Prédica: Gálatas 5.1-11
Autor: Arnoldo Mädche
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Proclamar Libertação - Volume: I
Tema: Dia da Reforma
I - Considerações sobre o texto
O aparato fornece para o primeiro versículo três opções de leitura. Os comentaristas consultados (Schlier, Ragnar e Oepke) aceitam a versão dos manuscritos egípcios, que apresentam então o seguinte sentido: 1) Cristo trouxe liberdade que cabe aos emancipados (filhos livres!) e 2) Com a consumação desse ato surge a tarefa de se orientar na liberdade e de se viver como homem livre. K. H. Rengstorf comprovou (ThLZ 76,1951, col. 659-662) que se encontra implícito nessa passagem o termo técnico do direito judeu a respeito da escravidão: a compra da 1iberdade! O direito exige um ato de compra, mas também assegura uma nova situação de vida e ação aos beneficiados .
O texto, no entanto, confirma uma segunda realidade sempre presente para o crente cristão: a ameaça da liberdade! E Paulo em suas cartas cita três ameaças:
1) A ameaça do pecado (Rm 6.18-23; Jesus em Jo 8.31-36);
2)A ameaça da lei (Rm 7.25 a 8.2; Gl 2.4; 4.21-31);
3) A ameaça da morte (Rm 6.21ss e 8.21).
Em nosso texto é clara a referência da lei da circuncisão como ameaça à liberdade que Cristo resgatou. Os gálatas esqueceram (4.9!) que Deus os aceitou em Cristo, na graça, por meio do poder do Espírito de Deus que age na fé e se exprime no amor. A colocação de Paulo é radical: ou Cristo ou a lei! E com isso chega ao status confessionis da fé cristã, ou seja, a pregação da cruz é suficiente para a salvação do homem. Nos versículos 5 e 6 há umaesperança de que Deus aceitará Paulo e acompanhantes na sua graça. A libertação, pois, embora consumada, não é propriedade dos homens. Ela permanece como um poder que existe na fé. A fé não é um estado perene. Ela acontece e sofre a descontinuidade. O versículo 11 é um tanto obscuro. Os comentaristas não apresentam uma saída clara. Seria, por acaso, uma passagem dita aos entusiastas que pretendiam ignorar qualquer tipo de disciplina? Seria a necessidade de ser perseguido como sinal de apostolado (vide 2 Co 12.12)? Teria algum relacionamento com a circuncisão de Timóteo em 16.3? Permanece, no entanto, o fato de que para Paulo há o contraste entrega cruz, que é válida para todos os povos, e a lei, que é válida exclusivamente para os judeus (Bring). A lei quer substituir a graça, e por isso há tréguas na acusação de Paulo. No versículo 12 ele sugere uma medida sarcástica e absurda para justamente acentuar esta incompatibilidade entre cruz e lei.
II – Meditação
Eu creio que a libertação trazida por Cristo significa concretamente um estar-a-serviço permanente no Reino de Deus. Permanente naquele sentido do orai sem cessar (1 Ts 5.17). E nesta ocupação com e no Reino de Deus não nos são exigidas coisas de anjos, mas sim coisas bem humanas como: boa vontade, disciplina, humildade, coragem, alegria, choro, luta... A reunião dessa manifestação é difícil de se encontrar na vida da comunidade em que tradicionalmente vivemos.
Por isso acho fundamental propor aos membros, nós mesmos, a meditação sobre o tema da liberdade. E nisto não podemos esquecer as situações bem concretas da vida atual. Onde está a liberdade que Cristo me presenteou para viver na comunidade? Onde está a liberdade para ter tempo para Deus e para o próximo? Encontramos pessoas realmente super-ocupadas profissional e socialmente (inclusive pastores). Mas a questão decisiva é: Cristo me libertou para viver o Reino de Deus! A falta de tempo, argumento básico para se omitir do engajamento na comunidade, é a falta de prioridade para Deus! A luta pelo status social e econômico não justifica a acomodação e omissão no Reino de Deus.
O apóstolo Paulo é um homem de seu tempo e que reagiu segundo sua cultura. Ele falou do trinômio: libertação da lei, do pecado e da morte. São realidades e valores de seu mundo. Hoje e perante a comunidade somos chamados a comunicar essas dimensões universalistas - macro-realidades - no específico de cada dia. O macro no micro. A libertação assim colocada deveria, pois, mexer muito mais com os nervos e músculos da comunidade. Penso nesses muitos pequenos agricultores que vegetam por falta de terras mais produtíveis! Por que a Reforma Agrária, anunciada por sucessivos governos, fica no verbalismo demagógico? Penso nos sindicatos sem poder de reivindicação, descaracterizados em agências assistenciais?! Penso nas escolas de baixo nível pedagógico, bitolando gerações inteiras! Penso na religiosidade explorada em termos de superstições e crendices, com a conivência das autoridades públicas! Penso na miséria estabelecida como regra a longo prazo. Penso nas arbitrariedades, na corrupção administrativa massacrando o pequeno homem e enriquecendo o desonesto!
A teologia da libertação (movimento de origens latino-americanas) tem procurado motivar uma libertação que ultrapasse os valores cósmicos da metafísica e magia dos recintos fechados do culto irresponsável a Deus. Indica concretamente que a libertação inicia também com a eliminação de tudo aquilo que impede o homem de ser mais humano. Eliminar é uma palavra muito concreta no Tercei ro Mundo! Duvido que possamos passar por ela sem arranhões ou sem carregarmos um pedaço da cruz de Cristo. Para que surjam novas realidades é imprescindível que estejamos dispostos a agir comunitariamente, jogando pela janela as realidades desajustadas e imprestáveis. A via negativa, que incluí eliminação, não deve ser completamente estranha às comunidades. Os mandamentos do Sinai não são assim entendidos pelas comunidades? Só é possível negar o furto, a prostituição, o assassinato, porque existe o primeiro mandamento. Da mesma forma só é possível eliminar realidades injustas, porque Cristo nos libertou para isso. A via negativa, porém, não esgota o serviço da comunidade. Creio que o versículo 6 (a fé que age por meio do amor) fala de uma ação positiva e reintegradora. A eliminação deve ser completada pelo instrumento do amor. A comunidade que age em fé não pode se negar ao amor. A comunidade da fé como comunidade do amor é fruto da liberdade comprada para nós por Cristo. E são muitas as práticas de amor na comunidade, mesmo que estejam escondidas institucionalmente: as coletas beneficentes, a Santa Ceia como ato de integração, o apadrinhamento como responsabilidade pelos outros, o exercício coletivo de viver em comunidade assumindo compromissos humanos e de fé. São formas tradicionais que possuem o potencial do amor. A tentação está em adorar o meio, que é a forma, e esquecer o fim, que é o amor. Onde o objetivo não for mais realizável, ali é chegado o momento da libertação, melhor, da eliminação.
Lutero nos deixou essa frase conscientizadora:O cristão é senhor de tudo, e não está submetido a nada;... o cristão é o servidor fidelíssimo de todos, o servo de todos. Vejo aqui a correspondência de que a liberdade deve ser completada pelo serviço do amor. Esta tradição neotestamentária , assumida pelo luteranismo, faz parte de nossa identidade. E nessa identidade não pode haver concessão - seja de correntes teológicas ou de partidarismo sócio-político dentro da IECLB. Lutero também disse: Um cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e em seu próximo; em Cristo, pela fé; no próximo, pelo amor.”
Só resta à comunidade assumir sua identidade. Usar sua inteligência de fé e a criatividade da fantasia são questões práticas de cada qual. A questão central para todos, porém, permanece: Cristo já nos libertou como promessa, e para o que crê nessa promessa isto já hoje implica consequências para o Reino de Deus que age por meio do amor!
III – Para a pregação
Creio que para a pregação de púlpito bastaria a leitura dos versículos 1 a 6 (idem Steck, GPM, ano 59,caderno 8, agosto de 1970, páginas 415-424), e isso pelas seguintes razões: 1) Os assuntos libertação e fé que age por meio do amor estão ali concentrados; 2) as dificuldades exegéticas do versículo 11.
Deveriam transparecer três momentos. Na primeira parte, ocupar-se com o texto de Gl 5- Os temas já acentuados na meditação são mais concretos do que discutir o assunto Cristo ou lei. No segundo passo, enfocar Lutero e sua liberdade de crítica às estruturas vigentes, seus passos concretos de eliminação e construção para uma nova comunidade. Como terceiro passo, refletir a identidade da comunidade atual com a linha neotestamentária e da Reforma. Uma questão fundamental para toda a pregação é colocar o desafio da fé contando com as chances reais de realização entre os ouvintes. Uma exigência fora da realidade apenas cria mais acomodação e permanece no campo da ¨moralina¨.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia