Eucaristia com crianças

Artigo

02/02/2002

Pesquisar as origens da liturgia não é uma busca de fósseis. Não é paleontologia litúrgica. Todas as pessoas que se envolvem seriamente em renovação litúrgica e buscam beber nas fontes do culto cristão fazem a mesma experiência que James F. White: A recuperação de nossas raízes deu-nos asas. Nesta secção partilhamos com nossas leitoras e leitores pérolas reveladas por gente que pesquisa os primeiros séculos do culto cristão, e que vieram a dar asas ao fazer litúrgico no presente.

Eucaristia com crianças

Há muitas perguntas que poderíamos fazer à prática sacramental dos primeiros cristãos para as quais não temos respostas, só palpites. Por exemplo: as crianças participavam da Ceia do Senhor?

Por um lado, sabemos que durante muito tempo, em muitas igrejas locais, a Eucaristia era uma refeição completa. O pão que assinalava o início da refeição e o cálice que era compartilhado ao final dela eram vistos como os grandes sinais de Jesus, de seu evangelho, de sua presença, da liberdade que é a vida nele diante de Deus no poder do Espírito. Era isso que ocorria na comunidade do final do século 1, que produziu o escrito intitulado Didaquê: quando tiverdes comido até vos fartar..., diz o livro a respeito da Eucaristia, ao mesmo tempo em que descreve as notáveis ações de graças cristocêntricas que deveriam cercar essa refeição comunitária. Neste caso, poderíamos concluir: já que a Eucaristia era uma refeição comunitária, é claro que as crianças da comunidade participavam dela.

Mas isso equivaleria a esquecer que muitas refeições formais da região do Mediterrâneo nos séculos 1 e 2 só contavam com a presença de homens, sendo que as mulheres e crianças tinham de comer as sobras em outro lugar, à parte, mais tarde. De acordo com a tradição dos evangelhos, Jesus resistiu a essa prática, aceitando as mulheres e crianças (Lc 7.44; Mt 14.21), até baseando uma grande refeição nas pequenas porções de comida trazidas por uma criança (Jo 6.9) e ordenando que outra criança fosse alimentada (Mc 5.43). E justamente essas refeições da tradição sobre Jesus foram vistas, pêlos autores do Novo Testamento e pelas primeiras igrejas, como símbolos e representações precursoras da Eucaristia. Será que a comunidade da Didaquê entendeu o que Jesus queria dizer? Será que estava vivendo na libertação, trazida por Jesus, dos costumes classistas e sexistas da época dele? Será que a refeição que ela manteve como Eucaristia, no centro da vida comunitária, era uma refeição para todas as pessoas, incluindo mulheres e crianças? Podemos esperar que assim fosse, mas não sabemos.

Na verdade, não surpreende que tão pouca atenção seja dada a crianças em textos da Antiguidade. A ideia da infância é, em grande parte, uma ideia do século 19, e muitos povos antigos dificilmente viam as crianças, dificilmente as consideravam seres humanos. Mas não Jesus, de acordo com a tradição. Deixai vir a mim os pequeninos, diz ele. Não os embaraceis (Mc 10.14). Será que as primeiras igrejas entenderam isso, também no que diz respeito à sua refeição central? Não sabemos.

Mas sabemos o seguinte: nas catacumbas dos séculos 2 e 3, esses cemitérios para cristãos da Antiguidade em Roma, há, ocasionalmente, imagens que retratam as crianças como participantes plenos da oração da igreja. Uma criança pode ser mostrada como orante, com suas mãos elevadas numa oração de ação de graças, assim como teriam estado as mãos do presidente e dos participantes de uma Eucaristia. E, o que é o mais importante, tão logo temos indícios ou provas do batismo de crianças pequenas, das pessoas que não podem responder por si mesmas, como as chama a Tradição Apostólica, do século 3, também temos indícios ou provas de sua participação na ceia. Para a igreja do final do século 2 e do início do século 3, estava claro que essas coisas andavam de mãos dadas. Ser batizado era sempre ser levado à mesa. Assim, Cipriano de Cartago indica que, no século 3, os infantes recebiam a comunhão, provavelmente sugando o dedo molhado de vinho da pessoa que a servia.

Com efeito, a partir do século 3 e até a Idade Média alta do Ocidente, não há indícios ou provas de qualquer outra prática. As crianças pequenas eram lavadas e levadas à comunhão: toda essa ação era chamada de batismo. E as crianças continuavam a comungar tanto quanto os mais velhos. Somente quando foram estabelecidas as dúbias exigências do 4° Concílio de Latrão, no século 13, um concílio que os luteranos tradicionalmente têm criticado muito, que as crianças começaram a ser afastadas na igreja ocidental. Essas exigências diziam que um cristão acima da idade da razão tinha de comungar pelo menos uma exigências foram interpretadas no sentido de que só uma criança mais velha poderia participar da comunhão. E, embora a igreja oriental jamais tenha recebido essa tradição, muitos cristãos luteranos simplesmente deram continuidade, de maneira acrítica, a esse costume da Idade Média tardia. Jamais pensamos em agir de outra forma.

Mas será que todos os cristãos não deveriam pensar em agir de outra forma? O texto mais usado para apoiar a ideia de que o conhecimento e a confissão dos pecados precisam preceder a Eucaristia é o conselho dado por Paulo em 1 Co 11.17-34. Mas, se bebermos de modo profundo e verdadeiro dessa fonte, veremos que Paulo está instando ao auto-exame não as pessoas que ainda não estão participando, mas as que já estão comendo e bebendo, e, ainda assim, excluindo outras, pequenas, pobres, desprovidas de poder, que pertencem a Cristo. Menosprezais a igreja de Deus, pergunta ele, e envergonhais os que nada têm? O corpo que os cristãos precisam discernir é o corpo de Cristo que é a igreja. Esse é o corpo que estava sendo ignorado pelas exclusões em Corinto. Hoje em dia, quando nossas práticas excluem aqueles e aquelas que pertencem a Cristo, Paulo, de fato, nos conclama a nos examinarmos. Será que as pessoas que pertencem a Cristo não incluem as crianças?

Gordon W. Lathrop é professor de Liturgia e capelão do Seminário Teológico Luterano de Filadélfia nos Estados Unidos.


NAS CATACUMBAS SÉCULOS 2 e 3 HÁ IMAGENS QUE RETRATAM AS CRIANÇAS ORAÇÃO DA IGREJA

O banquete celestial imagem de uma catacumba romana. As pessoas participantes do ágape parecem surpresas pelo fato de estar sendo presidido por uma mulher. Fonte: TORJESEN, Karen jo. When women were priests. Son Francisco: Harper, 1995. p. 154.


Esta imagem, de uma catacumba romana, retrata uma criança em postura orante, assim como teria sido a postura do presidente e das pessoas participantes de uma Eucaristia.
 

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Autor(a): Gordon W.Lathrop
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Crianças na Ceia do Senhor / Ano: 2008
Natureza do Texto: Artigo
ID: 14005
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