Jeremias 20.7-13 - 5º. DOMINGO APOS TRINDADE
Meus caros paroquianos:
Esta é a última vez em que eu, como pároco desta Comunidade, subo aqui para lhes anunciar a palavra de Deus. E eu gostaria que todos entendessem isso o que Deus me manda dizer hoje como meu voto de despedida. O assunto de hoje é a relação entre Deus e o homem que crê nele ou que procura crer nele. Esta e uma questão que nos preocupa e nos irmana: a nos e a todos que, desde os primórdios da Humanidade, se defrontaram com esta realidade que é Deus.
Vamos recorrer, mais uma vez, ás palavras de um grande vulto do Antigo Israel, o profeta Jeremias. Quando ainda jovem, Jeremias foi convocado por Deus para servir como seu porta-voz junto ao povo de Israel. Naquela ocasião, Jeremias se rebelou. Achou toda sorte de desculpas para não atender ao chamado. Mas Deus insistiu e lhe garantiu auxilio. Deus lhe disse: A todos a quem eu te enviar, irãs; e tudo quanto eu te mandar, falaras. Não temas diante deles; porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor.
Jeremias foi e atuou durante cerca de 40 anos. A partir de 608 a.C., aproximadamente, Jeremias teve que se levantar contra uma situação que já se tornava insustentável: um rei despótico, tirano, ditatorial, que oprimia e extorquia o povo, praticando os maiores abusos; e um culto total mente deturpado, onde se pensava que Deus podia ser comprado com ofertas e holocaustos.
Jeremias levantou-se e anunciou o castigo: a queda do rei, invasão do país e devastação do templo. Em vista desta pregação revolucionaria, Jeremias começa a ser barbaramente perseguido pela política real e pelos sacerdotes. Jeremias é açoitado, torturado, preso, denunciado pelos próprios anil gos. Jeremias sofre por causa da palavra que Deus lhe ordenou Pregar; e sofre porque não vê, porque não acontece a realização desta palavra.
Então ele desespera e se lança contra Deus. Contra esse Deus que arruína a sua vida e o faz sofrer. Jeremias se lamenta, Jeremias acusa, Jeremias (quase) blasfema. Então, lembra-se da garantia que Deus lhe dera na sua vocação e recomeça outra vez. Um vaivém constante. O profeta caindo e levantando, indo ao chão e sendo erguido, sempre de novo, numa relação sofrida e vivida com seu Deus.
O texto que hoje temos pela frente é justamente um desses seus constantes berros de insurreição e revolta contra seu Deus que, paradoxalmente, culmina com exaltação e louvor a este mesmo Deus, que sempre de novo o põe de pé e o faz continuar.
II
Tu me ludibriaste, Senhor; e eu me deixei ludibriar. Tu me violentaste e venceste. Sou objeto de escárnio o dia inteiro. Todo mundo zomba de mim. Porque toda vez que abro a boca tenho que gritar e berrar: Estão me maltratando! Estão me judiando! Pois a palavra dó Senhor me faz passar vergonha e me ridiculariza o dia inteiro. Se, no entanto, eu digo a mim mesmo: Não vou mais pensar nele, nem falar em seu nome!, então isso se transforma corro em fogo ardente no meu coração, dentro dos meus ossos. Eu luto para suportá-lo e não o suporto. Porque já ouvi muitos murmurarem - que horror por todos os lados!-: Denunciem! Vamos denunciá-lo! Vocês, que são seus amigos, fiquem na espreita! Talvez ele se deixe ludibriar. Então, nós o dominaremos e nos vingaremos dele! Mas o Senhor está comigo como um poderoso guerreiro; por isso, meus perseguidores cairão e nada conseguirão. Passarão vergonha clamorosa porque não agiram sensatamente, vexame eterno que jamais se esquecera. O Senhor dos Exércitos prova o justo, ele esquadrinha rins e coração. Ainda verei a tua vingança contra eles, pois a ti confiei a minha causa. Cantai ao Senhor! Louvai o Senhor! Pois ele salvou a vida do pobre da mão dos malfeitores.
III
Assim fala Jeremias! Não sei o que os senhores sentiram, ao ouvir estas palavras. Principalmente a primeira par te. Eu só sei que eu, quando as li pela primeira vez, ao — preparar esta prédica - eu vibrei, eu senti, eu participei, eu me identifiquei. E os senhores, provavelmente, também.
Mas, cuidado! Nós não somos Jeremias. Nem mesmo pequeninos, minúsculos Jeremias. Nós não vivemos na Palestina no século VII a.C., mas em Porto Alegre, em pleno ano da Copa de 1970. Nós não recebemos visões, não fomos chamados a ser profetas. Nós não tivemos este contato tão direto com Deus e não recebemos tal incumbência.
Mas há duas coisas fundamentais que nos aproximam muito de Jeremias: a - Nós temos relação com o mesmo Deus, nós cremos ou procuramos crer neste mesmo Deus; b - Também nós somos chamados por este Deus; não por visões, mas pelo batismo, na Santa Ceia, toda vez que a palavra deste Deus atinge os nossos ouvidos; a palavra deste Deus é sempre um apelo, um chamado, uma conclamação.
Esta é a base fundamental que temos em comum com Jeremias. E a partir desta base, há diversos outros pontos em que a nossa experiência com Deus é idêntica á do profeta. Por que é que insisto em comparar-nos com Jeremias? Porque eu espero que esta comparação nos elucide a nossa existência de cristãos e nos ajude a compreender e suportar muito de incompreensível (e insuportável) que há nesta existência.
IV
Primeiro: Jeremias sofre por causa da fraqueza da palavra de Deus. O que Deus disse não acontece. O que Deus mandou anunciar não vem. Pelo contrário, continua o despotismo e a opressão do rei; continua a deturpação do culto. Fica tudo na mesma. A palavra de Deus não vale um centavo.
E Jeremias? Sofre a maior gozação: Sou objeto de escárnio o dia inteiro. Todo mundo zomba de mim ... A palavra do Senhor me faz passar vergonha, me expõe ao ridículo o dia inteiro. Mas não é só isso. Por causa desta palavra fraca, impotente, que o obriga a pregar subversão, ele é per seguido, corre perigo de vida: Porque já ouvi muitos murmurarem - que horror por todos os lados! : 'Denunciem! Vamos denunciá-lo, vamos vingar-nos!' ... Toda vez que abro a boca é para gritar e berrar: 'Socorro! Estão me judiando! Estão me maltratando! Tudo isso, por causa da fraqueza da palavra. Ela não cumpre o que promete. O que ela diz não acontece.
E agora, nós: Sofremos gozação? Perseguição, risco de vida? Dificilmente! Por quê? Porque não nos expomos como Jeremias. Porque não vamos a público, não testemunhamos como deveríamos. Ficamos com a palavra guardada, bem protegida, nas nossas igrejas, no nosso íntimo. Mas também lá não corre tudo ás mil maravilhas. Não ha gozação e perigo de vida.
Mas há, lá dentro de nós, uma infinidade de perguntinhas. Perguntinhas que se somam e formam um bloco e arremetem contra nós e são piores do que qualquer gozação. Perguntinhas que comprovam e demonstram para nas que a palavra de Deus é fraca, não merece confiança, não vale um centavo. Se o Cristianismo prega o amor, por que justamente os cristãos fazem tanta guerra? Se a regra máxima do cristão é o amor, por que acontecem barbaridades num país cristão como o nosso: tráfico de escravos, milhares e milhares de flagelados numa seca prevista com três anos de antecedência? Por que existe uma Vila Teodora numa cidade onde ha um bairro Petrópolis, uma Vila Assunção, uma Sociedade Leopoldina? Se Deus é tão grandioso e quer bem aos homens, como afirma a sua palavra, por que tudo isso? Por que a solidão, a inanição, a pobreza, a debilidade mental, o câncer?
São estas as perguntinhas que lutam contra a palavra no quartinho fechado do nosso íntimo. Como Jeremias, rendemo-nos às evidências e, não raro, chegamos á conclusão: Deus talvez não exista! E se existe, deve ser um Deus meio raquítico, fraco; não vale a pena.
V
Segundo: Jeremias não só se lamenta, mas acusa Deus. Isso é importante para nós. Nós sofremos, como Jeremias, diante da fraqueza da palavra. Mas raramente temos o peito de acusar Deus como Jeremias o faz. Notem bem: Jeremias não nega a existência de Deus. Nós provavelmente também não. Jeremias não fala sobre Deus, mas com Deus. E como fala com Deus: Tu me ludibriaste, Senhor; e eu me deixei ludibriar. Tu me passaste na conversa. Tu me seduziste como se seduz uma mocinha, tu me violentaste e venceste. Grande vitória Se, no entanto, eu digo a mim mesmo: Agora chega, não quero mais saber dele, não quero mais falar no seu nome!, então eu não aguento, a sua palavra fica ardendo, fica remoendo lá por dentro; e eu tento suportar esse fogo e não consigo.
Isso tudo, prezada comunidade, dito direto a Deus, cara a cara. Isso tudo, meus amigos, e uma das mais autênticas confissões de fé!
Vamos conversar um pouco mais sobre isto. Existem cristãos que são verdadeiras fortalezas de fé e confiança em Deus. São pessoas que nunca duvidam, que sempre têm uma resposta, que são respeitadas e admiradas. Há outros cristãos, para os quais a fé não é algo tão natural. Eles apanham, nem sempre compreendem, duvidam, lutam com Deus, às vezes gostariam de mandar tudo às favas, Deus inclusive. A estes pertence Jeremias. A estes pertencem, provavelmente, a maioria dos senhores. A estes pertenço eu. É para este segundo grupo que a comparação com Jeremias se torna importante.
Geralmente olhamos para aquele primeiro grupo e pensamos: Eu sou um miserável! Mas isso não está certo. Eu admiro aquele primeiro grupo. Deve ser maravilhoso poder crer em Deus de tal maneira. Mas não menos legítimo, não menos autêntico é brigar com Deus, atacá-lo, ofendê-lo talvez, acusá-lo. Porque esta acusação é sinal de que o levamos a sério. Até o fim. É sinal de que o procuramos, de que queremos crer, de que ansiamos por ele e precisamos dele. Por isso eu quero dizer a todos que se identificam com Jeremias na sua revolta: não tenham medo, continuem a duvidar, continuem a acusar Deus, porque tudo isso é confissão de fé, confissão sofrida - confissão de que no fundo e em ultima instância esperamos tudo de Deus.
VI
Agora, é importante não esquecer que Jeremias não fica na acusação. Ele termina exaltando, louvando: Cantai ao Senhor! Louvai ao Senhor! Pois ele salvou a vida do pobre da mão dos malfeitores! Por quê? Por que esta mudança tão radical da acusação para o louvor? O texto não a explica clara mente. Mas só há uma explicação plausível. Jeremias deve ter recebido alguma reafirmação do apoio de Deus, do auxílio de Deus. Qualquer reafirmação de que a sua última palavra não o juízo, a desgraça do homem, mas o seu bem.
O mesmo acontece conosco. Nós que nos identificamos com Jeremias na sua fossa, na sua acusação, na sua revolta. Nós também temos momentos de confiança, momentos em que nos e reafirmado e em que sentimos que no final das contas Deus vai resolver tudo. Esta reafirmação acontece quando ouvimos a respeito de Jesus Cristo, quando vamos buscar perdão na Santa Ceia, quando a pregação da Igreja nos diz que Deus se entregou a si próprio pelos homens. Então também em nas a acusação pode transformar-se radicalmente em exaltação e louvor.
VII
Mas, prezada comunidade, não quero agora fazer um happy-end. Não pretendi arrastá-los pelo barro para depois dizer que tudo são maravilhas. Não, a vida do cristão é isso mesmo: altos e baixos. Altos muito altos e baixos baixíssimos. É dentro desta dinâmica que se movimenta a nossa relação com Deus, como no caso de Jeremias.
E, enquanto vivermos, nada disso mudará. Nós ainda não somos capazes de uma relação perfeita com Deus. Entre nós e Deus esta o pecado. E, enquanto vivermos neste mundo, nesta era contaminados pelo pecado, a relação com Deus será imperfeita, truncada por mal-entendidos, por incapacidade de compreensão dos planos de Deus, que nos leva à rebelião contra ele. A nossa esperança esta fixa no dia em que tudo isso será diferente, no dia em que a nossa relação com Deus será — diferente, sem dúvidas e lutas, no dia em que, como diz Paulo, veremos Deus face a face.
É isso o que eu devia dizer-lhes hoje. Eu, de minha parte, sou grato a Deus, por me ter permitido participar da fossa de Jeremias. Espero que os senhores possam dizer o mesmo. Amém.
Oremos: Senhor Deus, na nossa relação contigo, passamos por altos e baixos. A culpa não é tua. Pedimos-te que compreendas e nos auxilies, quando tudo desmorona e nos voltamos contra ti. Põe-nos sempre de novo em pé. Até o dia em que não haverá mais dúvidas e acusações, mas uma relação perfeita contigo. O dia em que veremos face a face. Dá que este dia não tarde, Senhor. Amém.
Veja:
Nelson Kirst
Vai e fala! - Prédicas
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS