Tema oportuno e desafiador. Vai na contramão do existente. Na crise sobressai a lamentação, o pessimismo. Os noticiários não cansam de expor situações de crise e de miserabilidade existentes no mundo. Os nossos diálogos são permeados pela questão dos refugiados, salários atrasados e defasados, violência, corrupção. Este é o prato de cada dia que a situação oferece para ser digerido. Falar de gratidão não faz parte da nossa agenda.
A história de Noé também vem revelar uma situação de crise. Crise que começou bem antes dele e foi tomando proporções cada vez maiores no mundo, criado e amado por Deus. No princípio da criação, a humanidade já se revelava pecadora. A maldade apareceu com a mentira na relação entre o casal Adão e Eva. A crise está instalada e vai tomando proporções maiores. Vem a história do fratricídio entre Caim e Abel. Esta história culmina com a corrupção de todo o vivente. Isto é, as pessoas não se entendem mais, consequência da luta por poder que se revela na construção da torre de Babel.
A sensação é de que a maldade venceu neste mundo. A bondade perdeu para a maldade. Isto não é verdade! É preciso perceber os propósitos presentes contados pelo livro de Gênesis. Deus faz o belo, paraíso e tem o prazer de ter como companhia o homem e a mulher para cuidar e administrar este belo jardim.
Porém, neste belo jardim existe uma crise que vai se aprofundando. Esta crise aparece com a manifestação daquilo que há de pior no ser humano. O mal é tematizado, torna-se em manchete, como em nossos dias. O mal não deixa de ser um produto que se vende muito bem. A sensação que temos é: importa falar da façanha dos viventes terem expulso o Criador do paraíso que criou.
Não ignoramos os males deste século. Trazemos eles conosco numa de nossas mãos. Está em nosso corpo, em toda criação. Mas, trazemos noutra mão o reconhecimento da presença da bondade de Deus, experiência do quanto Deus faz em nossas vidas. Ora, se perdemos esta dimensão da vida, de gratidão, da percepção daquilo que recebemos de Deus, a consequência estará no nosso comportamento. A perda da gratidão se revela no relacionamento, na estupidez e na ignorância diante de toda a criação de Deus. O coração grato se expressa na relação de carinho com todos os viventes.
A história de Noé não é só desgraça. É uma história de graça e de gratidão. História de Noé quer apontar para situações novas da vida. Eis a questão desafiadora para as crises de nosso tempo.
Por isso, o que guardamos desta história de Noé: A terra não sucumbiu diante do caos. Deus preserva as funções originais da terra, dando sementes e que esta tenha as estações: inverno, primavera, verão, outono. Deus é Senhor sobre a criação. Esta é a boa nova que é para ser contada. Numa situação de crise parece que só contamos, só vemos o dilúvio acontecendo. Deus preserva o que é central para a nossa existência em meio ao caos. Perceber esta dimensão é a grande sabedoria da fé cristã.
O Antigo Testamento, especialmente, fala do juízo de Deus. Isto é a realidade. Mas é bem verdade que a bondade de Deus sempre prevaleceu sobre o juízo. Enquanto durar a terra, nenhuma força humana poderá destruí-la completamente. Deus não deixará de castigar a humanidade, mas não a destruirá. Noé se apega nesta certeza, neste poder divino. Tem no arco íris como sinal do cuidado de Deus.
A história de Noé aponta para uma experiência humana de salvação. Noé é o protótipo daquele que, apesar de, se reconhece como um agraciado de Deus. O sentir-se agraciado, lembrado por Deus, faz com que ele, ao sair da arca, construa um altar a Deus. A resposta de Noé em meio a desgraça, a forte crise que está vivendo é ir à comunidade e participar do culto de ação de graças com a sua família, com todos os animais, inclusive.
Apesar do pecado presente e expresso em meio ao caos, vai fazer um altar para agradecer. Deus preservou a nossa arca, ou seja, nos dando dia e noite e condições para plantar, semear e cultivar a terra. Deus preservou os nossos dons, a nossa capacidade para construir e reconstruir. Deus preservou em nós a esperança, pessoas amigas, família. Deus preserva a sua comunidade na qual podemos nos fortalecer mutuamente.
Ler a história de Noé focado meramente na destruição é apostar no fim sem reconstrução. Mas esta história quer ser contada a partir de um exemplo de alguém que se sente agraciado por Deus e sabe que a gratidão é o que preserva a sua vida e cria condições para recomeçar. Ao recomeçar irá rever como está navegando com a sua vida pelo mundo. Estar diante do altar é saber de onde estamos vindo e queremos ir. Isto se define no presente, prestando culto ao Deus criador.
A história do diluvio vem mostrar que situações de crise podem fazer brotar situações novas, até então inexistentes, mas tão sonhadas e desejadas. Veja um sonho que se realiza em meio a história do dilúvio: Toda a criação convive em paz na arca. A própria família está unida. Este olhar para esta história nos faz sonhar com uma criação pacificada. E, através da crise, podemos aprender a enxergar, ver o que antes não vimos. Novos valores são percebidos e desde sempre desejados. Na crise também sonhamos.
Quem sabe, lemos esta história pensando como Deus pode permitir tanta desgraça, tamanha crise. Mas esta não é a razão desta história estar registrada na Bíblia. Objetivo é revelar que enquanto existe dia e noite, as estações do ano, plantas crescendo e dando alimento aos filhos(as) de Deus, não há razão para temer. Apesar de, prevalecerá o amor, a misericórdia de Deus, mesmo que a entendemos parcialmente.
Importa perceber, valorizar os sinais do cuidado, do amor de Deus em meio à crise, aos dilúvios. Deus preserva a nossa arca para que continuemos a navegar.
Veja bem, Deus não faz mágica. Mas ele oportuniza situações nas quais aprendamos, desde a ter paciência, rever valores, reconstruir dimensões sagradas da vida e que foram substituídas pelo ter, pela ganância.
Vejamos, se temos este espaço no qual nos reunimos, deve-se a gratidão. Antes de nós, migrantes que aqui chegaram expressaram gratidão. Tal qual Noé, desembargando do navio e se preocuparam em construir um altar. Deus se fez presente pela esperança, pela vontade de recomeçar.
A existência da gratidão conduz ao comprometimento, alegria pela vida, a celebração, a sonhar, a ter comunhão, a solidariedade. E, se a família é importante, se a comunidade é um espaço que desejamos e que faça parte da nossa vida, se queremos uma cidade melhor, então é necessário revelar que desejamos isto. Gratidão vai se revelar em atitudes.
Agradecer em situação de crise é dizer com os nossos gestos, com as nossas forças, com aquilo que Deus concede de que cremos e estamos juntos na causa de Deus neste mundo. A crise não é o ponto final. Mas é começo, reconstrução. Esta começa diante do altar do nosso Criador.
Hoje nós somos Noé, somos agraciados pela fé, pela esperança que brota da salvação revelada em Jesus Cristo. Deus se compadece de cada um e nos chama para as oportunidades que nos são colocadas neste momento de nossa vida. Em meio a desgraça, a crise está a graça e a bondade de Deus. Deus não quer sofrimento, mas a partir dele pode estar o aprendizado para uma vida onde a graça pode ser bem mais abundante.
Ora, se não expressamos gratidão quando as coisas estão ruins, significa dar razão ao mal. Ser grato, independente das circunstâncias, é possível porque acreditamos e confiamos que o amor de Deus é maior e está presente em nossas vidas. Esta gratidão nos torna alegres, confiantes. Gratidão é possível porque acreditamos de que os males deste século não prevalecerão para sempre. Deus é maior! Gratidão nos preserva e aponta possibilidades para a nossa vida.
P. Werner Kiefer
Porto Alegre – Comunidade matriz