Prédica: Ezequiel 34.11-16, 20-24
Leituras: Mateus 25.31-46 e Efésios 1.15-23
Autoria: Júlio Cézar Adam
Data Litúrgica: Domingo Cristo Rei
Data da Pregação: 26/11/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Cristo Rei: uma mudança de olhar
1. Introdução
Cristo Rei, o último domingo do ano eclesiástico, é uma data propícia para revisar o ano que passou e olhar para o futuro, percebendo Cristo como rei da história, aquele que caminha com seu povo, sua comunidade e com cada pessoa que nele crê.
Os textos previstos no lecionário dialogam entre si de forma muito rica. O texto do profeta Ezequiel traz a denúncia contra as lideranças que não cuidaram do povo, motivo pelo qual enfrentam o exílio, e, ao mesmo tempo, o anúncio do Deus que vem, ele mesmo, cuidar zelosamente das ovelhas feridas. O texto do Evangelho de Mateus é o conhecido e perturbador relato do grande julgamento. Aqui o foco primeiro não são as ovelhas fracas e o cuidado de Deus, mas as ovelhas que deixaram de cuidar daquelas que estavam vulneráveis e feridas. E nelas, nas pequeninas, é que podemos ver o rosto de Cristo. Cuidar das pessoas vulneráveis é como cuidar do próprio Cristo. Já o texto de Efésios relata como a comunidade pode, a partir da fé e do amor, viver plenamente os sinais do reino inaugurado por Cristo.
Os textos nos convidam, portanto, não apenas a refletir sobre o cuidado de Deus ou o seu juízo, mas a pensar sobre a ação da comunidade e da pessoa frente à situação de miséria, abandono e injustiça que vivemos. Em pleno século 21, saindo de uma pandemia, em uma realidade de pobreza, ódio, violência e mentiras, nos encontramos em uma espécie de exílio, exilados da vida digna e justa criada por Deus. Por isso mudar a direção do nosso olhar para a realidade de sofrimento por causa da direção do olhar de Deus é o desafio que o profeta Ezequiel nos coloca.
2. Exegese
O contexto de referência da perícope de Ezequiel 34.11-16, 20-24 é o povo de Judá no exílio da Babilônia, no século VI a. C. Ezequiel está junto com o povo já há alguns anos no exílio e, diante da situação de miséria, recebe oráculos de Deus em forma de denúncia e anúncio, como no caso do capítulo 34.
Segundo o texto, o povo está no exílio por culpa das suas lideranças, apresentadas no capítulo 34 como pastores displicentes. Esses, em vez de zelar pelo bem-estar das ovelhas, desuniram o povo e o exploraram em benefício próprio. O exílio é a consequência, o fundo do poço para o povo frágil e indefeso, resultado do descaso das lideranças, da má administração dos pastores. Ou seja, aqui não é o povo o culpado da sua desgraça, mas as lideranças políticas, militares e religiosas do povo. Por isso as palavras do profeta são duras, tanto contra os pastores quanto contra as ovelhas “gordas”, forma metafórica de falar das que se beneficiam da situação e fecham-se em si mesmas, indiferentes ao sofrimento de quem está ao lado.
O foco principal da perícope, porém, não é em primeiro lugar o julgamento de Deus, mas a ternura e o cuidado de Deus. Javé quer uma sociedade fundada na justiça e no direito e, por isso, quando as lideranças do povo não cumprem seu papel de cuidado, ele mesmo, assim como no êxodo, vem em socorro das suas ovelhas. Enquanto houver pessoa abandonada, ferida, sofrendo, a justiça e o direito de Deus estão limitados.
Os textos são ricos em metáforas, o que ajuda, em certa medida, a concretizar a mensagem teológica neles contida: pastoreio, ovelhas, reinado e rei. São metáforas, porém, distantes do contexto urbano e tecnológico em que vivemos. Também a realidade do exílio é algo estranho para nosso contexto. Valeria a pena contemporaneizar.
3. Meditação
A realeza de Cristo não está completa com a injustiça social, a opressão e a morte. O Deus-Pastor que cuida ele próprio das suas ovelhas é também o Deus-Rei que julga e condena aqueles que foram exploradores e destruidores da vida digna do povo. O Deus-Pastor e o Deus-Rei se personalizam na vida e obra de Jesus Cristo, o bom pastor e o rei da justiça. Deus não está acima de todos, mas no meio do povo sofrido, curando, atando, reunindo, apascentando.
A mensagem da pregação e do culto pode ser a de um Deus terno, amoroso, cuidador, um Deus que age reunindo suas ovelhas para repousarem, um Deus que busca quem está perdido, cura as feridas e quebraduras, fortalece o corpo, protege com justiça. Deus também chama pastores como cuidadores das ovelhas e Deus julga aquelas ovelhas e aqueles pastores que no seu egoísmo não zelam pela justiça, dignidade e bem-estar do coletivo. O texto de Ezequiel, portanto, nos convoca a duas ideias: um Deus condescendente, um Deus que desce e se preocupa com a sorte de suas ovelhas e um Deus que julga quem não se compadece, quem não olha e vê o sofrimento humano.
Sugiro, no entando, que a mensagem não se concentre apenas na condescendência e tampouco apenas no julgamento de Deus, mas sim no que acontece entre a condescendência e o julgamento, ou seja, na ação da comunidade, da pessoa, em fé e amor. A mensagem deveria se concentrar naquilo que Palavra de Deus causa no contexto de hoje, a mudança na direção do olhar. Concentrar-se na condescendência de Deus, por mais bela e consoladora que seja a imagem, pode dar a ideia de que Deus é o único responsável pelo cuidado, e gerar expectativas e, ao mesmo tempo, dúvidas quando pessoas não se sentem protegidas e cuidadas. Colocar o foco no julgamento, por sua vez, é sempre um risco de nos tornarmos juízes que separam ovelhas fracas das fortes, ovelhas e cabritos. O juízo somente a Deus pertence e não devemos especular a respeito.
O centro da mensagem está na comunidade e na pessoa que reage a essa palavra de denúnica e de anúncio. A mensagem que emerge da profecia de Ezequiel à luz do Evangelho é um chamado à conversão, uma mudança de olhar. As imagens dos pequeninos não vistos e olhados, em Mateus, dá uma direção muito clara do olhar: fome, sede, abandono, nudez, prisão, essa é a realidade concreta para qual Deus olha. Essa é a realidade concreta para a qual a fé em Cristo direciona nosso olhar.
Essas pessoas estão dentro e fora das nossas comunidades. São pessoas que passam fome no Brasil de hoje, sentem sede de dignidade, de sentido e de esperança. São pessoas abandonadas à sua própria sorte nas sinaleiras, praças e becos das nossas cidades. São pessoas, crianças, jovens, adultos, idosos explorados na sua nudez, erotizadas, abusadas, violentadas, tanto na realidade presencial, como na das redes sociais e da internet. São também as pessoas presas, nas prisões (não esquecendo que temos uma das maiores populações carcerárias do mundo, cujo perfil tem cor e classe social, em condições desumanas e indignas), mas também as tantas formas simbólicas de prisão, como a falta de opção, a impossibilidade de viver de forma livre a identidade, a sexualidade, relações, ideias e crenças.
4. Imagens para a prédica
A prédica poderia trabalhar a perspectiva da mundança de olhar. Por causa da imensa misericórdia de Deus e por causa do Cristo que se faz presente no rosto dos mais pequeninos, somos chamados, a partir da fé e do amor, compromisso do nosso batismo, a mudar o nosso olhar como pessoas e como comunidade.
Nesse sentido, a história que segue, relatada por Henri Nouwen, pode ser de grande ajuda para a pregação. Reconhecemos a ternura de Deus quando somos capazes de olhar as pessoas nos olhos. No olhar atento e misericordioso nos olhos de quem sofre vemos o próprio Cristo, como presença real, sacramento vivo.
Certo dia, um jovem fugitivo, tentando esconder-se do inimigo, chegou a uma pequena aldeia. As pessoas foram boas para ele e ofereceram-lhe um lugar para ficar. Mas quando os soldados que procuravam o fugitivo perguntaram onde ele estava escondido, todos ficaram com muito medo. Os soldados ameaçaram queimar a aldeia e matar todos os homens de lá, a não ser que o jovem fosse entregue a eles antes do amanhecer. As pessoas foram ao ministro e perguntaram-lhe o que fazer. O ministro, tendo de escolher entre entregar o rapaz ao inimigo ou ter seu povo morto, retirou-se para seu quarto e pôs-se a ler a Bíblia, esperando encontrar uma resposta antes do alvorecer. Depois de muitas horas, de manhã cedo, seus olhos pousaram sobre estas palavras: “É melhor que morra um homem do que o povo todo se perca”. Então, o ministro fechou a Bíblia, chamou os soldados e lhes disse onde o rapaz estava escondido. E depois que os soldados levaram o fugitivo para ser executado, houve uma festa na aldeia, porque o ministro havia salvado a vida das pessoas. Mas ele não celebrou. Tomado por uma profunda tristeza, ficou em seu quarto. Naquela noite, um anjo veio até ele e perguntou: “O que você fez?”. Ele respondeu: “Entreguei o fugitivo ao inimigo”. Então o anjo disse: “Mas você não sabe que entregou o Messias?”. “Como eu poderia saber?”, o ministro replicou ansiosamente. Então o anjo disse: “Se, em vez de ficar lendo sua Bíblia, você tivesse visitado esse jovem ao menos uma vez e olhado dentro de seus olhos, você teria sabido”.
5. Subsídios litúrgicos
O reinado de Cristo não está baseado em poder ou supremacia, mas tão somente no amor e na misericórdia, preferencialmente pelos mais pequeninos.
O Cristo Rei é o Deus Emanuel, Deus presente, envolvido, ocupado e engajado com a vida, em especial lá onde a vida dói. Por isso, em tempos de radicalismo e empoderamento, inclusive bélico, de Cristo, o texto que segue pode ser um instigante recurso para a construção da liturgia.
Não existe nação cristã.
Não existe.
Não pode existir.
Sem chance.
Não com Cristo.
Pois Cristo não pode ser nacionalizado. Ele recusa a plataforma. Ele rejeita todo e qualquer poder estabelecido através do voto, povo, governo ou popularidade.
Ele não busca nenhum partido político, nenhum grupo de pessoas e nenhum sistema de organização estabelecido.
não pode ser colonizado, armado, militarizado, empurrado para a existência, marchando pela rua, martelado por um martelo ou jogado sobre um estádio.
Ele mora fora de paredes, estruturas e construções humanas. Ele derruba tudo o que O enjaularia, O franquearia, O alavancaria e O içaria sobre uma bandeira.
Pois Jesus vive nas margens, nas rachaduras, no indefinido e no inconstituído. Ele não pode ser legislado, demarcado ou traçado em um mapa.
Muito além de teologia, denominações, credos, regras, religião, redes de notícias, mídia social, discursos, conferências, fórmulas de oração, declarações de missão, centros de adoração, bíblias e livros.
Ele abençoa a todos.
Vive em todos.
Reivindica tudo... igualmente.
Ele é tudo, em todos e para todos, ou Ele não significa absolutamente nada.
Não há orçamento que possa comandá-lo, nenhum exército que possa afirmá-lo, nenhuma democracia que possa elegê-lo, nenhum ditador que o faça cumprir, e nenhum escritório, casa, ramo ou hino que possa contê-lo.
Na verdade, você pode ter certeza de que qualquer pessoa, grupo ou esforço para nacionalizá-lo não é dele. Nem mesmo perto.
Talvez esteja ficando cada vez mais claro. O código foi quebrado; o mistério foi resolvido. O câncer foi disfarçado de cura; a blasfêmia do Espírito Santo é revelada. Escondido à vista de todos, o cristianismo sem Jesus é o anti-Cristo e a nacionalização desse cristianismo é sua busca final.
Pois você pode nacionalizar o ódio.
Você pode nacionalizar a ganância.
Você pode nacionalizar o racismo.
Você pode nacionalizar a violência.
Você pode nacionalizar a injustiça.
Você pode nacionalizar a supremacia branca.
Mas você não pode nacionalizar Jesus.
Pois Cristo não pode ser nacionalizado, mas tudo o que é anti-Cristo certamente pode.
Dentro de cada chamada, batida de tambor e coro para nacionalizar o cristianismo está a confissão gritante de que “não temos, não cremos e não adoramos a Jesus”.
Não se deixe enganar, todas as buscas do nacionalismo cristão e o estabelecimento de uma nação cristã. Eles não têm nada a ver com Ele e não podem
existir com Ele, por Ele ou para Ele.
Graça é corajosa. Seja corajoso.
(Chris Kratzer)
Bibliografia
BORTOLINI, José. Roteiros homiléticos: Anos A, B, C Festas e Solenidades. 4. ed. São Paulo: Paulus, 2008.
NOUWEN, Henri J. M. O sofrimento que cura: por meio de nossas feridas, podemos nos tornar fonte de vida para o outro. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 2007.
(Coleção Espírito e Vida).
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