Há malas que vêm para bem!

22/06/2007


A medonha peleja de Santa Esperança
contra o dragão da maldade que surgiu da lama
Um cordel para uma nação entre o espanto e o luto

Tudo se esboroa; o núcleo não se mantém;
pura anarquia espraia-se sobre o mundo;
Maré turvada de sangue avança
e afoga os ritos de inocência em toda parte;
Aos melhores falta convicção e os piores
estão cheios de intensidade passional.

(W. B Yeats - 1865-1939)

I - De como surgiu o repugnante dragão da lama

Depois que o pestilencial e repugnante dragão matou o último sinal de algo bom que havia no reino e no coração das pessoas, um pranto enorme ouviu-se da outra margem do Ipiranga. O rei decretou período de luto e recomendou que se orasse para Santa Esperança.

A história recente da república já registrou o memorável embate entre a esperança e o medo. Daquela feita, a primeira saiu vencedora e encheu de sonhos o país. Agora, a esperança está de volta à arena e as razões não são tão nobres. É um embate contra um novo adversário, a lama, que também atende pelo trivial apelido de corrupção. É uma velha conhecida da vida política brasileira. Nem por isso, o consideramos da família. Continua sendo um monstro a ser combatido, não obstante seus inúmeros nomes e  disfarces.

Não deixa de ser simbólico e anedótico que um dos envolvidos nestes últimos fatos tenha o significativo nome de Jacinto Lamas. De fato, não só ele, todos nós já sentimos a lama que ameaça fazer naufragar tudo o que havia ou parecia decente neste país.

II - De como um saco de vermes deixou duas ou três fascinantes idéias como herança para a teologia luterana.

Entre os que pranteavam e guardavam luto havia uma estranha estirpe que não se sabe bem como havia chegado ao reino. Viviam, entretanto, entre a pertença e o estranhamento. Lembraram-se, naqueles dias, que um saco de vermes, respeitado entre eles, havia lhes dado, antes da partida, um baú de idéias que deveria ser aberto quando chegasse a hora certa. Alguns dentre eles julgaram que a hora era esta.

Há na tradição luterana um realismo antropológico que não nos autoriza a considerar o ser humano além do que convém. Não se trata de pessimismo, mas de justa medida. Martinho Lutero (1483-1546), reformador da igreja, sintetizou sua compreensão do ser humano com a seguinte expressão: o ser humano é simultaneamente justo e pecador. Isto significa que não podemos nos iludir quanto à natureza humana. O pecado, ainda que tenha sido vencido por Cristo, continua fazendo parte da natureza e da história humana. Não há boa intenção, esforço ou capacidade humana ou de instituições que os coloque a salvo deste veredicto: existimos numa dinâmica que oscila entre a justiça e o pecado, entre o acerto e o erro, a perfeição e a precariedade. Por isso, Lutero alerta que não há como contornar as tentações e que isso não se modificará, pois temos de suportar as tentações e até estar atolados nelas; porém, oramos para não sucumbir aos seus apelos, para que não afoguemos nelas. Assim, a cristã e o cristão, ensina Lutero, estão sempre preparados e à espera do ataque contínuo das tentações. Entre as três formas de tentação que lista, Lutero enfatiza a que vem do próprio Satanás, pois seu propósito é arrancar-nos da fé, do amor e da esperança. Frise-se bem que esta compreensão da natureza humana não torna nossos erros (pecados) legítimos nem nos exime de procurar com toda a intensidade de nosso coração - no amor a Deus e ao próximo - agir com vigor para transformar o que deve ser transformado, ainda que saibamos de nossa frágil condição humana justa e pecadora.

É preciso também considerar uma outra contribuição de Lutero que aponta para um outro realismo, o realismo eclesiológico. Lutero chama atenção para o fato do Credo definir a Igreja (ecclesia) como comunhão do santos. Lutero afirma que isto corresponde a realidade fundamental da Igreja, pois ela, pela ação do Espírito, é reunião, comunhão dos santificados. Por ora, porém, somos apenas parcialmente puros e santos. O Espírito precisa trabalhar diligentemente em nós através da Palavra e do perdão rumo a esta santificação. O Espírito, então, concede, multiplica e fortalece a fé para nos manter firmes na esperança. Isto é o que ocorre na vida em comunidade. Para exemplificar, conto uma história que ouvi anos atrás. Diz a fábula que um grupo de roedores levava a sua vida em tranqüila rotina: trabalhavam, armazenavam, comiam, procriavam, etc. Todos cuidavam de suas rotineiras tarefas na época de colheita e esforçavam-se para que o grupo acumulasse o máximo possível para o tempo de inverno. Entretanto, havia um pequeno roedor que não se juntava ao grupo nestas tarefas rotineiras. Ele andava pelos campos sentados sob as flores coloridas por horas a fio. Outras vezes, eles o encontravam deitado sobre a relva macia, contemplando o sol. Inúmeras vezes viram-no à beira da fonte, mirando calmamente suas águas cristalinas. Estranhamente, passava manhãs inteiras como se estivesse em longas conversações com os pássaros. Voltava muitas tardes com cristais coloridos e folhas esquisitamente belas. Pois bem, o tempo passou e veio o inverno. Todos estavam na toca e a vida ia muito bem, pois tinham o necessário para enfrentar o tempo tenebroso daqueles dias ruins. O inverno, porém, parecia recusar-se a ir embora. As coisas foram ficando mais difíceis e os dias demoravam a passar: a comida rareava, a paciência minguava e o medo e a desesperança parecia dominar tudo. Então, aquele estranho roedorzinho que não trabalhara como os demais pediu a palavra. Raramente tinham ouvido sua voz. E quando falou sua voz encantou a todos, pois era calma, firme e parecia preencher todo o espaço vazio. Ele começou a falar das cores das flores e da sua beleza. Quando terminou, todos estavam estranhamente felizes, mais calmos, esperançosos e cheios de saudades das flores do campo. No outro dia, pediram que falasse novamente. Ele falou da relva macia e do calor do sol. Ao final, todos se sentiam aquecidos e confortados. No outro dia, tudo se repetiu e ele lembrou a todos do canto dos pássaros. Assim, durante aquele longo inverno, o roedorzinho foi animado a falar todos os dias e, ao contar aquelas sensações que ele acumulara enquanto todos acumulavam comida, fez com que todos percebessem que para viver, para sobreviver precisavam ser animados com a experiência essencial da vida boa que os aguardava depois que o inverno passasse. Sem aquela experiência animadora e esperançosa não havia como sobreviver e superar o tempo ruim. É assim. A vida em comunidade, a Igreja parece tantas vezes uma coisa inútil numa sociedade em que todos lutam violentamente pelas coisas primárias da vida (trabalho, comida, moradia, vestimenta, etc) e na qual somente o mal e a injustiça parecem triunfar. A comunidade parece uma coisa supérflua. Porém, na força do Espírito, a comunidade tem justamente a tarefa de nos lembrar que tudo o que Deus criou é belo, que somos justos, que somos santos, que há um futuro porque há a esperança que brota da vontade do Pai. Para isto servem a Palavra e o perdão: para nos manter firmes rumo ao reino de Deus.

Uma outra herança de Lutero tem sido gasta de forma equivocada. Usualmente, luteranos têm se referido à teologia luterana para sustentar uma separação radical entre Igreja e Estado. Lutero introduziu um realismo teológico justamente no que diz respeito à relação entre Igreja e Estado. Lutero fez pesadas críticas á igreja de seu tempo por ter se transformado em um poder meramente temporal e político, administrando de forma vil o perdão e a graça. Num famoso texto de 1520, À nobreza cristã da nação alemã, acerca do melhoramento do estamento cristão, Lutero distingue de forma clara as competências da Igreja e do Estado. Entretanto, a distinção de competências não autoriza imaginar uma separação ou autonomização absoluta de ambos. Ambos estão, em seu nascedouro, sob o Senhorio de Deus e têm como finalidade o ser humano. Assim, em seu texto, Lutero dignifica a função política e social e legitima a participação cristã neste âmbito. A Igreja, enquanto instituição social, será regulamentada pelo Estado. No entanto, a Igreja, quando proclama a vontade de Deus, interpela o Estado, criticando seus excessos, arbitrariedades e convocando a transformar situações de injustiça social e econômica. Isto Lutero exercita de forma exemplar no escrito mencionado (exige melhoria da educação, da economia, etc.). Entretanto, vale frisar que ambos, Igreja e Estado estão sob a proclamação e, portanto, sob o juízo de Deus. De forma mais complexa, é preciso dizer que o ser humano, a Igreja e o Estado estão enquadrados na dinâmica da luta de Deus contra as forças de Satanás, contras as forças da idolatria (injustiça, mentira, pecado, alienação, exploração, egoísmo, discriminação, morte, desesperança) para transformar em realidade o reino de Deus. Em outras palavras, a totalidade da realidade é atravessada pelas forças do velho (pecado) e do novo (justo). Velho é tudo aquilo que vai ser superado, embora pareça forte e atuante. Novo é aquilo que, da perspectiva do reino de Deus, vai triunfar definitivamente, embora pareça fraco e inexpressivo. O reino de Deus funciona, então, como critério e como reserva de sentido e de esperança para atuação dos crentes e da igreja, pois, enquanto ele não for uma realidade definitiva, não há lugar para ufanismos nem comodismos como o que parece novo, mas também não há lugar para derrotismos nem subserviência diante do que permanece velho.

III - De como da lama surgiu a vida

Enquanto todos lamentavam, no abismo profundo os minerais mesclavam seus elementos, cozinhando-os na lava incandescente da matéria. Quando chegou a hora, a terra vomitou a lama vulcânica que foi tomando a forma de montanhas, rochas, vales; foi adubando florestas e recobrindo oceanos para que a vida fosse possível.

3.1 - De como alvejar a moral na lama ou da ética quarada

No bairro da minha infância, muitas mães de família reforçavam a renda familiar lavando roupa para famílias ricas que moravam no centro da cidade. Nosso bairro era uma única rua de muitas cacimbas (cisternas), muito sol, muitos varais, muito vento e inumeráveis lençóis impecavelmente alvejados, tremulando ao vento. Corríamos pelos quintais, evitando trombar com aquele cenário multicolorido e surreal. Não era justo que a nossa alegria e a nossa vontade de viver manchasse os lençóis imaculados.

Lembro-me como se fosse hoje das conversas destas mulheres: como remover manchas, como alvejar sem estragar a roupa. Todas se orgulhavam dos seus métodos infalíveis. Os dedos viviam em frangalhos. Sim, naquela época, de raras máquinas de lavar, lavar consistia em atritar uma parte da roupa contra a outra. Roupas muitas encardidas, manchadas eram suavemente batidas contra uma pedra e postas para quarar (a roupa com sabão, depois de batida contra uma pedra, era estendida sobre o gramado para ficar um tempo sob sol. Anos depois a ciência me informou que o oxigênio liberado na fotossíntese do gramado tinha um efeito alvejante sobre as roupas).

Eram vidas simples, mas a limpeza, o dever, a palavra empenhada, a honra era coisas fundamentais. A sabedoria da roupa alvejada, batida contra a pedra, quarada ao sol era irmã de uma vida digna, limpa, alva, ou seja, eticamente quarada. Roupa batida, alvejada, quarada era contraparte laboral daquela ética e daquela forma de conduzir a vida moral.

O Brasil de hoje nasceu deste Brasil profundo, trabalhador e honrado, que quarava a vida como quarava a roupa. Ninguém consegue explicar como do orgulho pela limpeza, por uma roupa sem mancha, por uma vida alva e honrada chegamos ao despropósito de pensar que é possível alvejar a vida com lama, como querem nos fazer crer hoje. O que é uma grande verdade é que o Brasil de hoje precisa merecer aquele Brasil profundo de ontem, de gente digna e batalhadora, que lhe deu origem. Nenhum fato ou acontecimento tem o poder de apagar esta memória profunda do Brasil. Queremos crer que Lula, como disse, veio desse meio e que saberá encontrar uma forma de honrar esta memória profunda.

3.2 - E tomando um monte de barro ... De algumas lembranças do Éden (Gn 2.7)

Todos sabem isto: Deus cria do barro, ou da lama, se quisermos. Jesus, e isto poucos se lembram, cura com lama (Jo 9.6-7). Por que não da lama surgir a esperança de uma sociedade mais justa? Por que não da lama recriarmos o Brasil? Por que não da lama curarmos as chagas sociais?

E por que falar agora de esperança, de recriar e de curar? Ora, é preciso falar para que a lama não sufoque a esperança; para que os ritos de inocência (os que sonharam e sonham com um Brasil e um mundo melhor) não sejam esquecidos ou desdenhados como ilusões; para que aos bons e aos melhores não falte a convicção que é própria dos grandes sonhos, dos grandes desejos; para que os piores não posem de campeões morais, botando no peito a estrela da esperança - manchada por setores do PT - desdenhada por todos nós. Um país melhor precisa tornar-se uma obsessão de toda a sociedade.

Partidos são recipientes para os sonhos. É preciso crer que numa sociedade democrática os partidos possam ninar o sono para que sonhemos com a sociedade que merecemos. Se, neste caminho, os pesadelos nos assaltam não é o caso de desistirmos do sonho ou temermos o sono - como na apavorante história de Freddy Krügger -, mas reconhecermos e convivermos com a fragilidade característica dos empreendimentos humanos a saber, também dos partidos, sobretudo na atual estrutura e legislação partidária brasileira. É urgente, portanto, que redesenhemos a legislação que estrutura os recipientes (partidos) que acomodam nossos sonhos (interesses). Neste sentido, abusando do dito popular, precisamos dizer, então, que HÁ MALAS QUE VÊM PARA BEM.

IV - De como hastear a bandeira quarada da ética no mar de lama

Não podemos realizar um trabalho duradouro com relação
aos problemas da vida política e econômica, sem que os enfrentemos
como seres humanos desejosos de progredir na direção do pensamento ético. (...).
Toda a meditação devotada à ética tem por conseqüência um aumento
e um estímulo da mentalidade ética.

(Albert Schweitzer. Cultura e ética. 1923, p. 44)

4.1 - Dos equívocos, das mentiras e dos ideologismos

Não é admissível, em hipótese alguma, argumentar, em defesa do PT, que o dinheiro usado (para campanhas ou para o suposto mensalão) tinha um fim nobre, qual seja azeitar a travada e corrupta máquina do congresso para que as engrenagens girassem a favor da nação, aprovando projetos de interesse do país dentro de um programa de governo alinhado com a idéia de promoção de justiça social redistributiva, em síntese, alinhado com os interesses dos mais fracos. Esta ética, em que os fins se sobrepõem aos meios, é, na prática, um vale-tudo moral. Atribuída a Maquiavel, ela tem uma história na esquerda mundial e também na brasileira. Os partidos de esquerda e seus programas tendem a assumir feições messiânicas e, por isso, julgam que sua causa é tão nobre e tão pura que transcende os meios que devem ser usados para sua implementação. Todavia é preciso estar imbuído de extremo ideologismo, como classificou Arnaldo Jabor, para supor, ingenuamente, que meios ilícitos podem realizar um fim lícito sem contaminá-lo.

A ética, é preciso dizê-lo em alto e bom som, aponta para aquilo que pode ser diferente do que é, isto é, a perspectiva ética realiza uma ruptura, introduzindo em nossa compreensão a possibilidade de que o mundo como ele é está muito aquém do mundo como deve existir. A ética realiza, então, uma ruptura no nosso jeito de enxergar o mundo, ou seja, nossa visão passa a ser determinada pela possibilidade do mundo vir a cumprir a sua meta, transformando em realidade todo seu potencial. Nós, pela fé, sabemos a que o mundo está destinado, sabemos que sua meta é o reino de Deus. Sabemos também que esta meta já define agora o nosso agir, já dispõe os meios e instrumentos para sua realização.

4.2 - Da ética política da tradição luterana - Uma bandeira

O reino de Deus é uma imagem cristã para falar da plena realização da justiça de Deus. Como o reino de Deus não é uma realidade futura, mas é uma força presente e atuante, as/os cristãs/ãos lutam por uma sociedade justa, um mundo melhor e ele começa a acontecer ali onde cada um/a tem a possibilidade de acesso ao pão. E como ensinou Lutero, o pão são muitas coisas: Tudo o que se refere ao sustento e às necessidades da vida, como por exemplo: comida, bebida, roupa, calçado, casa, lar, meio de vida, dinheiro e bens, marido e esposa íntegros e fiéis, bom governo, bom tempo, paz, saúde, disciplina, honra amigos leais, bons vizinhos e coisas semelhantes.

O pão necessário à vida é também bom governo! E Deus sabe como precisamos desse pão, pois nossos governantes, nossos representantes torcem a justiça, negam o que é direito da população (Dt 16.18-20, Sl 82.2-4, Is 10.2, Jr 5.28, Mq 3.11) e correm atrás de subornos (Pv 17.8, Is 1.23, Is 5.23, Mq 7.3). São raros os que conseguem exercer o seu mandato público com isenção, justiça e atenção às necessidades da população.

Há, então, aqueles que, amaldiçoando a política, vêem nela o exclusivo domínio das forças demoníacas. Conclamam os cristãos a se afastarem dela para que não sejam maculados. Outros cristãos entram na política e atuam de forma tão lamentável que nos envergonham a todos. Nesse quadro tudo parece indicar que os cristãos não deveriam se envolver nas coisas públicas. No entanto, lemos no Salmo 115.16 que o céu é o céu do Senhor, mas a terra deu-a ele aos filhos dos homens. Temos, então, a capacidade e também o dever de cuidar da terra, pois tudo o que Deus criou é bom (Gn 1.31).

No Evangelho de Lucas é dito que Deus destituiu de seus tronos os poderosos. A propósito deste texto, Lutero, num texto escrito entre 1520-1, intitulado Magnificat , chama a atenção para o fato de que o Cântico de Maria não diz que Deus destruirá os tronos, pois enquanto a terra existir tem que haver autoridade, governo, poder e tronos. O que não se pode tolerar, diz Lutero, porque é contra a vontade de Deus, é o abuso do trono para infligir injustiça e violência ou que se faça uso dele em proveito próprio. Lutero, a partir do texto de Lucas, indica claramente o critério que deve nortear o governante justo: se ele fizer uso indevido do trono o próprio Deus o destituirá da sua função e exaltará os humildes e encherá de bens os famintos. Este é o critério: governar com olhar voltado para os humildes e famintos, para aqueles que não esperam nada a não ser a própria misericórdia de Deus.

Entretanto, estamos cientes de que a injustiça não é um problema localizado, circunstancial ou apenas ausência de conversão; injustiça é um sistema (Ec 5.8), um jeito de agir que atravessa toda a sociedade (Jr 5.1), também a brasileira. O suborno, por exemplo, é sempre uma relação onde alguém oferece e alguém aceita (Pv 17.8). Infringir a lei, burlar o direito, é uma praga que vai desde a mais simples infração de trânsito até o desvio de verba destinada à construção de hospitais ou escolas (Jó 20.19). Por essa razão, afirmamos que não adianta por remendo de pano novo em roupa velha (Mc 2.21). Precisamos de mudanças maiores: precisamos de uma nova cultura política em que o juízo corra como as águas e a justiça como um ribeiro perene (Am 5.24).

Ausentarmo-nos de uma participação como cidadãs/ãos na vida pública é fugir ao testemunho construtivo da nossa fé e, ao mesmo tempo, abandonar a nossa esperança. Porém, a prática exclusiva de uma justiça intra-muros (intra-comunitária, intra-eclesial) faria com que nossa ética não tivesse relevância alguma para a sociedade e ainda nos tornaria cúmplices da injustiça. Cremos que no caminho da justiça está a vida (Pv 11.19, 12.28) e entendemos que esta vida deve alcançar toda a sociedade para que todos possam viver em abundância (Jo 10.10).

Por todas essas razões, nós, cristãos luteranos, afirmamos nosso compromisso de trabalhar, como cidadãs/ãos, para uma sociedade onde a paz e a justiça se beijem, porque estamos convencidos de que é em paz que se semeia o fruto da justiça para os que promovem a paz (Tg 3.18). Queremos fazer isso através do nosso voto consciente, através da fiscalização ativa das atividades dos governantes e legisladores e de nossa atuação concreta, através de nossas instituições sociais, em favor dos excluídos, dos injustiçados, dos fracos.

Nossa esperança está expressa no grande sonho do profeta Isaías quando diz: O efeito da justiça será a paz, e o fruto da justiça repouso e segurança, para sempre. O (...) povo habitará em moradias de paz, em moradas bem seguras, e em lugares quietos e tranqüilos (Is 32.17-18). Portanto, às nossas mulheres e homens públicos deste país devemos dizer que todo poder e toda autoridade são sempre serviço (Mt 20.25-27) e aquela/e que anda em justiça, e fala o que é reto; o que despreza o ganho de opressão; o que com um gesto de mãos recusa aceitar suborno; (...), este habitará nas alturas; as fortalezas das rochas serão o seu alto refúgio, o seu pão lhe será dado, as suas águas serão certas (Is 33.15).

4.3 - Das tarefas urgentes e inadiáveis. Para cima com a bandeira, comunidades!

Esta tarefa é urgente, pois o depósito moral de Lula, acumulado durante as suas campanhas presidenciais (especialmente as realizadas contra Collor e contra Serra) tornou-se uma hipoteca moral. O tempo corre e não há sinais de que seja possível resgatá-la. Será preciso entregar o bem hipotecado - talvez, seja preciso admitir que houve benfeitorias inegáveis. O que deveria nos apavorar é que provavelmente o credor da hipoteca não seja a nação, a democracia, mas a voracidade rapinante do impressionante balcão de negócios que é o congresso nacional refém de uma forma oficializada de assalto aos cofres públicos que atende pelo nome de partidos.

Se isso se confirmar, assistiremos ao ocaso não apenas de uma impressionante figura pública, a de Lula, e de uma experiência partidária (a do PT, sem paralelo na América Latina), mas a um exemplo de aborto de um processo de consolidação da democracia e das instituições brasileiras. Embora seja uma experiência repetitiva, é preciso parar de recomeçar! Os nossos constantes recomeços têm significado única e exclusivamente a recomposição das mesmas forças retrógradas (elas rejuvenescem: é só analisar a empáfia moral do neto de Antônio Carlos Magalhães, que recentemente abriu mão de um mandato para não ser cassado, como mais novo bastião da moral política brasileira), continuístas e defensoras da ideologia do quanto pior melhor. Este cenário só favorece os inúmeros políticos, cujos feudos e práticas políticas estão acima, melhor, abaixo de qualquer patamar moral. O cenário é propício para que eles retomem o terreno perdido. Terreno perdido nas últimas eleições pelo esfacelamento dos clãs políticos por este país afora, como foi constatado nas pesquisas. E eles estão chegando com força, armados do seu moralismo de ocasião, revitalizado pela crise: é aquela figura do pai de família truculento e promíscuo que todos odeiam, mas a quem toda família acaba recorrendo nos momentos de instabilidade. É a vitória do moralismo imoral, como diria Galligaris. Talvez alguns digam: Trocamos seis por meia dúzia. A vitória do moralismo, no entanto, não tem qualquer equivalência. Qualquer situação é melhor do que a hegemonia deste ou qualquer tipo de moralismo.

A tarefa das/os cristãs/aos também é urgente por que há pergunta no ar: quem governa a crise que estamos vivendo? A imprensa, com sua habitual falta de humildade e autocrítica, não percebe que seu ímpeto caótico-investigativo faz o jogo dos setores mais conservadores do país. A imprensa não governa a crise. Ela simplesmente fabrica munição, inteligentemente utilizado por estes grupos conservadores. A imprensa, que se recusa a ter qualquer tipo de controle social, partilha, inconseqüentemente, do moralismo imoral de ocasião. A imprensa apaga a fogueira da crise com gasolina, porque isto vende mais jornal. O papel crítico da imprensa costuma ter a contra-face da conveniência.

O fato é que a crise está sem governo. Isto é péssimo! Neste vale-tudo, nesta noite moral, todos os ratos miam e todos os pseudo-gatos são pardos. Crise sem governo, sem rumo, tem, na política brasileira, favorecido sistematicamente os grupos políticos mais conservadores (oligárquicos) que têm dado as carta nos últimos decênios. É imperioso que a sociedade civil, os movimentos organizados, as igrejas, tenham a grandeza e a capacidade de, mirando para além da sobrevivência de Lula ou do PT, tomem o leme da crise e pressionem o congresso para que promova uma verdadeira drenagem da lama que, apodrecida, entope e empesta a vida das instituições nacionais.

A esperança não é propriedade particular do governo Lula nem foi seqüestrada por seu malogrado programa de governo. A esperança - lembram-se? - é uma das três grandes virtudes teologais cristãs (1 Co 13.13). A esperança é componente essencial de uma vida de fé cristã e ela não se limita a esta vida (1 Co 15.19). A esperança cristã é o que nos projeta continuamente para frente, para o futuro. A esperança é o motor interno da ética cristã, pois é esta esperança de um novo céu e nova terra nos quais habita justiça (2 Pe 3.13) que anima o/a crente , o/a torna um/a inconformado/a com toda provisoriedade de nossos arranjos pessoais e sociais. A fé esperançosa anseia sempre mais e vai procurando os meios de tornar concreto este anseio de um mundo melhor até o dia que Deus reservou para sua glória final.

                                                                               P. Dr. Valério Schaper


Autor(a): Valério Schaper
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6767
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