Amados irmãos, amadas irmãs,
“diga-me com quem andas e direi quem tu és!”
Jum Rohn, um escritor norte-americano, diz que nós somos a média das cinco pessoas com as quais mais convivemos. Ou seja, nós somos o resumo dos nossos relacionamentos. Nossos círculos de amizades e relacionamentos definem nossos valores, cultura e personalidade. Quem são as cinco pessoas com as quais você mais convive? Pensando nelas e olhando para si, você acha que você é o resumo dessas cinco relações interpessoais? Talvez, alguns digam que sim; talvez, alguns digam que não.
Fato é que ninguém “é de um jeito hoje” e “é completamente de outro jeito amanhã”. Ninguém acorda em uma manhã e se torna, em um estalar de dedos, completamente diferente do que foi ontem. A verdade é que nós somos uma construção edificada tijolo por tijolo através de relacionamentos.
Estamos em constantes transformações. Não somos estáticos – embora algumas coisas permaneçam estáticas (time de futebol, por exemplo). Ao mesmo tempo, podemos estar em busca de conhecer quem realmente somos. Na sabedoria clássica, na entrada do Oráculo de Delfos estava escrito “conhece-te a ti mesmo”; na sabedoria Moderna, Friedrich Wilhelm Nietzsche disse “torna-te quem és”[1]; o filósofo alemão lembra também que ser quem se é significa não ser confundido: “Ouçam-me! pois eu sou assim e assado. E, acima de tudo, não me confundam”[2]. E, às vezes, para conhecer a si mesmo, é preciso afastar-se de si mesmo:
Conheço o espírito de muitos homens
E não sei quem eu mesmo sou!
Meu olhar está demasiado próximo de mim –
Não sou aquilo que contemplo.
Saberia ser-me mais útil,
Se estivesse mais distante de mim.
Não tão longe, decerto, como meu inimigo!
Meu amigo mais próximo já está demasiado longe –
Entretanto, a meio caminho entre ele e mim!
Adivinham o que estou pedindo?[3]
Mas, deixando Nietzsche de lado, a grande pergunta é: quem, de fato, é você que está sentado aqui nesta cadeira, nesta igreja, neste Domingo de Manhã? Além do seu nome e sobrenome, CPF e RG, quem és?
São perguntas difíceis de responder. Ainda mais hoje em que vivemos aquilo que muitos pesquisadores chamam de “personalidades líquidas” onde tudo muda e se transforma de maneira muito rápida – quase na velocidade da internet. O falecido sociólogo polonês Zygmunt Bauman falou sobre isso, quando escreveu que o ser humano se “regozija com a sorte de vestir e despir identidades”[4]. Ou seja: hoje, identidade não é algo fixo, mas uma roupa que pode ser vestida e trocada: “O eixo da estratégia de vida pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe”[5].
Se antigamente as pessoas sabiam exatamente quem eram e o que queriam das suas vidas, hoje não há certeza alguma. Não há certeza nem mesmo de quem se é! Se antigamente a identidade era uma construção sólida edificada sobre bases firmes, hoje a identidade é derrubada e reconstruída constantemente, dependendo das circunstâncias – que mudam!
Hoje, muitos adolescentes e jovens estão em crise por não conseguirem definir a sua identidade. Podem ser tudo! Mas, quem pode ser tudo, pode também ser nada! As redes sociais aprofundam a crise quando encontramos um eu “real” e outro eu virtual; eu “real” entre aspas porque, na verdade, não sabemos se real é esse aqui ou aquele da internet. E talvez aquele eu “sincero” da internet e aquele eu “tímido” do mundo físico sejam simultaneamente bem reais.
Mas, afinal de contas, quem somos ou deveríamos ser a partir da cruz de Cristo? Qual é a nossa identidade a partir do momento em que decidimos seguir a Jesus? Vamos ver:
1 A NEGAÇÃO DA CRUZ
Uma das identidades mais marcantes do Novo Testamento é Pedro. Que homem contraditório, não é? Pedro é aquele homem que fala muito, mas faz pouco. Promete ir com Jesus à crucificação; contudo, quando o momento chegou, Pedro fugiu e negou Jesus três vezes antes que o galo cantasse. Pedro demonstra muito bem como a identidade privada pode ser (e é) diferente da identidade pública.
Jesus predisse pela primeira vez a sua morte e ressurreição. Os discípulos não sofreram nenhuma propaganda enganosa. Ao contrário, Jesus deixou claro o propósito da sua vida desde o começo do seu ministério. O texto bíblico diz: “Então Jesus começou a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos principais sacerdotes e pelos escribas, fosse morto e que, depois de três dias, ressuscitasse”. (Marcos 8.31-32). E esse ensinamento não ficou nas entrelinhas. Ao contrário, “e isto ele expunha claramente”. (Marcos 8.32a).
Jesus Cristo é o Deus-homem, o Verbo encarnado – essa é a sua identidade! Como Messias, sua missão era passar pela cruz e ressurreição. Mas, a identidade de Pedro não conseguiu aceitar a identidade de Jesus: “Então Pedro, chamando-o à parte, começou a repreendê-lo.” (Marcos 8.32b). É como se Pedro dissesse: “Jesus, vira essa boca pra lá. Para de conversa. Morte não”.
Pedro negou a cruz. Por quê? Porque queria um governo poderoso terreno e não a esperança da ressurreição. Sua identidade lhe dizia que através do poder de Jesus, ele poderia ser alguém importante, reconhecido e com notoriedade. Pedro seria famoso, poderoso e importante. Mas não era esse o propósito do Filho de Deus. Seu propósito não era a edificação de um poderoso reino na terra, mas a proclamação do Reino dos Céus. E, para cumprir esse propósito, Jesus precisava passar pela cruz – a qual Pedro se nega a aceitar.
Por isso, a repreensão de Jesus a Pedro foi dura: “Saia da minha frente, Satanás! Porque você não leva em consideração as coisas de Deus, e sim as dos homens”. (Marcos 8.33). Jesus identificou que novamente estava passando por uma tentação que tinha como objetivo evitar sua cruz. É por isso que Jesus repreende Satanás em Pedro.
2 A IDENTIDADE DA CRUZ
Jesus anunciou que iria para a cruz – e de fato foi crucificado, como lembraremos na Sexta-feira da Paixão. Através da cruz de Jesus, Deus desmascarou e desnudou completamente o ser humano. Já não há mais o que esconder. Tudo se torna muito claro.
Afinal de contas, quem é o ser humano? O ser humano é pecador por natureza desde Adão e Eva. Em sua própria natureza, o ser humano insiste em virar as costas para Deus e viver como se Deus não existisse. Essa é sua verdadeira identidade – que o ser humano busca esconder a todo custo. Já no próprio Jardim do Éden, Adão e Eva buscaram esconder sua vergonha: o primeiro casal buscou a justificação por obras através da “religião das folhas de figueira”.
Na cruz, Deus mostrou quem ele realmente é: Deus tem a cara do crucificado. Através do rosto misericordioso de Jesus, podemos ver claramente o reluzente rosto amoroso e misericordioso de Deus. Por isso, o rosto misericordioso de Deus pode ser visto somente em Cristo. Em Jesus, Deus aparece a nós sem máscaras; Deus aparece tal qual ele é!
Através da cruz de Jesus, também nós ganhamos uma nova identidade: “E, assim, se alguém está em Cristo, é nova criatura; as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas.” (2 Coríntios 5.17). A partir da influência no relacionamento com Jesus, nossos valores, nossa cultura e personalidade passam a ser transformadas por Jesus: “Quanto à maneira antiga de viver, vocês foram instruídos a deixar de lado a velha natureza, que se corrompe segundo desejos enganosos, a se deixar renovar no espírito do entendimento de vocês, e a se revestir da nova natureza, criada segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade”. (Efésios 4.22-24).
Essa é a vida cristã! Essa é a própria essência do discipulado: tornar-se como Jesus. Despir-se daquilo que não combina com o Evangelho e ser cada vez mais como o ensinamento evangélico. Isso significa negar o próprio Ego e abrir-se para uma nova vida em Cristo Jesus. Assim, a nossa identidade será marcada pela vida e pela cruz de Jesus. Sob a bandeira da Cruz, estaremos do lado daqueles que são crucificados hoje! A identidade da cruz é ser fraco com os fracos, sofrer com os que sofrem, buscar libertação com quem está escravizado pelos sistemas deste mundo.
3 A VERGONHA DA CRUZ
A cruz de Cristo transforma a nossa identidade enquanto cristãos. E, de fato, Pedro se tornou outra pessoa após a crucificação e ressurreição de Jesus. Basta ler as suas cartas no final do Novo Testamento para constatar essa profunda transformação – onde encontramos não o Pedro violento e heroico, mas o Pedro pastoral em suas palavras.
Quem não busca ser como o Jesus da cruz, passará a ser inimigo da cruz (cf. Filipenses 3.17-21). Negar a cruz – o sofrimento de Deus – significa negar que somos verdadeiramente cristãos. Quem se envergonhar de Jesus e de sua cruz, sofrerá a vergonha do Filho do Homem (cf. Marcos 8.38).
O apóstolo Paulo viveu as marcas da vergonha da cruz – esse escândalo vergonhoso onde Deus se faz fraco! Onde Deus aceita a rejeição! Onde Deus aceita o sofrimento! Não pregamos a identidade de outro Cristo, senão este: “mas nós pregamos o Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Coríntios 1.23). Pois, “Certamente a palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós, que somos salvos, ela é o poder de Deus”. (1 Coríntios 1.18). A identidade cristã não tem vergonha do Deus que sofre.
Amados irmãos, amadas irmãs,
“diga-me com quem andas e direi quem tu és!”
Hoje nós conhecemos um pouco sobre a identidade de Jesus e como o anúncio de Jesus afeta a nossa própria identidade. Da maneira como você vive, as pessoas percebem que você caminha com Jesus? Na maneira como você vive seus relacionamentos, as pessoas percebem que você caminha com Jesus? Na maneira como você vive seus negócios, as pessoas percebem que você caminha com Jesus? Na maneira como você vive suas amizades, as pessoas percebem que você caminha com Jesus? As pessoas notam a diferença?
Arriscar seguir a Jesus significa uma mudança de vida. Estamos na Quaresma, este tempo que é propício para o arrependimento, a conversão e a transformação. “Lembra-te que és pó e que ao pó retornarás”. A vida é passageira. Não sabemos o dia de amanhã. “Eis agora o tempo oportuno! Eis agora o dia da salvação!” (2 Coríntios 6.2b).
Aqui está a minha certidão de Batismo. No dia 12 de Julho de 1992, recebi, por graça, uma nova identidade em Cristo Jesus. E gosto muito que na minha certidão de batismo está estampada a bandeira da cruz.
Sua certidão de batismo também é a certidão de sua nova identidade em Cristo Jesus – onde tudo começou. E então, verdadeiro cristão é conhecido na caminhada com Jesus – uma caminhada que não é perfeita, pois seremos simultaneamente justos e pecadores até o nosso último suspiro. Contudo, a identidade cristã não permite “baratear a graça” como se a cruz não tivesse custado um alto preço pela nossa salvação.
Para concluirmos, negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir a Jesus implica em:
a) Saber que não estamos sozinhos em nossos sofrimentos: Tertuliano de Cártago, um Pai da Igreja, diz: ““Sua cruz” significa suas próprias ansiedades e seus sofrimentos em seu próprio corpo, que já tem a forma de uma cruz”[6]. Tomar a cruz de Cristo significa saber que a vida cristã não será privada de sofrimentos – até porque o nosso próprio corpo tem a forma da cruz. Assim, o nosso corpo e os nossos sofrimentos são um lembrete vivo da cruz de Cristo;
b) Saber que não haverá ressurreição sem cruz – também para nós: Como povo que caminha pelo deserto, sabemos aonde queremos chegar: a páscoa – a libertação. Ninguém entra em um ônibus ou avião sem saber para onde quer ir. Da mesma forma, a Quaresma já aponta que nosso destino não é simplesmente a morte, mas a ressurreição, a libertação;
c) Saber que Deus está conosco: Agostinho de Hipona, um Pai da Igreja, diz: “Não há outra maneira de você seguir o Senhor, exceto carregando-o, pois como você pode segui-lo se não é dele?”[7] Tomar a cruz de Jesus significa que o seguir pode ser um peso – no sentido de que haverá rejeição por parte de poderes e pessoas por causa desse seguimento quando feito com fidelidade.
Irmãos e irmãs,
vamos seguir a Jesus. Vamos negar a nós mesmos; deixemos cair nossas máscaras aos pés da sua bem-aventurada cruz; abandonemos o nosso próprio Ego para sermos recipientes do amor de Cristo.
· Ser cristão significa ser como Cristo: essa é a nossa identidade! Não eu, mas Cristo!
· Ser cristão significa carregar a cruz de Cristo: o sofrimento de Deus é a nossa bandeira!
· Ser cristão significa renunciar a tudo por Cristo: abnegação é a nossa missão.
Através da cruz de Cristo, Deus cumpriu definitivamente a sua promessa de salvação. Que boa notícia é essa! Para cumprir a promessa, Jesus passou pela rejeição e pelo sofrimento: eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Negar a si mesmo, tomar a cruz e seguir a Jesus é um grande desafio. Mas essa é a nossa identidade mais essencial. Enfrente suas sombras, enfrente seus pecados, enfrente o que te impede de seguir a Jesus, não com suas armas, mas com oração, confissão, conversão e arrependimento. Esse é o duro processo pelo qual temos a oportunidade de nos tornarmos nós mesmos a partir da identidade de Cristo Jesus.
Vamos caminhar com Jesus na certeza de que Deus está conosco – mesmo quando a cruz parecer bastante pesada. E a paz de Deus, que excede todo o entendimento, guardará os nossos corações e as nossas mentes, em Cristo Jesus, amém.
[1] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce Homo: De como a gente se torna o que a gente é – 1888. in: NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras escolhidas. Porto Alegre: L&PM, 2013.
[2] NIETZSCHE, 2013. p. 447.
[3] NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência. São Paulo: Escala, 2013. p. 40-41.
[4] BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 23.
[5] BAUMAN, 1998. p. 114.
[6] Tertulian, on Idolatry 12. apud: ODEN, Thomas C. (ed.). Ancient Christian Commentary on Scripture: New Testament, II, Mark. Westmont: InterVarsity Press, 2024. p. 106. Edição do Kindle.
[7] Augustine, Letter 243, To Laetus. apud: apud: ODEN, Thomas C. (ed.). Ancient Christian Commentary on Scripture: New Testament, II, Mark. Westmont: InterVarsity Press, 2024. p. 106-107. Edição do Kindle.