Gênesis 4.1-16 - 19º. DOMINGO APÓS TRINDADE
Meus caros estudantes e amigos!
No século X a. C. viveu no antigo Israel um dos mais arrebatadores autores bíblicos. Chamamo-lo de Javista por dar a Deus o nome de Javé, em seus escritos. Encontramos narrações suas logo nos primeiros capítulos da Bíblia São histórias que todos conhecem de sobra: Gn 2 - a criação do homem e do mundo, Gn 3 - a primeira ação do homem contra o Criador e a consequente expulsão do Éden, Gn 4 - Caim e Abel, e assim por diante.
Com tais histórias esse grande autor não quer apresentar uma descrição bucólica, pitoresca, de uma época paradisíaca remotíssima. Não quer servir um conto de fadas. O que ele quer é proclamar uma verdade, é dar um testemunho fundamental de fé para dentro do seu tempo e para a posteridade. O que o Javista quer dizer é isto: Deus criou o mundo e o homem perfeitos: Havia uma relação de perfeita harmonia e integridade entre homem e homem, entre o homem e a terra, entre o homem e os seres que o cercavam; não havia lutas e Guerras, não havia doenças, não havia fadiga estéril. Quem veio deturpar essa situação foi o homem. O homem afastou-se de Deus, voltou-se premeditada e calculadamente contra Deus e, com isso, trouxe sobre o mundo a inimizade, a luta, a guerra, a opressão e a miséria, a fome e a doença. O homem é o responsável por toda deturpação e desarmonia que há entre nas. g isto o que afirma o Javista com os primeiros capítulos do seu escrito, culminando com a expulsão do homem para fora do jardim do Éden. Em seguida, o Javista narra a história de Caim e Abel, que passamos a ler:
E o homem coabitou com Eva, sua mulher. Esta engravidou e deu à luz a Caim, explicando seu nome da seguinte maneira: Ganhei um filho-homem, com o auxílio de Javé. Pela segunda vez, deu à luz a Abel, seu irmão. Abel tornou-se pastor de ovelhas, e Caim, agricultor.
Passados muitos anos, aconteceu que, em certa oportunidade, Caim levou dos frutos da terra uma oferta a Javé. Abel, por sua vez, trouxe dos primeiros animais do seu rebanho e da sua gordura. Javé se agradou de Abel e de sua oferta, mas não se agradou de Caim e de sua oferta. Ao percebê-lo, Caim ficou furiosíssimo e fechou a carranca. Ao que Javé lhe falou: Por que estás furioso? E por que esta carranca fechada? Se tu agires bem, podes ficar de cabeça erguida, não é mesmo? Mas se não agires bem, o pecado fica de tocaia diante da porta, pronto para assaltar-te. No entanto, tu tens que dominá-lo. Disse então Caim a Abel seu irmão: Vamos ao campo! E, quando se encontravam no campo, Caim se levantou contra Abel, seu irmão, e o matou. Javé disse a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Sei eu lá! Sou eu, por acaso, a ama-seca do meu irmão? Javé inquiriu: Que foi que tu fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama da terra para mim. E agora - maldito és tu, banido da terra que abriu sua boca para tragar das tuas mãos o sangue do teu irmão. Pois, quando tu lavrares a terra, ela não mais te dará sua força. Tu serás fugitivo e errante sobre a terra. Então disse Caim a Javé: Meu castigo é grande demais para que eu o suporte. Hoje tu me expulsas da face da terra e eu preciso esconder-me da tua presença; eu serei fugitivo e errante sobre a terra e qualquer um que me encontrar me matará. Disse-lhe Javé: Isso não acontecerá! Se Caim for morto por alguém, será vingado sete vezes. E Javé colocou um sinal em Caim, para que não o matasse qualquer um que o encontrasse. Retirou-se Caim da presença de Javé, indo habitar na terra de Node, a leste do Éden.
II
Como vocês bem percebem com esta história, o Javista dá continuidade ao pensamento já esboçado na história da queda. E aqui ele diz: O mal torna-se cada vez maior, mais relevante. Antes fora preciso que a serpente tentasse a mulher, para que ela comesse do fruto. Agora não há mais tentação, e Caim mata seu irmão apesar de expressamente advertido. Antes fora um ato de desobediência aparentemente insignificante: o comer do fruto proibido; agora trata-se do assassinato do próprio irmão.
Com isso, o Javista quer deixar claro: O rompimento da relação com Deus (queda) trouxe a violência; se hoje há relações deturpadas entre os homens, isso se deve exclusivamente ao afastamento de Deus, é consequência das relações cortadas com Deus. Se entre nós há mendigos e famintos, se nas vilas atrás do Morro do Espelho há famílias inteiras vegetando, pedindo comida de porta em porta, sem assistência médica, sem INPS, sem trabalho, morrendo aos poucos; se entre nas há patrões que tiram tudo de seus empregados sem lhes pagar sequer o salário mínimo; se entre nós há um Esquadrão da Morte; se neste mundo há os refugiados do Paquistão e os refugiados palestinos; se neste mundo há uma guerra suja como a no Vietnã onde as pessoas morrem aos milhares sem mesmo saber por quê ... Tudo isso, diz-nos o Javista, Deus não quer e não botou no mundo. Tudo isso, quem trouxe foi o homem, pois no momento em que rasgou sua amizade com Deus, dilacerou também sua relação com o semelhante.
Estabelecida esta mensagem principal da nossa história, eu gostaria de chamar a atenção de vocês para alguns detalhes.
III
Primeiro ponto: Vejam bem por que Caim matou Abel. Javé se agradou de Abel e de sua oferta, mas no se agradou de Caim e de sua oferta. Ao percebê-lo, Caim ficou furiosíssimo e fechou a carranca.
Tudo começou porque Caim quis buscar a Deus. Em princípio, uma atitude altamente louvável. Caim buscava Javé. E dar? Daí Caim se enfurece. Caim se enfurece porque Javé não se comporta como Caim quer. Caim se enfurece porque Javé olhou para Abel e não para ele. Caim só admite que Javé faça a sua vontade. Caim tem uma ideia preconcebida de Javé - Javé tem que ser assim e assim - e se esta ideia não funcionar, Caim bota prá quebrar.
Como deve ser Javé, segundo Caim? Deve ser um Deus que olhe para ele, Caim. Se, além disso, ele olhar ou não para o seu irmão, não interessa. Caim quer o Deus-garantia, o Deus-segurança; ele quer a garantia e a segurança de contar com a benevolência do Criador. Sim, meus amidos, Caim busca Javé. Mas, na sua busca de Javé, o que importa para Caim no é Javé; o que importa para Caim é Caim.
IV
Segundo ponto: “Aí Javé disse a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu: Sei eu lá! Sou eu, por acaso, a ama-seca do meu irmão?
Caim buscava o Deus-garantia, o Deus-segurança, e agora dá de cara com o Deus-exigência, que quer saber: Onde está teu irmão? (Caim ainda não percebe, mas nós já notamos agora: Deus nem existe como Deus-garantia; Deus só existe na pergunta: Onde está teu irmão?!)
Mas Caim ainda nem percebe o que se passa. Tanto assim, que ainda se dá ao luxo de ser irônico: Sei eu lá! Sou eu por acaso, a ama-seca do meu irmão? - Dá vontade de berrar: Sim, senhor, Caim, você é a ama-seca do seu irmão. Buscar Javé, só como ama-seca do irmão.
Buscar Javé, meu irmão Caim, não se faz trazendo holocaustos, indo ao culto, estudando teologia, pensando e meditando. E nem orar e ler a Bíblia, meu irmão Caim, nem orar e ler a Bíblia bastam para levar a Javé. A Javé você só chega à medida em que responder à pergunta: Onde está teu irmão? E fora disso, Deus não existe - e se não existe, também não pode ser encontrado. Fora disso, Deus é um abismo sem fundo, é um alvo mergulhado na escuridão, é fossa sem fim. Mais, fora disso, Deus se transforma em desespero, depressão, neurose - é falta de fé, perplexidade e desnorteio. Buscar Deus, sem ser ama-seca do irmão, é buscar o inexistente - eu diria até, o diabólico. Deus só existe como exigência, como desafio: Onde está teu irmão ?
V
Terceiro ponto: Hoje tu me expulsas da face da terra e eu preciso esconder-me da tua presença. Está aí o resultado. A busca egoísta do Deus-garantia, do Deus-segurança, leva aonde? Leva exatamente ao oposto, á perda de Deus, ao afastamento de Deus.
Minha gente, se tudo isso é verdade - se Deus não existe fora da pergunta: Onde esta teu irmão? e se toda procura fora dessa pergunta leva a um afastamento de Deus - vejam as implicações que isto tem para a busca de Deus nesta Faculdade e nas nossas comunidades.
Esta verdade decreta a falência da procura puramente intelectual, científica, filosófico-teológica. Decreta a falência de quem procura Deus na escrivaninha, com sua perspicácia e inteligência, apenas nas teologias de grandes pensadores - esquivando-se no momento em que cai a exigência, tirando o corpo fora no momento em que vem a pergunta: Onde esta teu irmão? - para mim, esta aí a razão de muita fossa curtida nesta faculdade.
Mas não só isso. Se é verdade que Deus só existe na pergunta: Onde está teu irmão?, isso vem decretar também a falência e esterilidade de outro tipo de procura. Daquela procura que se limita à meditação, à leitura bíblica, à oração - sim, à masturbação religiosa em grupinhos embalados na certeza de sua fé e salvação. Aqui talvez não haja fossa. Mas seria melhor que houvesse. Porque em vez de fossa, talvez haja cegueira. Uma cegueira satisfeita, que pensa ter achado Deus, mas na verdade encontrou um ídolo, um Deus como Caim queria, um Deus que providencie a minha salvação e me dê paz de espírito.
Buscar Deus? Lendo a Bíblia - sim, senhor. Meditando - evidentemente. Orando - claro. Pesquisando - também. Mas sempre enfrentando a arrasante pergunta: Onde está teu irmão? Onde está teu pai, tua mãe, tua esposa, teu marido, teu filho? Onde está teu vizinho de quarto, teu colega? Onde está o que precisa de ti? Onde está teu subordinado, teu concidadão? Onde está teu irmão brasileiro de salário mínimo ou sem salário mínimo, teu irmão preso, teu irmão faminto, teu irmão doente, teu irmão desencontrado, teu irmão toxicômano, teu irmão perseguido?
Onde está ele ? Lá está Deus! Amém.
Veja:
Nelson Kirst
Vai e fala! - Prédicas
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS