Fé e política

22/06/2007

Quando o reformador Martim Lutero explica o significado da prece o pão nosso de cada dia nos da hoje, diz que pão de cada dia significa tudo o que pertence ao sustento e às necessidades da vida, como: comida, bebida, vestes, calçado, casa, lar, campos, gado, dinheiro, bens, consorte piedosa, filhos piedosos, empregados bons, superiores piedosos e fiéis, bom governo, bom tem­po, paz, saúde, disciplina, honra, leais amigos, vizinhos fiéis e coisas semelhantes. O pão vai dos sapatos ao gover­no, envolve tudo aquilo que está a servi­ço de vida. Pão tem a ver, para Lutero, com política.

 

Deus olha para suas criaturas

 

Pode parecer que vida de fé seja uma questão particular, que nada tenha a ver com política. Na vida do Reformador, porém, não notamos nada disso. É certo que, no início, ele vivia uma vida reclusa, querendo entender a Deus. Deus tinha sido apresentado para ele como um ser sentado sobre o arco-íris, que tem uma espada de dois gumes na boca, e de cujos olhos saem faíscas mortais. Esse Deus é totalmente juiz. Quando Lute­ro, no entanto, descobriu que Deus é diferente, que ele é um Deus que não olha para cima, pois acima dele não há ninguém, aí as coisas mudaram. Lutero também descobriu que Deus não olha para os lados, pois não há ninguém que chegue a sua altura. Lutero descobriu que Deus não olha nem para cima nem para os lados, mas para baixo, para ali onde estão suas criaturas. Quando Lute­ro descobriu que Deus olha para baixo, aí ele entendeu que Deus é um Deus que entra em nosso mundo e que se preocupa com nosso mundo. Jesus Cristo é a entrada de  Deus em nosso mundo. Em Jesus Cristo, Deus se preocupa com sapato, imperador e salvação. Quando Lutero descobriu isso, aí saiu de seu quarto, pois a fé tinha a ver com a vida do mundo, com a política. A partir do evangelho fez sugestões para o melhoramento da causa pública: envolveu-se com as casas bancárias que exploravam os agricultores e conseguiam juros exorbitantes; escreveu a prefeitos e vereadores pedindo que criassem e mantivessem escolas; brigou com as autoridades que mandaram queimar Bíblias; enfrentou o imperador que queria mandar os evangélicos calarem a boca, e acabou tendo seus direitos políticos cassados até o fim de sua vida. Mesmo assim, jamais afirmou que não devessem existir políticos e governantes. Pelo contrario, sempre afirmou que devem existir governantes, pessoas que se ocupam com a coisa pública, por vontade de Deus.

 

Governantes são responsáveis

 

Isso é interessante: política não se faz por interesse próprio. Política se faz por causa da vontade de Deus em relação à sua criação. É porque Deus quer preservar sua criação que devem existir governantes. A finalidade destes governantes é proteger os fracos contra os fortes, proteger os bons contra os maus, estabelecer justiça. Para tanto são investidos de poder, que é por Lutero caracterizado com a palavra espada: a autoridade tem em suas mãos a espada para proteger e castigar. Por causa deste caráter da justiça, o cristão aceita e acata autoridade e participa ele próprio de cargos públicos, participando da proteção da boa criação de Deus. Por causa deste caráter da autoridade desejada por Deus, o cristão também pode viver em um Estado, no qual o governante não é cristão.

 

Autoridades corruptas

 

Lutero fez também a experiência de que a realidade do pecado está presente na política e no governante. Ele pôde sentir em sua vida tanto a proteção quanto a perseguição por parte da autorida­de. Viu autoridades corruptas, e autori­dades que se esforçavam para governar segundo leis corretas. Essa experiência levou-o a distinguir entre o ministério do qual um governante está investido e a pessoa do próprio governante. Tal distinção não só é sóbria, mas também importante. Jamais negou que fosse necessário haver governantes, mas teve a liberdade de dizer que determinada pessoa não era o melhor governante ou que não deveria ser governante. Assim, pôde exortar cristãos para que se submetessem à autoridade, que fossem a ela obedientes, pois, sua existência correspondia à vontade de Deus que quer preservar a criação; mas soube também convidar cristãos para que resistissem à autorida­de. Quando convocou cristãos para serem obedientes à autoridade: por vezes, cometeu erro de leitura de realidade. Is­so devemos reconhecer. Devemos reconhecer, por outro lado, também, que não foi em virtude de erros cometidos que passou a não se envolver mais com a coisa pública. Pelo contrário, soube reconhecer erros e voltar a lutar. Também aqui soube viver da graça de Deus.

 

O evangelho questiona

 

O aspecto da resistência merece uma atenção. Lutero está convicto de que o evangelho não nos convida a ficarmos de boca calada. Se ficássemos de boca calada, aliás, quem saberia do evangelho? Necessariamente, o anúncio do evange­lho provoca conflitos, pois está falando da vontade de Deus em relação a sua criação. Falando-se da boa vontade de Deus, sua palavra acusa e descobre o pecado na e em relação à criação.

 

A vontade de Deus em relação à criação produz alegria, mas também aponta para as feridas e para os que causam feridas. E ninguém de nós, nem a sociedade, gosta de ter suas feridas expostas. À medida que anuncia e vive o evange­lho, o cristão resiste ao mal. Lutero crê, assim como nós, que o reino de Deus vem vindo e que o diabo faz uso de todos os meios para que o reino não venha. Entre os meios usados pelo diabo podem estar indivíduos, governantes, o Papa, bispos, instituições. Tudo isso po­de ser anti-cristo, isto é, contra a vinda e a vontade de Cristo. Os cristãos são a vanguarda do reino e estão no mun­do para lutar contra tudo o que não quer que o reino venha. Eles buscam' 'melhoramento na língua de Lutero Besserung. Mais do que melhoramento, os cristãos não conseguem, pois a transformação será obra do reino, obra do próprio Deus.

 

Conflitos com o governo

 

Como é que um cristão resiste? O cristão deve obediência à autoridade. Obediência incondicional, no entanto, só de­ve a Deus. Nem mesmo o militar cristão deve obediência absoluta ao governante. O limite da obediência é dado pelo decálogo e pelo evangelho, pela palavra de Deus. Então, o cristão resiste, em primeiro lugar, com a palavra de Deus. Ele deve dizer ao governante qual é a vonta­de de Deus e também o que não corresponde à vontade de Deus. Por causa disso ele pode sofrer. O cristão é convida­do a sofrer por causa da política.

Há, porém, situações em que a auto­ridade lança mão da lei para fins corruptos, quando quer ela própria assumir o lugar de Deus, quando ela passa a ser, para usar uma expressão de Lutero, lobisomem. Aí ela é um tirano arrebatado pelo demônio. Nesse caso extremo, o cristão é convidado a derrubar a auto­ridade. Esse é um caso extremo, em que vai haver pecado, pois o cristão vai fazer ele próprio uso da violência. Mas também aí o cristão vai ter que agir, não podendo pecar por omissão.

 

Lutero cita um exemplo: o que se faz quando o cocheiro esta bêbado? Um cocheiro bêbado dirige sua carroça, sem controlar os cavalos e vai atropelando e matando pessoas nas ruas estreitas da cidade. O que fazer? O que faz o cristão? Enterra os mortos e constrói hospitais para cuidar dos feridos? Ou, tira as rédeas das mãos do cocheiro bêbado? O exem­plo foi contado por Lutero quando Carlos V, o imperador, se preparava para vir a Alemanha e acabar com a fé luterana pela força. Com o exemplo, Lutero convidava para a resistência extrema. Nos dias do regime nazista na Alema­nha, o pastor Dietrich Bonhoeffer relembrou o exemplo de Lutero, participan­do de um atentado contra Hitler. Foi preso com outros cristãos e executado. Em seu livro Resistência e Submissão podemos ler a respeito de sua dor por causa dessa resistência extrema.

 

Fomos usados

 

Participação política é imperativo pa­ra a fé que sabe do amor de Deus por sua criação.

Devemos, no entanto, constatar que entre o povo evangélico-luterano há grande resistência em relação a participação política. Donde vem isso? Devemos cons­tatar que em nossa história brasileira, durante longo tempo, fomos mantidos à margem da política. Havia uma religião oficial no país. Éramos apenas tolerados. Éramos cidadãos de segunda categoria. Tivemos que erguer nossos próprios cemitérios, pois nossos mortos não podiam ser sepultados nos cemitérios públicos. Nossos templos não podiam ter qualquer forma que lembrasse templo. Nem mesmo a cruz nos era permitida em nossos templos. Mas a política do Império nos usou. Fomos convidados a entrar no país para substituir nossos irmãos negros. Ganhamos terras que eles não ganharam. Passamos a participar da classe média brasileira, enquanto eles eram colocados a margem da sociedade. Fomos usados para branquear a raça brasileira. Nossos antepassados foram colocados em território indígena; defenderam a terra que lhes era concedida e, assim, miseravelmente colaboramos na eliminação de povos indígenas. Em São Paulo fomos usados como mão-de-obra barata, dentro de um regime de parceria. Até que houve protestos. Fomos levados, então, para o Espírito Santo ou lançados em terras de febre amarela, ao longo do rio Mucury. Em Santa Catarina nos lançaram nas montanhas do literal para defendermos o território em caso de ataque espanhol... A realidade é triste. De repente a gente descobre que foi usado. Tudo isso, porém, não começou aqui.

 

   

Herança dos antepassados

 

Nossos antepassados já vieram — com raras exceções, apolíticos da Alemanha. Por quê? Porque depois de Lute­ro, os príncipes passaram a governar sobre as igrejas. Cada príncipe controlava os meios de formação da opinião pública: a escola, o púlpito e a cátedra. Pro­fessor, pastor e professor de teologia passaram a ser funcionários públicos e deviam obediência ao príncipe. O príncipe determinava a formação, o culto e a vida religiosa e civil dos súditos. Aos súditos foi deixada uma religiosidade inte­rior, a qual nada mais tinha a ver com a conformação política da sociedade. Paulatinamente, os príncipes formaram a opinião de que política é coisa de político e não diz respeito nem a Deus nem ao cristão. Foi-se interiorizando uma convicção de que Igreja nada tem a ver com política, que cristão não se mete com política, que Deus só se preocupa com a alma do cristão. Por isso, não podemos criticar nossos pais, mas estamos convidados a entender como foram usados em sua fé.

 

Vivência mais luterana!

 

Para nós fica um convite, o de voltarmos a ter uma vivência mais lutera­na. Quando perguntaram a Lutero o que faria, se o fim do mundo viesse amanhã, ele teria respondido: pagaria minhas dívidas e plantaria uma macieira. Para quem não se mete em política, duas coisas inúteis. Como a fé de Lutero o levava para a política, as duas coisas são muito importantes. Se o fim do mundo viesse amanhã, ele não haveria de entregar hoje a boa criação de Deus ao diabo, nem deixaria a ética de lado. Continuaria a dar testemunho de sua fé em meio a coisa pública, em meio à política.

 

Dr. Martin Dreher – Pastor aposentado da IECLB


Autor(a): Martin Dreher
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Natureza do Texto: Artigo
ID: 6832
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Martim Lutero
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