Igreja, paixão e Deus

16/06/2006


Um dos primeiros pastores luteranos que vieram ao Brasil para trabalhar com os imigrantes alemães chamava-se Jacob Zink. Ele nasceu em 20 de agosto de 1844 na pequena localidade de Württenberg, Alemanha, e chegou ao Brasil em 1869 para ser pastor dos luteranos no interior de São Paulo. As famílias das comunidades, na região que se estende de Rio Claro a Campinas, trabalhavam nas fazendas de café.

Difícil era a situação dos colonos, difícil era a situação do pastor. Para sobreviver, ele fabricava sabão. A Constituição brasileira da época dizia que o catolicismo era a religião oficial do Império. As demais religiões eram apenas toleradas, e os seus praticantes não tinham cidadania plena. Não podiam ter templos, nem prédios que se assemelhassem a templos. Ficavam-lhes proibidos a cruz, os sinos e outros sinais externos de identificação. Os seus casamentos não eram válidos, e os seus mortos não podiam ser sepultados nos cemitérios das localidades.

Mas na localidade de Jerônimo, relata o pastor e historiador Martin Dreher, o pastor Jacob Zink conseguiu construir com os colonos uma casa simples que servia de capela, e na frente dela colocou uma cruz de madeira. O delegado de polícia mandou tirar a cruz, pois a Constituição determinava que os protestantes deveriam ter seus cultos “em casas para tanto destinadas, sem qualquer forma exterior de templo”.

O que fazer? O pastor tomou pedacinhos de madeira, uniu com eles os quatro cantos da cruz e disse: agora é uma pipa (pandorga), não é mais uma cruz! E a pipa ficou na parte frontal da casinha de madeira. O delegado, quando foi dar uma olhada, não teve argumentos, mas deve ter achado muito do maluco aquele pastor com a sua pipa.

Como os primeiros cristãos, que secretamente usavam o peixe como símbolo para se mostrarem uns aos outros, aquela comunidade via no centro da pipa a cruz e reconhecia a sua igreja. E o delegado deixou que a pipa ficasse.

Sem dúvida uma história de fé e coragem. Coragem de se assumir como Igreja num mundo e numa época muito difíceis. Um mundo onde fazer parte de uma igreja protestante podia virar caso de polícia. Levar a cruz a sério significava assumir riscos. Se nossos tempos nos parecem difíceis, imagine então os tempos do pastor Zink.

Atualmente, as igrejas já não podem mais contar só com a tradição familiar para se manter. Nas grandes cidades, nem sempre – ou, melhor dizendo, quase nunca – os filhos seguem a religião dos pais.

Falar de Igreja hoje é falar de uma profunda paixão. Dificilmente alguém filia-se a uma Igreja por motivos racionais – pode até acontecer, mas a maioria filia-se mesmo por paixão. Depois, e se desejar, encontrará alguma racionalidade para a sua paixão. Sem essa paixão não há filiação. E, paixão, meu amigo e minha amiga, não se ensina. Paixão se vive. Paixão contagia, seduz.

A fé precisa nascer a cada geração. Se os filhos não forem chamados de forma individual pela Igreja, não experimentarão a religião dos pais. E não basta que os filhos simplesmente reproduzam a religião da família. É necessário que experimentem com intensidade a sua vivência com Deus.

Somos Igreja e às vezes temos vontade de voltar atrás, porque a tarefa é grande. O profeta Jeremias, em meio a seu cansaço de tanto trabalhar (20.7ss), responde a Deus: “Me seduziste, ó Senhor, e eu me deixei seduzir. Foste mais forte do que eu e venceste.” Como o profeta, não é possível voltar atrás, apesar do cansaço e do desânimo. A situação do profeta nos mostra que a lamentação e a angústia também fazem parte da vida de fé.

Haverá aqueles dias em que desejaríamos nunca ter ouvido falar de Deus, porque isso nos tiraria dos ombros o peso do trabalho que temos pela frente. Mas Deus é mais forte, a sua paixão por nós é mais forte. É uma paixão que nos seduz e inflama. Deixar-se seduzir é sonhar com possibilidades. Ser Igreja é arriscar ser a Igreja da pipa e da esperança em meio ao asfalto, ao pó, aos barracos, aos prédios monumentais.

Ser Igreja é amassar a uva juntos para poder festejar o vinho depois.

Muitas vezes nos cansamos, porque vemos que as pessoas querem somente a pipa, o papel colorido, as facilidades, a alegria, a possibilidade de voar alto. Encarar a cruz não é fácil. Encará-la nos faz ver que ela está vazia. E aí nos vem a boa nova: Jesus já morreu por nós. Então descobrimos que, por mais que estejamos carregando pesada cruz, não precisamos morrer com ela ou por ela: Cristo já o fez, por mim e por ti.

Encarar a cruz por detrás da pipa é isso: é denunciar, é abrir os olhos para as chagas da humanidade. Ser Igreja de verdade não é fácil, principalmente porque nos compromete com o outro.

A Igreja precisa ser esse lugar onde nossas esperanças ganham asas, onde nossos lamentos possam ser deixados, onde possamos voar alto, mas sempre presos ao fio de linha conduzido por mão forte do “valente guerreiro que está ao nosso lado” (Jeremias 20.11). Nós somos também a Igreja da pipa, sem perder de vista a cruz que a sustenta e a faz voar.

Pastora Vera Cristina Weissheimer


Autor(a): Pª Vera Cristina Weissheimer
Âmbito: IECLB
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Meditação
ID: 7822
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