Idade Média - idade do medo

01/12/2011

Idade Média - idade do medo

P. em. Lindolfo Weingärtner

Na sequência de artigos publicados neste Anuário nos dois últimos anos, que nos deverão permitir uma compreensão melhor do evento da Reforma, neste ano queremos refletir sobre a mentalidade das pessoas que viviam na Idade Média (período que cobre aproximadamente os 500 anos antes da Reforma).

Há alguns anos atrás participei de um culto na igreja alemã de Estocolmo, capital da Suécia. O imponente templo data do tempo anterior à Reforma, que na Suécia equivaleu a uma adesão coletiva do povo ao movimento luterano. A maioria das antigas igrejas passaram a ser usadas, sem grandes modificações, pelas comunidades luteranas estabelecidas. Assim também a igreja alemã conservava suas características antigas, principalmente na parte de trás, a apside, antes reservada para os sacerdotes e monges.

Lembro-me das pinturas que cobriam as paredes laterais da apside: um conglomerado de corpos retorcidos, seminus, a caírem das alturas para o abismo, alguns de cabeça para baixo, com o fogo do purgatório no fundo, e com espíritos malignos a esperá-los com instrumentos de tortura.

Ao olhar o deprimente quadro, imaginei como, meio milênio atrás, os fiéis que frequentavam esta igreja não só olhavam estes quadros, fascinados, domingo por domingo, mas ouviam também uma pregação saturada de mensagens amedrontadoras: O purgatório, o inferno, os castigos temporais e eternos. O próprio Deus deve ter-lhes parecido mais como uma incorporação de ameaças do que como Pai misericordioso.

Martim Lutero contaria que, em sua juventude, Deus, antes de tudo, lhe metia medo, que ele via até em Jesus Cristo apenas o juiz, que ameaçava e castigava.

Sondando um pouco este medo irracional, que parece ter tomado conta da igreja na Idade Média, topamos com muita coisa que deve ter contribuído para gerar os temores do povo. O mundo era inseguro, muito mais do que hoje conseguimos imaginar. Coisa como direitos humanos, não havia. Os governos eram autoritários, ou até tirânicos. Nos julgamentos, os acusados frequentemente eram submetidos a torturas, e confessavam o que os carrascos os mandavam confessar. Guerras entre as nações, lutas tribais, lutas entre senhores feudais vizinhos - com saques impiedosos da população (os saques eram parte do soldo dos mercenários), epidemias como a peste bubônica, o cólera e a varíola, que em poucos meses poderiam exterminar metade da população de um país. A duração de vida das pessoas girava em torno dos 40 anos. Nos anos de más colheitas ou de epidemias poderia baixar para 30.

Temos de lembrar que a população em geral não era escolarizada. Só uma elite nos mosteiros e nas casas de nobres sabia ler e escrever. Assim não havia cuidados higiênicos. O povo era supersticioso, incapaz de entender uma relação de causa e efeito nas questões da vida e da saúde. Os infortúnios, como secas e epidemias, eram atribuídos a bruxas e feiticeiros. Houve, em toda a Idade Média, esta coisa terrível: Homens e mulheres (principalmente mulheres) eram acusados de bruxaria, e sob tortura confessavam as coisas mais terríveis. E o povo vibrava quando mais uma bruxa era queimada viva em praça pública.

E havia a inquisição — o julgamento das coisas da fé, das heresias, das blasfêmias, das ofensas à religião... Até o ano de 1200 a inquisição era tarefa dos bispos, em suas respectivas dioceses, e era exercida com maior ou menor rigor. Mas a partir de 1200, o próprio papa assumiu a direção do Santo Ofício, e agora a terrível instituição funcionava com crueldade inimaginável. O papa incumbiu certas ordens, principalmente os dominicanos, com os processos contra hereges. As vítimas fatais da inquisição contam-se aos milhares, senão às dezenas de milhares. Os judeus se achavam entre as principais vítimas. Em Portugal e Espanha, os que escaparam com a vida, eram forçados a abjurar a sua fé, ou teriam que deixar o país. Muitos vieram para o Brasil, onde a inquisição era praticada só ocasionalmente, e com mais brandura.

O fato mais grave e repulsivo é que a igreja oficial, não só pela inquisição, mas também através de outras práticas (missas para defuntos, indulgências, doutrina do purgatório), incrementava os temores irracionais do povo. Ela, por assim dizer, administrava o medo do povo, em seu próprio proveito. Deus permita que nunca mais a igreja caia em horrível tentação semelhante!

Quando Lutero, afinal, se livrou daquele emaranhado de temores, descobrindo o Deus da graça, que em seu Filho Jesus Cristo oferecia uma vida sem temor, era como se o sol tivesse nascido: No amor não há temor (1 João 4.18). Lutero viu, entre outras coisas, que o povo deveria ser capaz de descobrir, ele mesmo, na Escritura Sagrada, o Deus Pai revelado em seu Filho Jesus Cristo.

Lutero viu também que superstição e ignorância vão sempre de mãos dadas. Por isso, como Reformador, incrementaria a fundação de escolas e universidades. Estudando a Bíblia e aprendendo também a julgar as coisas do mundo, as pessoas se tornariam espiritualmente adultas e responsáveis. Com isso ele abriu uma nova página na história humana, não só para a teologia, mas também para a ciência, a política e para as artes. O que Lutero não queria, era uma ciência irresponsável e selvagem, divorciada do evangelho de Cristo, como ela veio a manifestar-se mais tarde. Ele queria uma ciência humanista, uma ciência por assim dizer batizada, que permitiria a formação de pessoas instruídas nas línguas, herdeiras da cultura dos antigos, a ser aplicada aos tempos modernos, sob as luzes da fé. Não queria uma cultura técnica, uma cultura do saber fazer, como hoje prevalece. Mas isto é outro capítulo!

O autor é pastor e professor de teologia emérito da IECLB e vive em Brusque/SC


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Autor(a): Lindolfo Weingärtner
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2012 / Editora: Editora Otto Kuhr / Ano: 2011
Natureza do Texto: Artigo
ID: 31835
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A vida cristã não consiste em sermos piedosos, mas em nos tornarmos piedosos. Não em sermos saudáveis, mas em sermos curados. Não importa o ser, mas o tornar-se. A vida cristã não é descanso, mas um constante exercitar-se.
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