Estudo de Texto para Bênção Matrimonial - 1 Coríntios 1.10

11/02/1988

ESTUDO DE TEXTO PARA BÊNÇÃO MATRIMONIAL

1 Coríntios 1.10

Harald Malschitzky

I — À guisa de introdução

O texto proposto é uma espécie de título, quase uma senha, cuja explanação, melhor ainda, cuja razão de ser vem logo a seguir. Ele é o início de um trecho maior da primeira carta aos Coríntios, ou seja, 1.10 até 4.21. Dentro deste bloco a perícope menor vai de 1.10 a 1.17, trecho que trata de um assunto que está criando dor de cabeça ao apóstolo Paulo. Ele soube por relatos (1.11) que na comunidade de Corinto estão acontecendo divisões. Não se sabe ao certo que tipos de grupos ou divisões estavam se formando, se criticando e, quem sabe, até se excluindo reciprocamente. Dificilmente são apenas aqueles grupos como Paulo os menciona, que seria meramente grupos de simpatizantes por este ou por aquele líder, um deles até de Cristo! Um dos problemas deve ser procurado, sem dúvida, na própria realidade de uma cidade portuária: gente de todo lado e de todo tipo chegando e saindo, mercadorias, informações e histórias sendo intercambiadas, especuladores, aproveitadores e gente marginalizada, tudo numa roda viva. Isso sem esquecer ainda o intercâmbio cultural e religioso em uma cidade que não deixava de ser uma das portas para o restante do mundo conhecido de então. Não resta dúvida de que este colorido todo se refletia também na comunidade cristã ainda jovem. Sobretudo, criava problemas na comunidade, o grupo de adeptos do gnosticismo, pessoas que, a seu modo, se julgavam mais salvas do que os outros e que, por isso mesmo, assumiam outro tipo de postura diante do mundo e da vida. É de supor, além disso, que também os problemas sociais de Corinto se revelavam dentro da comunidade cristã. Grupos e linhas diferentes estavam pondo em risco a comunidade como um todo. A partir daqui se entende que Paulo, a partir do Cristo, procure tirar consequências para a comunidade e as pessoas através de toda a sua carta. Sua argumentação é essencialmente cristológica: Acaso Cristo está dividido?

É curioso observar que os livros de exegese e meditações para prédicas praticamente não registram o texto 1 Co 1.10-17 (também nosso Proclamar Libertação!), como se o problema ali tratado não tivesse qualquer relevância para nós hoje, quando, na verdade, acontece justamente o contrário. A nossa situação de comunidades cristãs — também em outras igrejas —mostra que os partidos que se criticam e que procuram se excluir reciprocamente, estão aí na comunidade, na família e até na sociedade. Não descobri os motivos pelos quais o texto ficou marginalizado!

II - O texto

O texto é uma admoestação, uma exportação bastante clara: Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que faleis todos a mesma cousa, e que não haja entre vós divisões; antes sejais inteiramente unidos, na mesma disposição mental e no mesmo parecer.

O fato é que há riscos muito sérios de que a comunidade seja quebrada em pedaços, que sua unidade seja prejudicada ou até destruída. Algumas das possíveis razões foram apontadas acima (item 1). Paulo identifica o risco, empregando um conceito que na história da Igreja sempre foi empregado para designar divisões e dissidências efetivas, com a consequente criação de nova igreja: CISMA. Segundo os pesquisadores, em Corinto a situação ainda não era tão grave e nem as questões doutrinárias, que muitas vezes originaram cismas, estavam tão elaboradas. Em outras palavras: os cismas (Paulo emprega o plural) não tinham nem as dimensões que viriam a adquirir no decorrer da história. Mas o perigo estava aí: o perigo de se criarem grupos antagônicos que só ficam sob o mesmo teto — isso quando ficam! — por questões de conveniência, fenômeno, aliás, palpável até os nossos dias não só, mas também na IECLB. O perigo mais visível, mais aparente, é que também a unidade orgânica poderia ser liquidada. Entretanto, o apóstolo certamente não estava preocupado apenas com a unidade orgânica, por assim dizer, com a estrutura como tal, mas com a essência, pois na própria carta, do início ao fim, fica claro que o corpo orgânico é determinado pelo seu conteúdo (cf. 1Co 12.12ss). Importante era manter a unidade orgânica do corpo de Cristo que é a comunidade, a igreja local e esta unidade está longe de ser apenas uma grandeza estrutural. Em sua admoestação em favor da unidade, Paulo emprega três conceitos que são semelhantes, sinônimos por vezes, conceitos que estão interligados.

1. Falem todos a mesma coisa. A Bíblia de Jerusalém traduz o original dizendo: Guardai a concórdia, e a Bíblia na Linguagem de Hoje vai na mesma direção quando diz: Estejam de acordo no que dizem, embora aqui ao menos entre o verbo falar do texto original. Não resta dúvida de que estas traduções têm muito de acertado, sobretudo quando se lembra que os três conceitos, dos quais esta frase é o primeiro, estão interligados e têm até semelhança. Mesmo assim é de atentar para a tradução de Almeida que é praticamente literal e que sugere que também no falar da mensagem, na pregação, se fale a mesma coisa. Acontece que é na questão da compreensão do Cristo e sua obra que há divergências. Todo o falar na comunidade e da comunidade, tanto o falar profano como o falar da pregação e do ensino é que revelam o que está acontecendo na comunidade e, por outro lado, este mesmo falar é que vai decidir pela edificação ou pela destruição da comunidade. Ocorre que o conceito de palavra no Novo Testamento guarda muito significado do DABAR hebraico (palavra, coisa), a saber, o impacto de um tijolaço!

2. “Espírito” ([Bíblia de Jerusalém] ou disposição mental (Almeida). O termo original NOÜS designa a capacidade de entender, compreender, pensar, refletir, designa a intenção e a mentalidade, bem como o órgão onde se desenvolve a fantasia. Isso no grego popular. Os filósofos estreitaram o seu significado, estabelecendo, por exemplo, a razão teórica e a razão prática ou então a razão cósmica. Já o gnosticismo podia afirmar que a razão é uma hipóstase de Deus, isto é, quase que como o próprio Deus. Tanto na filosofia como na religião parece que NOÜS deixou de ser uma capacidade humana comum como na linguagem popular, perdendo em profundidade e amplitude. Paulo se vale mais do sentido popular do termo (ele o emprega 21 vezes em suas cartas) e no texto em questão com o significado de intenção, entendimento, fantasia.

3. Modo de pensar (Bíblia de Jerusalém) ou parecer (Almeida). GNOME é quase que um sinônimo de NOÜS, significando mentalidade, vontade, atitude de moral, concordância, juízo sobre uma determinada coisa/pessoa/acontecimento. Pode-se perceber com facilidade que a diferença entre os dois conceitos não é grande, embora Paulo não os tenha empregado como simples redundância. Muito pelo contrário, além de sutis diferenças entre os conceitos, a repetição é uma forma de acentuar e dar destaque.

Os três termos são qualificados por um adjetivo: igual, o mesmo. Este adjetivo dá a coloração às palavras com as quais insiste junto à comunidade de Corinto em favor da unidade. Mas, Paulo não apela simplesmente ao bom senso dos coríntios, às suas qualidades naturais ou o que o valha. Paulo apela, isso sim, em nome de nosso Senhor, Jesus Cristo. Assim como a comunidade só é comunidade cristã a partir de Cristo, assim também os seus membros terão como critério único para alcançar a concordância, a mentalidade igual e a mesma vontade, o Cristo. Em outras palavras: A pedra de toque nesta passagem é Jesus Cristo, todo o resto só se compreende a partir daí.

III – Reflexão

A situação histórica do texto é bem outra do que a situação de noivos que solicitam a bênção matrimonial. Poder-se-ia, dizer em tese, que a situação não só é diferente como é exatamente contrária. Enquanto para a comunidade de Corinto o texto é uma admoestação porque há um problema sério, noivos vêm porque julgam que, até o ponto em que se conhecem, têm a mesma intenção, a mesma mentalidade, o espírito de concordância, tudo baseado no amor recíproco, sendo, pois, capazes de partilhar suas vidas no matrimônio. É claro que não se podem desconsiderar outros fatores que levam noivos a pedirem a bênção matrimonial: a tradição herdada dos antepassados; a família que, embora não muito ligada à igreja, faz questão do casamento na igreja; a pressão de uma sociedade que é secularizada mas que ainda exige certos momentos altos da vida tenham uma espécie de coroação religiosa. Também estes, entretanto, vêm à igreja porque julgam que são capazes de viver em conjunto, de partilhar a vida solidariamente. Mas, também a sua situação é inversa à da comunidade cristã em Corinto.

Como comunidade e como obreiros temos que começar tomando muito a sério o desejo de noivos, a menos que tenhamos razões evidentes de que se trata apenas de usar a igreja para fins alheios à mensagem evangélica. Nesses casos cabe ao presbitério e ao pastor tomar as devidas providências (Nossa Fé — Nossa Vida, p. 41). O normal é que o enlace matrimonial é um acontecimento muito importante para toda a família e que, especialmente os noivos, estão tomados de boas intenções e juras de amor que são válidas e necessárias. Todavia é fato notório que todas as intenções e todos os projetos humanos sofrem de uma grande fraqueza, que se reflete de forma desastrosa sobretudo no matrimônio, a saber, sua falibilidade. Mais do que depressa se instalam na microssociedade construída sobre o amor, na microssociedade que mais chances de comunhão e intimidade oferece, o egoísmo, o autoritarismo, velhos preconceitos e os falsos conceitos de uma sociedade na qual a força e o poder são mais importantes do que a compreensão e a solidariedade, na qual conceitos como honestidade e fidelidade estão cada vez mais fora de moda, como muito bem o ilustra a maioria das novelas consumidas avidamente em nosso país. Muito cedo pode acontecer que esta microssociedade, jurada vitalícia, seja colocada em risco. Se originalmente Paulo escreve a uma comunidade em que os problemas já se instalaram, na bênção matrimonial a admoestação pode ocorrer em vista do futuro do casal, em vista do fato de os noivos serem apenas gente, em vista do dia-a-dia de esposa e marido.

É importante não bagatelizar as coisas, sugerindo, por exemplo, que casais cristãos ou crentes não têm problemas de qualquer ordem. Pessoalmente sempre desconfio de que se está blefando ou tentando tapar o sol com a peneira, quando alguém afirma não ter tido e não ter qualquer problema no matrimônio. A meditação ou prédica não deveria ir na (falsa) direção de que a bênção matrimonial ou a observância do texto bíblico constitua uma espécie de carcaça protetora. Tanto um como o outro podem constituir, isso sim, uma pista, uma proposta, a partir de Jesus Cristo, para o casal achar saídas coerentes com o evangelho dos problemas que surgirem em sua caminhada a dois (ou em família). Na encarnação do Cristo foram vencidas todas as mortes que ameaçam a vida do ser humano, também aquelas mortes, pequenas e grandes, que impingimos diariamente uns aos outros, destruindo-nos naquilo que é a essência do ser gente: pessoa criada à imagem e semelhança de Deus. Vencendo a e as mortes, doando a sua vida, ele inaugurou uma proposta de comunhão e solidariedade ímpares. E é a partir desta ação de Deus que a admoestação em favor de um mesmo falar, em busca de uma mesma intenção, para o uso da vontade a fim de alcançar uma opinião abalizada (atitude moral), para o uso da fantasia em favor do outro, tem sua legitimidade. Não que no matrimônio (Paulo também não o queria para a comunidade de Corinto) cada um dos parceiros mate e apague a sua própria identidade, mas que esta identidade seja colocada a serviço do(a) parceiro(a) e da vida em comum e que por causa desta vida em comum se procure dominar tudo aquilo que tem caráter destrutivo para o matrimônio, pois este é o caminho para se evitarem cismas, rupturas irreparáveis. O famoso escritor Antoine de Saint-Exupéry, disse uma frase que pode ser elucidativa neste contexto: Mais importante do que os dois se olharem nos olhos, é ambos olharem na mesma direção.

Talvez a admoestação contida nas palavras de Paulo, para muitos, pareça ultrapassada, pois toma conta sempre mais a mentalidade de que, no momento em que duas pessoas não mais se agüentam e nem procuram fazê-lo, procuram simplesmente por outro(a) parceiro(a). Ainda na Zero Hora do dia 26.01.87 se lia uma reportagem na qual uma mulher contava uma seqüência trágica de tentativas frustradas de uma vida em comum. É trágico também na mesma reportagem que a autora julga poder culpar quase só seus parceiros pelas experiências frustradas. Contatos com pessoas separadas (ou descasadas como se costuma dizer atualmente) mostra o quanto há de sofrimento, de desilusões, de frustrações, tanto por causa do matrimônio que não deu certo, quanto por causa e em consequência da separação. Isso sem falar nos filhos de casais separados. Esta realidade, no mínimo, deveria devolver a todos a necessária sobriedade. A microssociedade do matrimônio é bela e frágil ao mesmo tempo.

IV — Proposta para a pregação

1. Partir da realidade que comumente leva seres humanos a se comprometerem um pelo outro (é importante que o pastor conheça o casal).

2. Apontar para alguns momentos bem gerais e comuns de comunhão, de partilha e de parceria possíveis e viáveis no matrimônio.

3. Em vez de pintar um mar de rosas (o que torna toda a cerimônia inverossímil!), apontar para o fato de que também no matrimônio cada um dos parceiros tem a sua identidade, sua vontade, seus desejos, seus traços tão humanos, tão frágeis, tão falíveis.

4. Deixar claro que, ainda assim, é possível e realizável uma vida em comum que empresta um sentido profundo à vida, capaz de deixar saudade quase constante em cada um dos parceiros.
5. A admoestação de Paulo deseja ajudar na caminhada em busca de um sentido para a vida a dois (e em família), justamente porque, a partir de Jesus Cristo, ele mostra pistas, mostra uma direção a ser seguida: a direção da compreensão, da solidariedade, do emprego da fantasia para o outro, do serviço ao outro.

V — Bibliografia

- BEHM, Johannes. Artigo NOÜS. In: KITTEL, Gerhard, ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart, 1942. v. 4, p. 950-958.
- BULTMANN, Rudolf. Artigo GNOME. In: KITTEL, Gerhard, ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart, 1933. v. 1, p. 717-718.
- DINKLER, Erich. Artigo Korintherbriefe. In: GALLING, Kurt, ed. Die Religion in Geschichte und Gegenwart. 3. ed. Tübingen. 1960. v. 4. col. 17-23.
- REVISTA DO CEM. Matrimônio em debate. São Leopoldo, v. 5, n. 2,1982.
- KITTEL, Gerhard. Artigo LÉGO-Wort und Reden im NT. In:—. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart, 1942. v. 4, p. 100-140.
- MAURER, Christian. Artigo SXÍSMA. In: KITTEL, Gerhard, ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart, 1964. v. 7, p. 963-965.
- NOSSA Fé - Nossa Vida. Um guia de vida comunitária em fé e ação. 8. ed. São Leopoldo, 1984. p. 40-44.

Proclamar Libertação – Suplemento 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia


Autor(a): Harald Malschitzky
Âmbito: IECLB
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1988 / Volume: Suplemento 2
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 7321
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