História da salvação

17/03/2016


Nessa semana santa, tema central das leituras bíblicas é a paixão, morte e ressurreição de Jesus. Os textos sugeridos pela liturgia nesse ano vem do Evangelho de Lucas (Lucas 19.28-40 para o Domingo de Ramos, Lucas 22.54-62 – para o início da semana santa, Lucas 23.33-49 para a sexta-feira santa e Lucas 24.1-12c para o Domingo de Páscoa). Portanto, temos a oportunidade de refletir mais especificamente sobre a história da salvação.

No primeiro milênio a teologia dominante foi a do “resgate”: pelo pecado de Adão a humanidade havia ficado “prisioneira do demônio”, literalmente sob seu poder. Segundo santo Irineu de Lion (202) e Orígenes (254), o Diabo teria um “direito” sobre a humanidade, devido ao pecado de Adão. Juridicamente, a humanidade estava sob seu domínio, sua pertença e Deus “quis agir com justiça, inclusive frente ao diabo” (Irineu, Adversus Haereses, V, 1,1), ao anular o direito somente mediante o pagamento de um resgate adequado. Para isso, entregou seu filho à morte, a fim de libertar a humanidade do domínio “legítimo” do diabo. Santo Agostinho o diz ainda mais explicitamente: Deus decretou que deveria “vencer do Diabo, não mediante o poder, mas mediante a justiça” (De Trinitate, XIII, 17 e 18). Este modelo de “resgate pago ao Diabo” para resgatar a humanidade, ainda ressoa nas pessoas que tiveram uma formação cristã mais antiga. Porém, para nós essa teologia soa como inaceitável e inimaginável e até grotesca: não podemos aceitar um Diabo, concebido como um contra poder quase divino, diante de Deus e que retém a humanidade sob seu poder, durante milênios, até que seja “justamente ressarcido” por Deus, nada menos que com a morte do Filho de Deus, um Diabo que somente assim seria “derrotado pela vitória de Cristo”.

Essa história da salvação foi atualizada no século XI por Santo Anselmo de Canterbery,. Para santo Anselmo, o ser humano ofendeu a Deus com o pecado original e com ele se romperam as relações entre Deus e a humanidade. Deus foi ofendido em sua dignidade e o ser humano, por sua parte, ficou privado da graça da relação com Deus e, por si só, não teria a capacidade para superar essa situação, pois o ser humano não tem a capacidade para reparar uma ofensa de caráter infinito. Desta forma, Anselmo elabora a teoria da “satisfação penal substitutiva”: Jesus morre em substituição à humanidade pecadora culpável, para satisfazer com isso a dignidade ofendida de Deus e restabelecer assim as relações de Deus com a humanidade. É a teologia da “redenção”, do redimir (“re-d-emere”), re-comprar o escravo para libertá-lo de seu antigo dono. Esta teologia, hoje já insustentável, é, contudo, a que a maior parte dos cristãos e cristãs, incluindo muitos agentes de pastoral tem em sua consciência, em sua compreensão do cristianismo, ou ao menos em seu subconsciente. E é para muitos deles “a” explicação maior do mistério cristão, o mistério da “redenção”.

Essa concepção de uma humanidade dominada pelo diabo, em que o mesmo diabo somente aceitava um sacrifício de sangue para libertar a humanidade de seu domínio, atormentava a Martin Lutero no século XVI. Para Lutero o diabo continuava atormentando as pessoas para que cometessem pecados e assim continuassem sob o seu domínio. Portanto, o diabo não deixava as pessoas em paz. Essa luta Lutero somente superou quando – pelas Escrituras Sagradas – ele descobriu que Deus não é somente justo, mas misericordioso. Portanto, a contribuição da teologia luterana para a história da Salvação foi revelar – através das Sagradas Escrituras – que a misericórdia de Deus, a graça de Deus, o grande amor de Deus é que nos possibilitam a salvação.

No Evangelho de Lucas a cruz aparece como um verdadeiro sacramento do amor divino: a revelação da misericórdia em meio ao sofrimento. Lucas não salienta os aspectos negativos e cruéis desta situação. Em sua narrativa omitem-se lembranças ou referências que aparecem em outros evangelistas como a flagelação ou a coroação de espinhos que servem para incriminar os que levaram Jesus à morte. Lucas quer que descubramos o amor do Pai para com seu Filho e para com todos os homens, mesmo nessa situação de dor. Jesus não aparece abandonado no Calvário (não cita Zc 13,6 sobre a dispersão do rebanho): está acompanhado de amigos e conhecidos (Lc 23,49 em contraposição com Mt 27,55-56 e Mc 15,40-41). E retoma o grito do Salmo 22 citado por Mateus por uma manifestação ilimitada de confiança, conforme Salmo 30,6 (31,6): “Pai, em tuas mãos encomendo meu espírito”.

A Semana Santa não é o único momento no qual devemos referir-nos à significação da salvação operada por Cristo, pois esta é referência central da fé cristã, mas certamente é uma ocasião privilegiada para propor a conveniência da revisão de nossos esquemas teológicos a respeito da mesma.
 


Autor(a): Nilton Giese
Âmbito: IECLB / Sinodo: Sudeste / Paróquia: Belo Horizonte (MG)
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: Lucas / Capitulo: 22
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Meditação
ID: 37186
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O Senhor renova as minhas forças e me guia por caminhos certos, como Ele mesmo prometeu.
Salmo 23.3
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