TUDO SE TRANSFORMARÁ
Gênesis 32.26
Se nesta última noite do ano tivermos a coragem de procurar, por poucos momentos, a solidão, passaremos por horas especiais. Virão os pensamentos. E os pensamentos excitarão o nosso íntimo. Surgirá toda espécie de sentimentos que nos prenderão.
Revivemos mais uma vez as horas em que estávamos alegres. Foram concedidas a cada um de nós. Talvez tenha havido uma dentre elas, maior, mais lúcida do que qualquer outra; uma hora em que o coração jubilava ou então calava de tanta felicidade. É belo recordar-se. Perderíamos muito, se nos esquecêssemos dos belos e grandes acontecimentos, em lugar de guardá-los como sagrados na nossa memória. Mas, ao mesmo tempo, não podemos evitar que uma certa dor e saudade penetre em nosso coração. Porque tudo foi, tudo passou. E o que resta?
E olhamos para a frente. Esperamos que o novo ano nos conceda uma vida cheia e rica. Sempre trazemos conosco a saudade, o sentimento de uma lacuna em nossa vida, de que nos falte ainda algo maior, algo mais importante. De ano para ano se torna mais intenso o desejo, que a nossa vida seja preenchida de um fator veramente grande, alto, permanente. Mas, dolorosamente temos que chegar à conclusão: tudo que é novo, tudo que vem a nós em beleza radiante, envelhece. Também o que é belo há de morrer. Uma decepção não é poupada a ninguém. Nada nos pode satisfazer, porque Deus nos deu em nosso coração a saudade, a fome e sede, de eternidade.
No silêncio da última hora do ano vem a nós também a lembrança das horas sombrias, pelas quais passamos durante o ano a findar-se. Não eram elas mais do que as alegres? Quão profundo é o mar dos sofrimentos! Um coração foi ferido, e não sara mais a ferida. E o homem tem que sofrê-lo. De nada lhe vale revoltar-se. Fechou-se um caminho. Ficou destruído o que era caro. Desfizeram-se amizades. Ficou o que causa dor. Muitos têm que passar por sofrimentos indizíveis. E vem a lembrança das pequenas horas cotidianas, incolores, de desagradáveis, paupérrimas experiências. Compreendemos muito bem se alguém disser: Não quero essas lembranças. não quero pensar, porque não quero ficar triste. Por isso, procuremos companhia alegre, e sejamos alegres nesta noite. Mas, de nada nos vale essa tentativa, e ajudar não nos pode. Existe, porém, uma outra possibilidade : a de procurar a presença de Deus. Como o fez o homem da Bíblia que também não chegou a termo consigo e com sua vida. Mas ele sabe: Deus espera pelo homem, pelo seu filho. E Deus quer abençoá-lo, isto é, quer dar ao homem o que ele não tem, mas o que precisa.
Deixa Deus falar contigo na noite de Silvestre. Ele tem algo a dizer-te. Estar sozinho com o eterno Deus é a mais fértil solidão. Ele quer pôr em tua alma a verdade, quer dar-te a certeza: Eu sou o Senhor, teu Deus, o criador, o conservador. Tem em suas mãos o mundo todo. É Ele o destino dos povos, também do teu povo. E Ele, o eterno Deus e Senhor de todo o universo, não despreza a tua sorte individual. A ti Ele diz: És considerado de valor diante de meus olhos, eu te amo. (Is. 43,4) Tudo, pelo que passas, seja alegria, seja dor, vem de Deus. Ele dá-lhe a ordem e o lugar que lhe compete em tua vida. Por isso deves aceitar cada experiência, pela qual passas, das mãos de Deus como dádiva sua. Deus conduz pelas alturas de felicidade reluzente e pelas profundezas de amargos sofrimentos. Ele tira o que nos é mais caro, para dar-se a si mesmo a nós. Ele corta laços firmes, para ligar-nos a si mesmo. Ele conduz-nos ao deserto, para fazer-nos ver a sua glória. Deixa cair-nos no abismo, para fazer-nos experimentar a sua mão poderosa. Tudo é graça divina, não só a felicidade, mas também o pesar. Deus, em seu amor incomparável, quer, com tudo, que obtenhamos a coroa, que alcancemos a pátria da luz, da verdade, a casa paterna.
Eu não te deixo a não ser que tu me abençoes. Assim o façamos! Ele quer que a nossa vida seja preenchida por Ele mesmo, que a experiência que nos faz ricos seja Deus. Então tudo se transformará. Não poderás mais queixar-te e lamentar, de desespero, ódio e tristeza. Ele põe a sua paz no teu coração. Nessa paz tu te despedes do ano consumado e guiado por sua mão continuas tranquilo o teu caminho, sabendo: Tu sabes o caminho, tu me conduzes. Ser tranquilo e alegre na paz de Deus, sofrer na paz de Deus, essa é a sua bênção.
Mas, quando estivermos assim sozinhos com Deus, passaremos também por um fato doloroso: vir-nos-á a recordação daquilo que fizemos e do que não fizemos. Sim, se em cada momento tivéssemos mantido a atitude de filhos de Deus! Certamente haverá quem possa lembrar-se com orgulho do que pôde realizar! Mas muitas vezes éramos pequenos, muito pobres. Nem realizamos o que queríamos. E o que queríamos nem sempre foi digno: amarga é essa recordação. Tudo passa, sim, mas o que passou torna-se fato irrevogável. O que fizemos formou-se. Favoreceu ou impediu o nosso crescimento. O que fizemos, existe, e exerce a sua influência, e não o podemos impedir.
Mas justamente sob essa amarga experiência vem-nos a alegre certeza: Eu posso deixar-me abençoar pelo santo Deus. Contigo está o perdão! Deus nos abençoa deixando sobre nós a sua chama purificadora, que destroi e devora tudo que não é puro na sua luz. Dá-nos a sua santa chama em nosso coração, para que sejamos elevados a um novo estado, o estado dos filhos de Deus.
Sinos batem à meia-noite. À despedida, sim. Mas quem se deixa abençoar, ouve por elas os sinos da pátria. E a paz divina entra no seu coração. E andarás o teu caminho, e sobre ti resplandecerá a alvorada da eternidade.
Pastor Ernesto Schlieper
Silvestre de 1944, Porto Alegre
Veja:
Testemunho Evangélico na América Latina
Editora Sinodal
São Leopoldo - RS