Prédica: Gênesis 2.7-9,15-17;3.1-7
Leituras: Romanos 5.12(13-16), 17-19 e Mateus 4.1-11
Autor: Norberto Garin
Data Litúrgica: 1º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 28/02/1993
Proclamar Libertação - Volume: XVIII
1. Considerações sobre elementos de exegese
O texto de Gn 2.4 a 3.24 forma um conjunto e tem encontrado, no meio cristão, uma gama variada de interpretações. Estas vão desde um literalismo inconsequente até um limite de criatividade que extrapola os recursos da hermenêutica. Apesar de formar um conjunto, não quer dizer que no todo proceda da mesma época. Cremos que esta perícope tenha surgido durante a terceira monarquia — período de Salomão.
O texto é facilmente identificado com javista, que tem como uma das características ressaltar o jovem reino de Davi e Salomão como uma epopeia nacional. Transparece sua opção clara pela tribo de Judá como central no conjunto das tribos de Israel.
Outra característica importante a ressaltar do escritor javista em sua formulação literária é a concepção de Deus como ser humano. Ele tem anseios, comete enganos, mente, arrepende-se, tem braços, pernas, trabalha com as mãos e anda pelo jardim ao cair da tarde. Dentro dessa visão e diferentemente de outras fontes, Deus não é onisciente. Ele precisa, por exemplo, ir a Sodoma e Gomorra para verificar se seus cidadãos estão cometendo todos aqueles pecados de que se fala (Gn 18.21). Necessita chamar o homem e a mulher para poder vê-los, pois estes se escondem da presença divina (Gn 3.8).
Outro elemento que entra na composição deste texto e que, inclusive, é estranho à tradição original de Israel é a serpente. Não podemos esquecer que a serpente é o símbolo do poder do Faraó, o grande soberano da maior potência mundial da época. A própria descrição do Éden carrega consigo elementos pertencentes aos babilônicos. A palavra hebraica 'éden tem uma semelhança bastante estreita com edinu, do babilônico. Quer dizer planície fértil. Com muita probabilidade, o termo refere-se a uma região ao sul da Mesopotâmia, que é de difícil localização. A raiz hebraica 'dn sugere o termo delícias. Por essa razão e coerente com o texto, a versão grega da Bíblia traduz esse termo por paradeisos — ou simplesmente jardim das delícias, completamente oposta à tradução antiga e até admitida dos termos babilônicos edinu: estepe, deserto.
Na antiguidade, entre as religiões presentes em diversas civilizações do Oriente Médio, a representação dos deuses tomava a imagem dos poderosos da terra. Como os reis viviam em palácios cercados de jardins com toda a sorte de árvores, flores, frutos e rios, assim também a habitação dos deuses era um paraíso onde corria a água da vida, que concedia a eternidade aos imortais. Essa ideologia passa com muita facilidade para o texto bíblico e, de forma clara, aparece nesta versão javista da criação. O escritor deixa entrever que a vocação do ser humano no Antigo Testamento é reencontrar o velho éden perdido e assim adquirir a imortalidade.
Como já foi referido acima, está ligada ao paraíso a imagem da árvore da vida — 'ets hahayyin. É um símbolo da antiguidade, conhecida no Oriente Próximo como imortalidade (Pv 3.13-18). Em si, a árvore é o sinal tocável da força da criação divina. Ela morre no inverno, mas ressuscita na primavera, manifestando toda a força e o vigor da vida. Em Ez 17.22ss., ela vai se tornar o símbolo do Reino de Deus. Da mesma forma será citada por Mateus 13.31s. como uma parábola do Reino contada por Jesus, comparando o crescimento do Reino ao crescimento de uma mostarda, que começa pequena numa das menores sementes, mas que se torna frondosa, onde os pássaros vão se aninhar. Será finalmente retomada em Ap 22.2 como representação do Messias que traz a vida eterna e finalmente realiza o projeto divino.
Ligada à presença da 'ets ha hayyin está a v. èts hadda' at tob vara' — árvore do conhecimento do bem e do mal. Por muito tempo, foi usada em pregações puritanas para provar o ingresso do pecado na raça humana. Certamente, na visão javista, isso não tinha o menor significado. O conhecimento do bem e do mal não estava na esfera do julgamento moral. Referia-se principalmente à pretensão do ser humano de conhecer ele mesmo o que é melhor para o mundo. E uma usurpação da qualidade divina de conhecer a verdadeira justiça. Tem a dimensão de se projetar para o futuro na busca de escolher o melhor destino para a criação. Essa é uma atribuição de Deus. O homem e a mulher, quando se atribuem isso, trilham os caminhos do poder e da ganância, descobrindo-se nus.
O javista parece brincar com o som das palavras. Toma a raiz de um termo para construir outro bem diferente, mas inteiramente ligado. Um desses exemplos é o jogo de termos entre 'adam e 'adamah.'adamah é um termo hebraico que significa solo, terra, barro, 'adam, da mesma raiz de 'adamah, quer dizer homem (ser humano, humanidade). De certa forma, o javista está tentando nos passar a ideia de que o ser humano é uma parte do solo, que, de repente, foi moldado e adquiriu o sopro dado por Yahweh e passou a ser um vivente, uma parte do solo animada. Portanto, não há separação entre o ser humano e a terra. Deve-se analisar e salientar que 'adamah é sempre a parte cultivável da terra, aquilo que é fértil. É, portanto, significativo relacionar e resgatar o sentido de Oleiro, Vaso e Terra (Yahweh, 'adam e 'adamah).
A 'adamah constitui o quadro providencial de toda a vida. Dessa forma, o pá pel de 'adam é fundamental, visto que Yahweh o entregou a 'adamah: Os céus pertencem a Yahweh, mas a terra deu-a ele aos filhos dos homens (SI 115.16).
É importante observar que essa expressão javista falando da importância da terra para o ser humano é comum às civilizações do Antigo Oriente Próximo. Nessas aparece a menção da terra-mãe, terra-mulher.
2. Considerações para auxílios homiléticos
O texto escolhido para esse domingo começa falando sobre a formação do homem e de uma forma significativa. Diz o texto que então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo (Gn 2.7). Se considerarmos o material que mencionamos no auxílio exegético, vamos concluir, com toda a possibilidade e liberdade, que Deus estava fazendo um ser saído da terra. Tomou uma parte daquilo que ele mesmo criara e realizou uma outra obra de sua criação. A ligação do ser humano à terra é tão íntima, que o afastamento ou a separação desses dois elementos da criação é um perigoso risco. Pode-se dizer que provocar essa separação é provocar a morte do próprio ser humano, pois, através da morte, finalmente ele consegue voltar ao convívio de sua natural origem: Pois tu é pó e ao pó tornarás (Gn 3.19). Hoje, em modernos tratamentos psicológicos e mesmo dentro da Terapia Ocupacional, a utilização da terra (argila) é uma poderosa técnica na recuperação afetiva de muitos pacientes.
Por outro lado, não podemos esquecer que este texto foi composto durante a monarquia, justamente num tempo em que a terra, como espaço de vida, passava a ser escassa por causa da acumulação de terra por parte de alguns. Esses, possuindo recursos, resgatavam os endividados por causa do tributo.
Neste tempo de Quaresma, seria bom lembrar o ministério e a vida de Jesus. Sua obra foi significativa no estabelecimento do Reino de Deus. Com coragem proclamou seus limites e sua expansão. Finalmente, quando já não era mais possível continuar vivo por causa de toda a perseguição do poder político/religioso, aceita voltar ao pó. Seu corpo é levado à sepultura e, mais uma vez, como no Gênesis, Iahweh insuflou em suas narinas (do ser humano) um hálito de vida (Gn 2.7). Insufla agora o hálito santo de vida. Se, na origem do ser humano, o hálito de vida lhe provocou uma vida precária, agora, depois de descer ao pó, Iahweh insufla o Espírito Santo, e Jesus passa a ser um novo ser vivente, cuja vida não é mais precária, mas abundante, eterna — é a ressurreição. Sem o pó, sem a terra, não haveria ressurreição. Se, por um lado, a vida do ser humano está estreitamente ligada à terra, por outro, a ressurreição só é possível através da terra.
Entre os elementos significativos deste texto podemos também ressaltar, em nossa mensagem, a presença das árvores no meio do jardim. Elas são formosas de ver e boas de comer (Gn 2.9). Podemos relacionar essa passagem bíblica à concepção paradisíaca do javista: o sonho de que todo ser humano possa habitar um lugar cheio de vida em oposição ao deserto e à estepe, que fazia parte do cenário dos pobres apirus que margeavam o cenário das planícies agricultáveis. A árvore do conhecimento do bem e do mal representa, com muita propriedade, a sede que o ser humano sempre alimenta de se tornar o centro ético do universo. Ele quer ser a única norma para todos os demais seres, inclusive os outros seres humanos. A árvore da vida é a aspiração maior com que ele sonha todos os dias. É a posse da vida plena sem limites. Porém, só é possível encontrar e comer do fruto dessa árvore da vida quando nos aproximamos de Cristo Jesus.
Quando o ser humano come da árvore do conhecimento do bem e do mal, diz o texto, os seus olhos se abrem e ele se descobre nu. Isso equivale a dizer que, quando o ser humano se apossa do poder de decidir sobre tudo a seu redor, descobre-se frágil. Sua astuta intenção de manobrar e enrolar seu semelhante torna-se clara como a luz do dia. Então, ele já não consegue esconder seu golpe. Sua desonestidade fica escancarada, de forma que todos podem ver sua nudez ética.
3. Considerações litúrgicas
Uma sugestão para aproveitamento litúrgico deste texto é preparar para a celebração uma porção significativa de argila, suficiente para que cada celebrante (pastor e povo) possa dispor de uma parte. Antes da leitura do texto, o pastor ou pastora, ou mesmo um(a) dirigente, solicita que cada um tome a sua parte de argila e modele algo com ela. Alguma coisa significativa em sua vida nos últimos dias.
Após a conclusão dessa tarefa, a pessoa que está dirigindo a celebração solicita que todos coloquem suas criações sobre uma mesa à frente da congregação, representando o resultado da criação do grupo.
Outra alternativa, se o grupo for pequeno, é solicitar que cada um(a) fale sobre sua criação e verbalize o significado de sua criação pessoal.
Após esse momento, o texto é lido e, então, a pessoa que fizer a homilia ressalta o significado da terra/barro/pó para o ser humano, sua estreita ligação. Pode também unir o significado perfeito (que possui vida) de Iahweh e a criação imperfeita do ser humano, que, por mais bem modelada, não possui vida. Então será possível relacionar isso com a nova criação de Deus: a vida plena que vem de Cristo e de seu reino.
Outra alternativa é ter, no ambiente de culto, uma árvore, que pode ser estilizada através de um galho. Nele podem ser colocadas várias folhas recortadas em cartolina, sobre as quais as pessoas escrevem alguma coisa. Ela simboliza a árvore da vida, que é Cristo Jesus. Através dos nomes de todos os participantes, teria o simbolismo de que os nomes de todos estão ligados à árvore da vida. É importante ressaltar, na pregação, que o nome das pessoas só está ligado à árvore da vida enquanto atuantes no novo reino de Cristo Jesus, buscando sua justiça e sua paz.
Outra alternativa litúrgica é conseguir uma serpente (viva) e trazê-la ao ambiente do culto. Ela pode ser interpretada como a presença da inquietação do ser humano, que não quer de forma nenhuma se acomodar às normas pré-estabelecidas que emanam do poder e se destinam a controlar a vida das pessoas, para manter e submeter um sistema, na maioria das vezes, de privilégios de alguns e sacrifícios da maioria.