Prédica: Jeremias 26.8-15
Leituras: Filipenses 3.17-4.1 e Lucas 13.31-35
Autor: Renatus Porath
Data Litúrgica: 2º. Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 11/03/2001
Proclamar Libertação - Volume: XXVI
1. O AT - testemunho da história da paixão?
Um texto de pregação do livro de Jeremias na época da Quaresma quer destacar elementos comuns entre a história de sofrimento deste profeta, por causa de sua atuação pública, e a história da paixão narrada pelos evangelhos. Ler o AT como tipologia do testemunho evangélico de Jesus Cristo pode significar ganhos para a pregação cristã, ampliando, enriquecendo a pregação que se centra exclusivamente no NT. Essa complementaridade do NT através da leitura do AT sempre esteve presente na comunidade primitiva.
Já há mais tempo percebeu-se que a história da paixão de Jesus Cristo vale-se de estruturas narrativas, temas e conceitos emprestados do AT (p. ex. SI 22). Alguns traços comuns entre a história de sofrimento dos profetas, tipificada no livro de Jeremias, e a história da paixão nos sinóticos e no Evangelho de João saltam aos olhos. O tribunal com as diferentes personagens é o cenário em ambos os casos. Em contextos semelhantes, reflete-se sobre mensagem, mensageiro, destinatários da proclamação e suas reações. Mesmo assim, deve-se apontar para os riscos que se corre ao procurar por paralelos e traços comuns entre o agir de Deus e de seus procuradores credenciados em ambos os testamentos e em contextos históricos diferentes. Eventos históricos têm seu específico e seu aspecto único e singular. O testemunho da literatura profética ouvido na época da Quaresma não poderá contentar-se em destacar aspectos que confirmam o evento salvífico de Jesus Cristo; deverá também articular sua mensagem específica, que poderá complementar, problematizar ou até corrigir o testemunho neotestamentário, quando este tende a perder de vista a história humana com suas inúmeras contradições e que anseia por salvação. A leitura da Epístola, Fp 3.17-4.1, tomada isoladamente, passará a ideia de que Paulo não se preocupa mais com as coisas terrenas (v. 19), pois sua pátria está nos céus (v. 20). Sua admoestação final: permanecei, deste modo, firmes no Senhor (4.1) precisa ser ouvida não só no contexto amplo do testemunho paulino, que não nega que este Senhor exerce domínio sobre a história e continua criador de céus e terra. No entanto, o texto profético (Jr 26) e o evangelho sinótico (Lc 13) parecem puxar o ouvinte novamente para dentro do cenário histórico, em que agem diferentes interesses e que suscitam perguntas e questionamentos que requerem respostas à luz da fala em nome de Deus.
2. Jeremias 26 - um exercício hermenêutico
Este cap. 26 introduz as narrativas, redigidas na 3a pessoa, que relatam sobre Jeremias e seu sofrimento por causa de sua atuação profética. Juntamente com os caps. 19-20; 27-29; 36-44; 45, Jr 26 pertence à chamada biografia de Baruque. Esses capítulos são atribuídos a ele por conter informações sobre o profeta que só alguém próximo a Jeremias ou até confidente seu poderia registrar.
Os caps. 26-29 falam do profeta em conflito com opositores, com os chamados falsos profetas. Fazem referência a incidentes que provavelmente ocorreram no terceiro período de atuação do profeta em Jerusalém durante o governo dos sucessores de Josias. Seu filho, Jeoaquim (608-598 a.C.), experimentara por três anos o que era ser vassalo da potência babilónica e ter que entregar a ela pesados tributos.
Uma fonte extrabíblica, a Crônica Babilônica, relata que Nabucodonosor sofrera uma derrota por parte do Egito no ano de 600, da qual só se reerguera dois anos depois (S. Herrmann, p. 17-18). Este curto período de fragilidade da potência parece ter sido o suficiente para alimentar na Síria e Palestina esperanças de livrar-se do jugo opressor. Autoridades do palácio e do templo, analistas políticos e religiosos interpretavam esses sinais de fraqueza como novos ventos que sopram da parte de YHWH, que habita em Sião e quer a salvação da terra e do povo do Reino de Judá. Essas aspirações nacionalistas e antibabilônicas podem ter estimulado os discursos dos profissionais da futurologia, atacados veementemente por Jeremias como portadores de palavra divina não autorizada por Yl l WH (cf. Jr 23.9-20). Com seu anúncio de desgraça, Jeremias vem na contramão da história. Anunciar a destruição do templo de YHWH e prever para Jerusalém ruínas sem uma vivalma (26.6,9) só poderia sor classificado como blasfêmia e abuso do nome de Deus. Em todos os casos, é motivo suficiente para convocar o supremo tribunal e examinar se seus pronunciamentos são emitidos em nome de YHWH. Perguntavam-se: em vez de ser agente de Deus, não é ele, antes, agente do Império Babilónico atuando no coração da capital judaíta? O confronto entre profeta e profeta estava instalado, e a história de sofrimento de Jeremias por causa da palavra de YHWH tornar-se-ia paradigmática para anunciadores da Palavra de Deus dos tempos subsequentes.
Como a história após 587 a.C. deu razão ao profeta, suas palavras e narrativas sobre sua atuação ganharam tamanho espaço na comunidade exílica e pós-exílica como em vida Jeremias jamais sonhara. Gerações inteiras parecem ter alimentado sua fé a partir das palavras desse profeta, tentando entender sua própria situação, buscar respostas para suas incertezas e delinear um horizonte de novas perspectivas.
No final do séc. 7 e no começo do séc. 6, nasce em Judá e depois entre os sobreviventes da derrocada de 587 a.C. a consciência individual. A pessoa na comunidade começa a perguntar-se pela sua responsabilidade diante de eventos históricos, diante de uma potência imperialista que desbanca a anterior. O que o indivíduo na comunidade judaíta ou de seus sobreviventes tem a ver com a nova constelação político-econômica da Palestina? Estados estão perdendo sua independência, têm sua camada dirigente transplantada para os novos centros do poder, deixando a população entregue ao caos e à rapina dos povos vizinhos ou à luta de todos contra todos (S. Herrmann, p. 200s.).
O que a comunidade, composta de indivíduos, poderá fazer para não continuar sendo um joguete nas mãos dos poderosos, sentir-se vítima de decisões irresponsáveis e de pessoas ávidas por poder? A literatura jeremiânica, especialmente suas partes em prosa, é produto dessa busca intensa, desse incansável esforço incansável de uma comunidade que se sente entregue, por um lado, à cobiça insaciável de um império e, por outro lado, sabe-se exposta à ira de seu Deus, que diz ter-se servido de Nabucodonosor como seu servo para atingir seu povo. O livro de Jeremias propõe-se a entender e interpretar o momento histórico de um povo sem terra, sem templo e sem autodeterminação política, e faz isso em diálogo com a palavra do Deus que se diz sujeito dessa complexa história marcada por sofrimentos de toda ordem.
Teólogos-pregadores da comunidade exílica e pós-exílica baseiam-se nas palavras proféticas e em tradições ligadas à Lei Deuteronômica para encontrar respostas juntamente com sua geração, produzindo este compêndio de uma época que é o atual livro de Jeremias.
Jeremias 26 visualiza em parte esse processo interpretativo. Longe de centrar seu interesse na pessoa do profeta e no resgate de dados biográficos, o texto é redigido por esses teólogos-pregadores (deuteronomistas), partindo do incidente de Jeremias com seus opositores, por causa do anúncio de desgraça sobre templo e cidade que o acabou levando ao tribunal. Novas inquietações, perguntas e dúvidas povoam as mentes entre os descendentes dos que sobreviveram ao golpe de 587, e essa agenda é contemplada na própria redação da narrativa. Jeremias 26 é esse exercício hermenêutico que integra a nova Palavra de Deus para os novos destinatários. Presentes estavam perguntas como: qual o sentido do fim da história do pequeno Reino de Judá? 597 é apenas consequência da expansão imperialista? Se Judá provocou seu Deus à ira (Jr 7.19), a ponto de usar o império como seu instrumento punidor, essa fúria destruidora de YHWH já cessou com a destruição de seu templo e de sua cidade, ou sua ira continua acesa, podendo atingir de novo os sobreviventes? Quem garante que 587 foi o último golpe da ira de Deus? Vale a pena continuar sendo povo deste Deus? É hora de desintegrar-se para se integrar no povo dos seus conquistadores? Qual o papel e a responsabilidade do indivíduo nesse grupo de exilados em meio a essa crise? Este conjunto de perguntas está presente para quem redigiu ou retrabalhou essa narrativa e o faz com um único objetivo: encontrar respostas para essas questões de vida e morte dos sobreviventes do ex-Reino de Judá.
3. O evangelho ecoa do tribunal
A narrativa da cena do tribunal, reunido junto à Porta Nova do templo e presidido por cortesãos de influência em Jerusalém, é vista em conjunto com aquela do discurso de Jeremias no cap. 7. Em Jr 26 estariam narradas as reações dos diferentes segmentos da Jerusalém de então: sacerdotes e profetas, juízes palacianos, anciãos de Judá e todo o povo. Com qual dessas personagens os narradores e a comunidade se identificam mais?
As narrativas têm em comum o cenário, mas perseguem interesses diferentes. No centro de Jr 7 estão o templo e as denúncias de delitos sociais e cultuais, detectados a partir da Lei Deuteronômica (?); é a morada de YHWH transformada em covil de salteadores (7.11) e que por isso sofrerá, juntamente com seus adoradores, a mesma sorte que o santuário de Silo, situado a 40 km de Jerusalém, experimentara em tempos remotos (7.13-15; cf. l Sm 4). Jeremias 26 tem em comum com o cap. 7 a proclamação de um juízo que não fecha completamente as portas para uma possível reação positiva por parte do público, capaz de evitar, na última hora, o desastre total. A mudança de comportamento e de estilo de vida, a volta integral para Deus e a colocação em marcha de um movimento de penitência poderão salvar o povo do pior.
Mas onde estará o específico de Jr 26?
Por três vezes fala-se da ação de Deus ou de sua reação diante de uma mudança de postura por parte dos ouvintes do profeta ou ouvintes da narrativa. Por três vezes aparece o verbo nhm (ni.) / arrepender-se, tendo YHWH como sujeito (26.3,13,19). Mesmo limitando o texto de prédica aos vv. 8-15, este tema continua presente. Quanto à delimitação, a expressão tendo (...) acabado de falar (v. 8) pode introduzir uma nova unidade literária (cf. Jr 43.1; l Rs 9.1). No entanto, com o v. 15 encerra apenas a fala de Jeremias, faltando o veredito dos magistrados, que segue no v. 16, o que justifica incluir esse versículo no texto da prédica.
Observe-se, portanto, a estrutura da narrativa:
v. 8a - Introdução: fim da fala, caracterizada como procedente de YHWH e destinada a todo o povo
vv. 8-9a - Reação dos Líderes religiosos (e de todo o povo): prisão, sugestão de pena (v. 8) e questionamento do anúncio (v. 9a)
v. 9b - Reação do povo: reúne-se em torno de Jeremias (para ouvir sua defesa!)
vv. 10-16 - A sessão do tribunal:
v. 10 - Juízes se reúnem
v. 11 - Fala da acusação: sacerdotes e profetas sugerem sentença e a fundamentam
vv. 12-15 - Fala da defesa do profeta:
• YHWH o enviou para dizer juízo (v. 12)
• Apelo (a todos) para corrigir estilo de vida e ouvir a voz de Deus (v. 13a)
• Promessa de conter a desgraça (v. 13b)
• Submissão ao tribunal reafirmando (v. 14)
• Advertência final (v. 15): reafirma sua inocência; sua morte trará culpa sobre a cidade e seus habitantes; YHWH o enviou para dizer todas estas palavras (inclusive a pregação deuteronômica?).
v. 16 - Sentença do tribunal: absolvição do profeta (cf. também Graupner, p. 40).
Analisando os papéis desempenhados pelas diferentes personagens, a posição do povo não parece muito segura. A partir do v. 16, o povo se juntou aos príncipes-juízes para declarar o profeta inocente e, portanto, o reconhece como porta-voz de YHWH. O adendo (?) e todo o povo (v. 8) não quer eximir o povo de qualquer culpa, aliás o v. 5 (cidades de Judá) constata que a totalidade dos judaítas rejeitou a palavra profética. Essas tensões no próprio texto podem ser sinais desse intenso processo redacional, que tenta responder a diferentes perguntas em diferentes momentos.
A acusação (vv. 9 e 11):
No inquérito que antecedeu a sessão do tribunal, a acusação das autoridades religiosas é mais completa. Profetizar em nome de YHWH contra sua casa e sua cidade só poderia ser entendido como algo inimaginável. Onde se viu um Deus que se volta contra seu próprio povo e seu templo? Onde estão os crimes hediondos praticados pelos contemporâneos de Jeremias que justificariam uma intervenção que porá fim ao centro político e religioso de seu povo? O propagador de tais ideias, em nome da divindade principal do Reino de Judá, precisa ser silenciado urgentemente, antes que provoque a desestabilidade interna e fortaleça partidos pró-imperialistas num momento em que Judá precisa juntar suas forças para manter minimamente seus interesses diante da expansão dos babilônios. A sugestão de sentença da acusação não necessita de muita consulta a códigos legais: Este homem é réu de morte (v. 11).
A defesa (vv. 12-15):
Só um dado novo ou um outro argumento, desconhecido até então da acusação, pode dar um encaminhamento diferente ao processo. Só isso poderá reverter a sentença sugerida unanimemente pelas autoridades religiosas a serviço do mesmo Deus de Jeremias. Os narradores sabem disso e reservam amplo espaço para a defesa.
Enquanto os acusadores limitam sua acusação às poucas palavras porque profetizou contra esta cidade (v. 11b), o discurso da defesa abandona o protocolo e se dirige não apenas aos componentes do tribunal, que deveriam acatar ou rejeitar a sentença sugerida. O discurso da defesa se amplia e ganha formato de prédica. Dirige-se também a todo o povo (v. 12a). O profeta quer, agora, conquistar não só os ouvidos dos juízes, provenientes do palácio e decididos a defender os interesses do governo de Jeoaquim no fim do séc. 7 a.C.
Os teólogos-pregadores fazem Jeremias estender sua fala para além do espaço e tempo por ele ocupados. O discurso de defesa se torna prédica para um público maior, ampliando a fala no espírito da profecia jeremiânica e da tradição deuteronômica. Ela quer, agora, conquistar também os ouvidos dos sobreviventes da catástrofe de 587. A história confirmara a Jeremias e sua proclamação de desgraça e não o anúncio de salvação que vinha da boca de seus opositores.
A duras penas, a comunidade de exilados precisou ouvir e entender que atrás da derrocada do Reino de Judá, em 587 a.C., estava nenhum outro a não ser YHWH da Jerusalém, agora em ruínas e sem habitantes. Ainda que o agir preferencial de Deus seja a salvação de seu povo e de suas criaturas, a comunidade exílica experimentara, na própria pele, o seu agir estranho, que se voltou em ira e juízo primeiramente contra Israel e depois contra Judá, a ponto de desmantelar todas as estruturas básicas dos dois reinos (território, povo, governo com seus órgãos administrativos e sistema religioso com santuário). Essa intervenção de Deus, segundo a herança profética, essa ira de Deus desabou sobre seu povo porque este lhe negou fidelidade, deixando de perguntar por sua vontade em todos os níveis da vida social.
Para a geração após 587 ou para seus teólogos-pregadores não há dúvidas: a vontade de Deus está codificada especialmente na legislação deuteronômica. Ela é voz de Deus feito palavra escrita. Por isso Jeremias só pode ter confrontado sua geração com o direito de Deus, formulado pela Lei Deuteronômica, e, sem se darem conta, transformaram o profeta num pregador dessa Lei (26.4; 7.5-11). Diante dessa lei exigente não há dúvidas, seu povo poderia ter atraído a ira de seu Deus. Tinham todos os motivos para acreditar numa rejeição da parte de YHWH, ao ler nas coletâneas de palavras proféticas Jeremias se contorcendo em dores como uma pessoa infartada, quando soube da destruição planejada por Deus para Judá (Jr 4.19). Que YHWH continuava um Deus da ira, reforçavam também palavras intransigentes como falei, resolvi, e não me arrependo nem me retrato (Jr 4.28).
Até quando dura essa ira de Deus sobre os sobreviventes? Durante sua atuação Jeremias tinha palavras de esperança para os sobreviventes do Reino de Israel, destruído 100 anos antes: Não manterei para sempre minha ira (Jr 3.12). Valeria o mesmo também para os exilados do ex-Reino de Judá?
De fato, Jeremias acenava com salvação para Judá (Jr 29.28 e 32.5), mas não a esperava sem que primeiro passasse pelo juízo. Judá teria que descer até o fundo do poço. A defesa feito prédica constrói a partir desses sinais de esperança, que valeram para os irmãos do norte um século antes, a boa nova para quem está anos sem fim longe de sua terra de origem. Como que gritando para o fundo do poço, os teólogos-pregadores têm a anunciar a nova disposição de YHWH. Ele não os rejeitou definitivamente; está de braços abertos e não mais de braços cruzados, indiferente e distante. Se até agora ecoava nos ouvidos dos sobreviventes o categórico divino não me arrependo (4.28), agora soa um recado inédito da parte de Deus entre as fileiras dos exilados: (...) então Deus se arrependerá do mal (v. 13). Essa mudança no coração de Deus, esta volta para seu agir preferencial poderá pôr em movimento um grupo até então entregue a sua própria sorte, sem perspectivas de vida junto às margens do Eufrates.
Diante da desgraça, planejada e executada em 587, e sob cujos efeitos sobreviventes do mesmo povo ainda sofrem, eles, agora ouvintes da narrativa, podem saber o que seus pais não ouviram da boca de Jeremias: Deus quer conter sua ira, impedindo que a desgraça continue a fazer vítimas. O verbo para nhm / arrependeram (Almeida) etimologicamente significa respirar sob forte comoção, respirar ofegantemente para buscar alívio (J. Jeremias, p, l f)-1 (i). Em vez de extravasar sua ira sobre quem quer que seja, l )cus, por assim dizer, respira fundo, contém sua vontade de destruir e agredir. Num texto paralelo, Jr 36.3, é empregado o verbo perdoar. Esta é a nova vontade de Deus: perdoar, impedir o juízo, acolher e abraçar. Desta certeza nasce o imperativo para proceder ii mudanças radicais no estilo de vida medíocre, que excluíra Deus e sua vontade da esfera do convívio social. O indivíduo (cada um, 15(5.3; cf. Ez 18) é interpelado a abandonar o mal, convertendo-se para a vida imaginada e criada a partir do gesto de arrependimento e perdão incondicional, oferecidos por Deus. A responsabilidade individual começa a ganhar espaço na teologia da comunidade exílica do séc. 6. A pessoa na comunidade é convidada a apropriar-se dessa oferta incondicional de YHWH, respondendo com um estilo de vida condizente. Quem experimentou aceitação por parte de Deus deixaria de exercitar a aceitação mútua?
O fim da defesa feito prédica:
É possível matar o anunciador com a ilusão de estar abafando a mensagem perigosa da desgraça para o templo e a cidade. A Lei Deuteronômica exige que se tire de circulação todo profeta que não fala em nome de YHWH; este deverá sofrer pena de morte (Dt 18.20-22). Os componentes do tribunal decidiram pela absolvição do profeta, deixando de aceitar a sugestão de sentença da acusação. Decidiram pelo reconhecimento de Jeremias como porta-voz legítimo de seu Deus. Entretanto, o fato de o deixarem escapar com vida ainda não significa que tenham dado ouvidos a sua mensagem (26.5b). Para os teólogos-pregadores a mensagem de juízo se confirmou no evento de 587, que pôs abaixo o templo e deixou a cidade em ruínas. Portanto, não o ouviram de fato.
É possível que a história se repita. A nova mensagem do Deus que está de braços abertos, disposto a reter sua ira, pode ser silenciada e ficar sem resposta. A possibilidade de poder correr para os braços abertos e experimentar aceitação - em lugar de rejeição e juízo - pode não ser levada a sério. Esta volta de Deus para seu agir preferencial encontrará a resposta desejada? A narrativa é o convite insistente para a metánoia, para essa mudança de rumo; é advertência para que a nova mensagem não desencadeie reações que causam sofrimento para os portadores, como provocou a palavra de juízo, arrastando Jeremias para o tribunal e fazendo dele um servo sofredor.
4. A caminho da prédica
Se está certo que essa narrativa já é prédica para novos destinatários ou para gerações do mesmo povo que vivem décadas após o incidente do fim do séc. 7 a.C., aconselha-se esta teologia narrativa, fundindo nossos horizontes com aqueles delineados em Jr 26.
Um tribunal reúne-se para fazer justiça, especialmente a pessoas acusadas injustamente. Quantas vezes profetas denunciaram que esse instrumento é para defender os direitos de segmentos mais fracos diante de poderosos corruptos. É, portanto, o espaço para decidir se há crime, se a acusação é procedente, se a defesa é consistente em seus argumentos, a ponto de influir numa mudança da sentença, chegando a absolver o réu e transformando acusadores em culpados. Ser arrastado diante do supremo tribunal de um estado por causa da entrega de uma mensagem que tem sua origem em Deus é algo que precisa provocar espanto em nós.
Jeremias não encontrou nenhuma pessoa, quer adulta quer criança, quer poderosa quer sem poder (5.1-5). Ao invés de seu público aceitar a denúncia e ouvir humildemente o juízo de que tal sociedade tem seus dias contados, o anunciador acaba sendo denunciado e arrastado diante do tribunal. Aquele que deveria arrastar seus contemporâneos diante de Deus, para prestarem contas de sua convivência sem sentido e de seus atos inaceitáveis, torna-se refém dos destinatários de sua palavra. Em última análise, na pessoa do profeta, o próprio Deus com sua palavra é objeto de investigação, acusação e condenação. Vista sob este aspecto, essa narrativa ocupa uma posição de destaque no testemunho bíblico e serve de paradigma para gerações posteriores. Quantos tribunais não foram convocados depois de Jeremias para denunciar porta-vozes de Deus que confrontaram detentores do poder com a verdade! Não é por acaso que Jr 26 tem paralelos surpreendentes com as narrativas que relatam o processo judicial ao qual Jesus foi submetido de novo em Jerusalém (cf. Mc 14 e par.).
Diante do tribunal todos os grupos e segmentos presentes devem tomar posição. Os contemporâneos de Jeremias o fizeram, ouvintes no exílio, pertencente ao mesmo povo, foram convidados a reagir ao convite insistente formulado pela defesa. Nós, os novos ouvintes da narrativa, não podemos nos omitir. O que significa para nossa geração, ainda participante do mesmo povo (?), essa mensagem do agir preferencial que ecoa do tribunal: ele é um Deus de braços abertos para aceitar; basta responder com um estilo de vida condizente com essa nova postura de Deus, deixar para trás uma vida voltada para si e sua culpa?
Onde Deus e sua vontade são flagrantemente excluídos da esfera humana, a vida está ameaçada, as pessoas mais frágeis correm riscos e a prepotência festeja triunfos. A denúncia é o não de Deus, e, através de desgraça, Deus poderá reaver sua soberania. Mas do tribunal ecoa a boa nova: o amor de Deus é mais forte do que sua ira; a aceitação incondicional supera a rejeição definitiva. Será que esta boa nova pode desencadear um movimento de penitência e de volta para Deus nesta época da Quaresma?
Bibliografia
HERRMANN, Siegfried. Jeremia : Der Prophet und das Buch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1990.233 p. (Erträge der Forschung, 271).
JEREMIAS, Jörg. Die Reue Gottes : Aspekte alttestamentlicher Gottesvorstellung. Neukirchen-Vluyn : Neukirchener, 1975. 127 p.
GRAUPNER, Axel. Auftrag und Geschick des Propheten Jeremia. Neukirchen: Neukirchener, 1991.