiada, torturada e morta nesta terra?
Penso em pessoas que não apenas estão sozinhas, mas solitárias – e ninguém se preocupa com elas. Penso em pessoas que já não vêem sentido em viver, se anestesiam com comprimidos, abafam os sentimentos com som ensurdecedor, álcool e drogas. Penso em pessoas que desesperam da existência, não vendo mais outra saída senão dar um fim a esta vida, com as próprias mãos.
Penso nas pessoas em outros países de nossa terra:
Justamente voltei de uma visita de duas semanas à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil. De lá eu pude trazer muitas impressões – e algumas muito me abalaram e me deixaram pensativo. Vejo, por exemplo, a incrível violência na sociedade brasileira. Disso me falaram crianças do Recife: o irmão, o pai, o tio – abatidos por tiros em plena rua duma favela, uma das vilas de periferia. A cada ano, 2.500 pessoas mortas, só no Recife,
Penso na tesoura cada vez mais aberta entre pobres e ricos, em muitos países da terra. De um lado, grande miséria e fome; do outro lado, as minorias se trancam em suas mansões protegidas com arame farpado e alarmes eletrônicos – a poucos quilômetros de distância. Também isso vimos na nossa viagem.
Penso na violência ainda cotidiana contra as mulheres em todo o mundo. Com este tema se ocupou o “Dia do Brasil” de MissionEineWelt, que ontem teve lugar aqui em Augsburgo. Também nós, em nossa viagem, falamos com mulheres que nos contaram suas próprias experiências de violência – surradas pelos seus homens, oprimidas, até estupradas. E sabemos que tal violência contra as mulheres não acontece só no Brasil, mas também aqui entre nós.
„A Paixão é Feminina“ – assim dizia o cartaz de uma exposição que passou por muitas cidades da Baviera. “Quando vocês fizeram isso ao mais humilde dos meus irmãos, foi a mim que o fizeram“, nos diz Jesus. E creio que é legítimo estender essa fala dos irmãos também às irmãs. A paixão é feminina – as mulheres são obrigadas a confirmar isso com suas experiências também hoje, sendo física ou psiquicamente humilhadas e maltratadas, com recorrência.
Diariamente, ouvimos notícias de fome, doença, guerra e tortura. Mas as pessoas mortas ficam distantes de nós, e anônimas; não sabemos seu nome, nunca vimos seu rosto.
Sempre é Paixão nesta terra insana, tão violenta e, ao mesmo tempo, tão maltratada – cada dia. Jesus morre, a cada dia de novo, por esta terra insana, tão violenta e, ao mesmo tempo, tão maltratada. Jesus morre, a cada dia de novo, em cada pessoa espancada, judiada, torturada e matada nesta terra.
Cada dia é Paixão. Por isso, importa ouvir bem aquilo que acontece na cruz – o que acontece ali de fato: que uma pessoa, que Jesus morre miseravelmente – e nisso não rompe com Deus, e também não se desespera com as pessoas que ficam ali debaixo da cruz contemplando a agonia.
Importa ouvir bem o que ali acontece. Ouvir tão bem como as inúmeras pessoas que compartilharam entre si a história da paixão e morte de Jesus – durante muitos séculos, ao longo de muitas gerações.
Ouvir tão bem como aquelas pessoas que acolheram as suas últimas palavras na cruz e as passaram adiante de forma cuidadosa, como que lidando com tesouros preciosos.
Ouvir tão bem como aqueles/as que meditaram e interpretaram suas palavras, como teólogos e pastores, para as pessoas de sua respectiva época.
Ouvir tão bem como aqueles/as que tentaram transformá-las em som como músicos, em cantos e oratórios. Tão bem como Heinrich Schütz, que empresta à sua música toda a profundidade, a dor e o consolo do sofrer e morrer de Jesus. Com esta sua música tão maravilhosa ele nos ajuda a perceber este sofrer e morrer e a compreendê-lo um pouco melhor para nós mesmos/as.
Ao musicar a história da Paixão, Schütz foi o primeiro a inserir elementos dramáticos na composição, na forma de relatos pungentes da situação e um sem-número de figuras musicais e retóricas.
Nenhum outro compositor refletiu tão bem como Schütz, em termos sonoros, as paixões segundo Mateus, Lucas e João, de modo geral e nas suas respectivas tradições, impregnando-as com todo o vigor da sua arte. E como nenhum outro compositor do seu tempo ele se ateve fielmente ao texto bíblico.
Schütz compôs a “Paixão segundo João” nos anos de 1665 e 1666 para coral misto a capella (sem instrumentos) e cantores/as solistas que assumem as passagens de locução direta do evangelista, as palavras de Cristo, Pilatos, Pedro, Judas e servos. Justamente a limitação dos recursos musicais a uma entonação vocal salmodiada das melodias, sem qualquer acompanhamento musical, confere às palavras e à sua intenção um alcance muito intenso e direto.
O coral, por um lado, dá a moldura ao acontecimento da Paixão, com um intróito e um finale, e além disso interpreta as reações e os comentários dos discípulos, os gritos do povaréu revoltado, as intrigas dos sumos-sacerdotes e as ordens dos militares. Nisso, esta música interpreta tão magistralmente as emoções e os intuitos dos respectivos grupos, que por assim dizer podemos sentir as realidades na própria pele.
Por isso, ainda hoje, essa impressionante composição da Paixão segundo João, de Heinrich Schütz, nos toca de forma direta. Ela nos ajuda a contemplar e compadecer o sofrimento e a morte de Jesus. Pois seu sofrer e morrer vale para nós – para cada um e cada uma de nós.
E assim ouvimos a Paixão de Jesus. Assim contemplamos sua cruz e sabemos, admirados/as: “Vê, este é o teu Deus! Pregado à cruz, impotente – contudo aquele que com a sua dor carrega também as tuas dores”.
Para muitas pessoas de hoje, essa idéia é algo difícil de entender – que um outro, uma outra, que o próprio Deus leve sobre si a nossa dor. As pessoas de hoje, elas mesmas, querem ser fortes, não podem dar sinal de fraqueza, querem realizar-se na vida com o próprio potencial, sem compaixão alheia, inclusive sem a compaixão de Deus.
Para outras pessoas, no entanto, constitui um profundo e verdadeiro consolo poder contar com um Deus que não observa de longe o sofrimento humano, mas que sofre a dor no próprio corpo.
Quando assumo essa reflexão para mim, Deus de repente vem para muito perto de mim. Ele compreende o que acontece comigo quando sofro. Entende minha fraqueza. Entende meu desespero. Entende minha necessidade.
O Deus que sofre se torna companheiro da pessoa que sofre, caminha com ela, partilha o seu destino, compadece até sua morte.
Este Deus é um Deus solidário. É tão solidário que não hesita sofrer a morte mais desprezível. É tão solidário que se deixa executar entre dois criminosos e que, a um deles, até promete o reino dos céus.
Esta proximidade, este compadecer, esta solidariedade, as pessoas já a vêm percebendo e vivenciando há cerca de 2000 anos. E dessa experiência puderam haurir consolo e força não só para si mesmas, mas também aprenderam a se tornarem, por sua vez, sensíveis e cuidadosas para com o sofrimento alheio e a serem solidárias para com as pessoas vulneráveis e perseguidas.
Algo assim é praticado pelos/as cristãos/ãs aqui em Augsburgo. Algumas pessoas o fazem em silêncio; outras, pelo engajamento no serviço de visitação hospitalar, no círculo de amigos do Brasil, num grupo de estrangeiros aqui asilados ou na pastoral telefônica. E poderíamos listar muitos outros exemplos.
Assim agem os cristãos e as cristãs no mundo inteiro, como, por exemplo, no Brasil. Fiquei profundamente impressionado com o jovem casal ministerial em Crato/CE. Não se recolheram para o lugar seguro de um templo, mas foram solidários ao alugarem uma casa no meio de uma favela, para iniciar trabalhos com as crianças e suas mães. Com um entusiasmo contagiante, a jovem missionária trabalha com as crianças, para tirá-las da rua e da exposição às drogas e à violência. Com a colaboração de outros membros da comunidade, ela presta ensino e formação, para dar às crianças uma perspectiva de futuro. E preocupa-se especialmente com aquelas crianças que estão sozinhas porque foram mandadas para a rua ou porque os pais se tornaram vítimas da violência cotidiana.
Pode-se perceber que para o jovem casal este trabalho é sua paixão: paixão no duplo sentido da palavra: como um padecer com as outras pessoas e como uma dedicação apaixonada ao ministério de servir da melhor maneira.
Tornar-se solidário em nome de um Deus solidário. Compartilhar com outras pessoas a vida e o sofrimento em nome de um Deus que, ele próprio, partilhou nosso viver e nosso sofrer – esta é uma Paixão cotidiana – não só de Sexta-Feira Santa.
No fim da Paixão segundo São João Jesus diz: - Tudo está completado!
Tudo está completado – para cada dia – para cada pessoa – tudo está completado – para você e para mim. Pois isso nos é assegurado, descrito pelo profeta João (Apocalipse 21.1-4):
Então vi um novo céu e uma nova terra. O primeiro céu e a primeira terra desapareceram, e o mar sumiu.
E vi a Cidade Santa, a nova Jerusalém, que descia do céu. Ela vinha de Deus, enfeitada e preparada, vestida como uma noiva que vai se encontrar com o noivo.
Ouvi uma voz forte que vinha do trono, a qual disse: - Agora a morada de Deus está entre os seres humanos! Deus vai morar com eles, e eles serão os povos dele. O próprio Deus estará com eles e será o Deus deles.
Ele enxugará dos olhos deles todas as lágrimas. Não haverá mais morte, nem tristeza, nem choro, nem dor. As coisas velhas já passaram.
O tabernáculo, a morada de Deus entre a gente. Deus mora conosco – porta com porta – parede com parede. Que consolo, que perspectiva – que esperança.
Amém.
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