Todos os movimentos que produzem reflexão e nova consciência ética, cedo ou tarde, produzem transformações na sociedade. Essas transformações se traduzem em novos comportamentos, novas leis, uma nova comunicação e uma nova consciência ética. No caso da relação da sociedade com as pessoas com deficiência, as mudanças, ainda que tardias e insuficientes, podem já ser observadas. Existem leis que definem a acessibilidade, percentual de contratação nas empresas e instituições - só pra citar dois exemplos. No entanto, uma pergunta sempre acompanha os desenvolvimentos desses processos de transformação social: o que sustenta a consciência desses valo- res, a mobilização da sociedade em lutar pelo cumprimento de leis e regras de tal maneira que as pessoas com deficiência realmente sejam respeitadas e acolhidas? São as leis em si que sustentam uma relação de respeito e um olhar de dignidade para com segmentos da sociedade cujas condições de vida e trabalho são diferentes? Onde encontrar a fonte de uma real consciência dos valores que devem sustentar uma sociedade onde diferentes convivem em respeito, dignidade e solidariedade?
Um texto bíblico dos Evangelhos surpreende pela capacidade de referir-se a tantos aspectos deste tema tão relevante. Trata-se de Marcos 5.25-34, a cura da mulher com hemorragia.
O contexto é o intenso contato de Jesus com o povo da Galileia. Ele é sobrecarregado do clamor popular por esperança, cura e tratamento digno. Jesus oscila entre tempos de recolhimento, oração e proximidade com seus discípulos e tempos de forte contato pessoal. Nesse contato, Jesus preocupa-se constantemente em não passar a ideia que o seu “produto” é a cura em si. Ele quer comunicar algo mais. Para ele é importante fazer do seu gesto algo tão significativo como sua pregação. Por isso Jesus procura (e os Evangelhos bem registram vários desses momentos) criar rupturas significativas nesses momentos de intenso assédio.
Num desses momentos, alguém toca as vestes de Jesus. Ele sente isso. Contrariando seus discípulos, quer parar e saber quem lhe tocou. Os discípulos fazem pouco caso da situação e tentam dissuadi-lo desse ato sem sentido. Jesus é firme na decisão.
A parada e aparente investigação de quem “ousou tocar em suas vestes” leva a autora da ousadia a se apresentar-se com medo. Iria Jesus censurá-la? Iria ele reverter a cura por seu ato de ousadia?
Não, Jesus não quer humilhá-la, não quer censurá-la e lhe negar o benefício. Jesus quer ouvir sua história, quer dar visibilidade ao seu sofrimento, à sua condição. Ela possui uma doença que lhe atribui limites, pois sua hemorragia é incessante e sem cura. Jesus quer evidenciar a sua fé e quer anunciar em alta voz, como quem abençoa, a sua libertação.
Jesus não quer que sua cura seja uma história provada e de conhecimento restrito. É uma história que precisa ser reconhecida, ser comunicada e que sirva de sinal visível de sua mensagem. O Reino de Deus é um espaço onde histórias de sofrimento e exclusão podem dar lugar a histórias de libertação e reconhecimento de dignidade e de fé.
Importante, em nosso caso, é que trata-se de uma história de exclusão. A doença que esta mulher é portadora lhe atribui limites e lhe restringe drasticamente sua vida. É uma doença humilhante e excludente, pois envolve sangue, impureza e culpa.
A maneira de Jesus lidar com esta história oportuniza a renovação do olhar para cada pessoa. Ao valorizar a história pessoal, sensibiliza o olhar coletivo para o sofrimento humano. Isso é, via de regra, evitado, pois as pessoas evitam acessar suas memórias de sofrimento interiores. Melhor é lidar de maneira distanciada.
Leis e convenções sociais, mesmo que venham ao encontro de necessidades reais e demandas de grupos alijados de seus direitos, não deixam de provocar um certo distanciamento das histórias reais de sofrimento. É preciso contar estas histórias sempre de novo. É preciso alimentar a comunidade com o olhar sensível e misericordioso de Jesus. É preciso dar tempo, interromper a rotina e o ritmo apressado do dia a dia para ouvir quem está perto e tem algo dolorido para compartilhar. É preciso deixar-se sempre de novo sensibilizar-se para o tema da exclusão, do sofrimento. Leis não curam as deficiências, mas uma atitude de misericórdia e empatia pode minimizar (se não curar) um sentimento de exclusão que insiste em não sair da cabeça de muitas pessoas.
Pastor Cláudio Kupka - Porto Alegre/RS
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